Cenário das Doenças Cardiovasculares no Mundo Moderno

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Cenário das Doenças Cardiovasculares no Mundo Moderno Capítulo 1 Cenário das Doenças Cardiovasculares no Mundo Moderno Álvaro Avezum Lilia Nigro Maia Marcelo Nakazone Considerações gerais No século passado, inúmeras populações conquistaram histórica melhoria das condições de saúde, refletidas em aumento médio da expectativa de vida de 25 anos, justificado principalmente pelo grande desenvolvimento socioeconômico mundial. Neste contexto, o status de saúde e o perfil de doenças predominantes nas distintas populações atravessaram uma fase conhecida por transição epidemiológica, que consistiu na mudança do cenário em que predominavam acometimentos infectoparasitários e deficiências nutricionais para o surgimento de manifestações crônico- -degenerativas, representadas por câncer, demência e doenças cardiovasculares (DCVs). Nos países em estágios mais precoces de desenvolvimento, as DCVs predominantes são as doenças cardíacas reumáticas, aquelas secundárias a infecções e a deficiência nutricional. No segundo estágio, as doenças infecciosas entram em declínio e se observa melhoria das condições nutricionais, enquanto as doenças relacionadas à hipertensão arterial sistêmica (HAS), como o acidente vascular encefálico (AVE) hemorrágico e a cardiopatia hipertensiva, se tornam mais comuns. A terceira fase da transição epidemiológica assiste à continuidade de melhoria da expectativa de vida, porém mostra-se caracterizada pelo tabagismo, sedentarismo e aumento do consumo de dieta hipercalórica, permitindo a maior manifestação da doença cardíaca isquêmica e do AVE aterotrombótico. O quarto estágio destaca a prevenção e o diagnóstico precoce, com o intuito de evitar a ocorrência de DCVs. Proposto recentemente, o quinto estágio corresponderia à época influenciada por conflitos sociais capazes de corromper a barreira da saúde, permitindo o ressurgimento de problemas observados nos dois primeiros estágios, com persistência de doenças comuns ao terceiro e quarto estágios. Assim, seria caracterizado pelo aumento tanto da mortalidade cardiovascular quanto àquela relacionada a doenças infecciosas e à própria violência, com consequente diminuição da expectativa de vida. É interessante notar que, em uma determinada época, diferentes países ou regiões localizadas em uma mesma nação podem apresentar estágios distintos de transição epidemiológica. Tal fato pode ser constatado entre diferentes acometimentos (morte infantil por diarreia ou desnutrição grave, culminando com doenças crônicas no adulto) ou entre categorias específicas de doença (cardiopatia reumática no jovem, levando à calcificação valvar, degeneração e insuficiência cardíaca no idoso), com caráter modificável e temporalmente reversível, sofrendo influência de condições socioeconômicas em nível regional ou global. A Tabela 1.1 exemplifica a transição epidemiológica relacionada às DCVs no mundo atual. Observa-se um aumento da expectativa de vida durante os estágios 1 a 4, com sua diminuição no estágio 5 comparada aos anteriores 4 e 3. Nos últimos 30 anos, observou-se nos países ocidentais um grande declínio na mortalidade devido às DCVs, em contrapartida a um aumento perceptível nas nações em desenvolvimento. Análises recentes demonstram forte tendência para a manutenção deste contraste. Em 1990, a expectativa para as próximas três décadas era que a morbimortalidade atribuível às DCVs passasse de 85 milhões de incapacitados, pareados por idade, para o dobro em 2020, atingindo o marco de 160 milhões, com 80% deste impacto nos países em desenvolvimento. Neste cenário, a doença cardíaca isquêmica é a grande representante, podendo ser responsável por antecipar estas previsões já na próxima década. O constatado aumento das DCVs é possível consequência de três fatores: diminuição das doenças infecciosas agudas associada a maior expectativa de vida populacional, mudanças em estilo de vida e condições socioeconômicas observadas nos países em desenvolvimento, levando a maior exposição aos fatores de risco para DCVs, além de suscetibilidade de certas populações a desfechos clínicos mais impactantes, devido, por exemplo, à herança genética. Neste contexto, diversos estudos epidemiológicos 1

Manual de Cardiologia Tabela 1.1 Modelo modificado dos estágios de transição epidemiológica relacionada a doenças cardiovasculares. Estágios de desenvolvimento % de mortes por DCVs DCVs predominantes Exemplos regionais 1 Época da peste e fome 5 10 Doença cardíaca reumática, infecciosa e cardiomiopatias nutricionais 2 Época do fim das pandemias 10 35 Todas acima + doença cardíaca hipertensiva e AVE hemorrágico África Subsaariana, região rural da Índia e América do Sul China 3 Época das doenças degenerativas e transmissíveis 4 Época das doenças degenerativas persistentes 5 Época da regressão de saúde e expansão social 35 55 Todas as formas de AVE, doença cardíaca isquêmica no jovem, aumento de obesidade e diabetes < 50 AVE e doença cardíaca isquêmica no idoso 35 55 Ressurgimento de mortes de doença cardíaca reumática, infecções e aumento de doenças isquêmicas e hipertensivas no jovem Região urbana da Índia, economias formalmente socialistas e comunidades aborígenes Europa Ocidental, América do Norte, Austrália, Nova Zelândia Rússia DVC = doença cardiovascular; AVE = acidente vascular encefálico Fonte: Yusuf S et al., Circulation 2001; 104 (22): 2746-53. têm demonstrado associação entre certos marcadores de risco e DCVs, como diabete melito (DM), HAS, tabagismo, sedentarismo e dislipidemia, considerando a herança genética aliada a influências ambientais e socioeconômicas na manifestação dessas doenças. Assim, recomendações atuais como mudanças no estilo de vida, incluindo dieta adequada, atividade física regular e cessação do tabagismo, apresentam-se como estratégias de políticas públicas de saúde com o intuito de prevenção precoce de eventos cardiovasculares. Dentre os fatores contribuintes para o aumento das DCVs, a globalização da indústria alimentícia promoveu uma maior disponibilidade de produtos altamente calóricos, culminando com maior consumo de alimentos gordurosos e queda do consumo de fibras e micronutrientes. Esta transição nutricional pode ser observada entre indivíduos pertencentes a distintas classes econômicas e sociais, principalmente dentre os residentes de áreas urbanas em países como o Brasil e a África do Sul. Associadas a esta realidade, diferenças observadas no padrão de atividade física, considerando o sedentarismo predominante em populações urbanas, contribuem de maneira significativa para a propagação de sobrepeso e obesidade, marcadores de risco para DCVs. Ainda, o hábito do tabagismo, apesar de se apresentar em queda nos países industrializados nas últimas décadas, mostrou taxas ascendentes em nações da América Latina, Oriente Médio, Índia e China, com consequente aumento de mortalidade por doenças crônicas. Estudos recentes apontam diferentes respostas metabólicas a tais fatores de risco para DCVs de acordo com a população avaliada, considerando a suscetibilidade genética. Neste contexto, buscam evidenciar associação entre DCVs e marcadores como obesidade, dislipidemia, HAS e disglicemia. Entretanto, o impacto da real influência das inúmeras variantes genéticas nas DCVs permanece desconhecido, na medida em que fatores ambientais como estilo de vida e hábito nutricional também devam ser considerados. A Figura 1.1 propõe um esquema do fluxo para a manifestação de DCVs aterotrombóticas, considerando seu caráter etiológico multifatorial. Aspecto da doença cardiovascular no mundo A doença cardiovascular é a principal causa de morte no mundo, com exceção da África Subsaariana, onde a Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida emergiu como a causa líder de mortalidade. Entre 1990 e 2020, há uma previsão de aumento do impacto para doença isquêmica cardíaca em torno de 120% para mulheres e 137% para homens nos países em desenvolvimento, comparada a uma taxa de aumento variando entre 30% e 60% nos países desenvolvidos. Apesar de 80% dos óbitos por DCVs ocorrerem em países de baixa e média renda, as taxas de mortalidade para a maioria das regiões estão abaixo da apresentada por nações de alta renda, que é de 320 por 100 mil habitantes anualmente. As marcantes exce- 2

Cenário das Doenças Cardiovasculares no Mundo Moderno Determinantes comportamentais Desenvolvimento de fatores de risco Influências modificáveis Eventos clínicos Nível de desenvolvimento socioeconômico Educação Distribuição de renda Organização social Influências globais (ex.: propagandas de fastfoods) Interações de fatores ambientais com hábito de tabagismo com predisposição genética Fatores de risco predisponentes ex.: Obesidade Fatores de risco clássicos ex.: Colesterol; Hipertensão Arterial Sistêmica, Diabetes Mellitus Novos marcadores de risco ex.: Trombogênicos Fatores psicossociais Suscetibilidade à ruptura de placa Conhecimento sobre prevenção Acesso à cuidados de saúde Doença arterial Coronária Acidente vascular encefálico isquêmico Doença arterial periférica Doença cardíaca Hipertensiva Acidente vascular encefálico hemorrágico Figura 1.1 Esquema representativo do fluxo para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares aterotrombóticas. Fonte: Yusuf S et al., Circulation 2001; 104 (22): 2746-53. ções são a Europa e a Ásia Central, com uma razão de 690 mortes por DCVs por 100 mil habitantes. Ásia Ocidental e região do Pacífico O cenário e a característica da transição epidemiológica na região refletem a diversidade das circunstâncias econômicas locais. Desde 1950, a expectativa de vida na China praticamente dobrou de 37 para 71 anos, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Aproximadamente 60% de sua população vivem fora dos centros urbanos e, de maneira semelhante à maioria dos países em desenvolvimento, as taxas de doença isquêmica cardíaca, AVE e HAS são maiores em regiões urbanizadas. A China parece situar-se entre a segunda e a terceira fases da transição epidemiológica, com taxas de DCVs acima de 35%, embora com predomínio de AVE. Entretanto, na região urbana da China, é possível constatar um aumento de 53% na taxa de mortalidade por doenças isquêmicas cardíacas no período de 1988 a 1996. Europa e Ásia Central As economias de mercado emergentes, que consistem em antigos Estados socialistas europeus, encontram-se principalmente na terceira fase de transição epidemiológica. Se considerada como um só grupo, esta região apresenta as maiores taxas de mortalidade por DCVs do mundo, similares às observadas nos Estados Unidos da América em 1960, quando as DCVs atingiram seu auge. Croácia, Romênia e Cazaquistão têm observado um aumento da taxa de doenças isquêmicas cardiovasculares variando de 36% a 62%. Na Rússia, a expectativa de vida para homens caiu vertiginosamente de 72 para 59 anos em 2004, considerando o grande impacto das DCVs. Na República Tcheca, Polônia, Hungria e Eslovênia, as taxas de mortalidade por DCVs ajustadas para idade têm diminuído, embora permaneçam mais elevadas que na Europa Ocidental. Sul da Ásia Algumas regiões da Índia parecem estar na primeira fase de transição epidemiológica, enquanto outras na segunda ou terceira fases. O país vem apresentando elevação alarmante na incidência de DCVs, possivelmente relacionadas a mudanças do estilo de vida e dieta, rápida urbanização e componente genético subjacente. O DM é um dos principais problemas de saúde. A Índia tem cerca de 31,6 milhões de diabéticos e estima-se que esse número chegará a 57,2 milhões em 2025. Dados da OMS apontam que 50% das mortes por acometimentos cardiovasculares na região ocorrem em pessoas com menos de 70 anos, comparada a aproximadamente 22% no ocidente. Além disso, estima-se que entre 2000 e 2030, cerca de 35% da mortalidade cardiovascular na Índia ocorrerá em indivíduos com idade entre 35 e 3

Manual de Cardiologia 64 anos, em comparação a apenas 12% nos Estados Unidos da América e 22% na China. Oriente Médio e Norte da África O aumento da riqueza econômica na região tem acompanhado a urbanização. As taxas relacionadas às DCVs aumentaram rapidamente, transformando- -se atualmente na maior causa de óbitos, variando de 25% a 45%. A doença isquêmica coronariana destaca-se com três óbitos para cada morte por AVE. A doença cardíaca reumática permanece a maior causa de morbimortalidade local, mas com número de internações em declínio. África Subsaariana Na África Subsaariana, as mortes por acometimentos cardiovasculares são projetadas para mais que o dobro entre 1990 e 2020. Embora a Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida seja a líder global de causa de morte na região, as DCVs representam a segunda causa de mortalidade e a primeira entre os indivíduos acima de 30 anos. Dentre elas, o AVE destaca-se como principal representante, como geralmente observado em regiões que atravessam a primeira fase da transição epidemiológica. Com a urbanização, níveis de atividade física estão em queda, enquanto as taxas de tabagismo aumentam gradativamente. A HAS tem surgido como um grande problema de saúde pública, predispondo consequentemente ao AVE. A doença cardíaca reumática e a cardiomiopatia devido à desnutrição, além de inúmeras doenças virais e parasitárias, são também importantes causas de DCVs na região. Doenças cardiovasculares na América do Sul A América do Sul compreende uma área de 17 840 000 km 2, com aspectos ambientais distintos e etnias, sociedades e culturas amplamente complexas e heterogêneas. Em meados de 2008, a população sul-americana era estimada em 371 milhões de habitantes distribuídos em 13 países. O Brasil representa cerca de 50% do total desta população, com aproximadamente 192 milhões de pessoas nos seus limites territoriais. Nas últimas décadas, seguindo a tendência mundial, inúmeros avanços socioeconômicos foram observados na América do Sul. A cobertura governamental a serviços básicos foi ampliada em muitos países, embora em menor intensidade nas áreas rurais. A população em geral conquistou maior acesso à educação, ao saneamento básico, além de atenção primária à saúde, incluindo imunizações. Isso permitiu um notável avanço em medidas preventivas e de controle de doenças transmissíveis anteriormente responsáveis por grande impacto local. Observou-se aumento médio de seis anos na expectativa de vida, com decréscimo na taxa de mortalidade infantil pela metade. Associados aos fatores já mencionados, a desaceleração do crescimento populacional e o prolongamento de vida útil, contribuíram significantemente para a melhoria de saúde pública na América do Sul. Em 2001, as DCVs representavam cerca de 31% das causas de morte na América Latina e no Caribe, com estimativa de atingir a marca de 38% em 2020. Nas últimas décadas, a média da expectativa de vida se elevou de 51 para 71 anos, e a qualidade alimentar melhorou surpreendentemente. De maneira geral, a região parece estar na terceira fase da transição, porém, algumas regiões da América do Sul ainda apresentam características que a englobam na primeira fase da transição epidemiológica. Entretanto, o fenômeno de urbanização constatado nas regiões em desenvolvimento desencadeou também mudanças desfavoráveis, como a elevação das taxas de tabagismo, o aumento do índice de estresse, o sedentarismo e o consumo de alimentos hipercalóricos e gordurosos industrializados. Considerando a interação ambiental com predisposição genética, essas alterações provocadas pela urbanização contribuíram com o aumento dos fatores de risco como obesidade, HAS, dislipidemia e DM que, por sua vez, culminaram com elevadas taxas de infarto agudo do miocárdio e AVE. Esta situação é responsável pelo impacto atual das DCVs na América do Sul, onde medidas visando detecção precoce e rígido controle de fatores de risco cardiovascular buscam reduzir ascensão e gravidade. Principais fatores de risco cardiovascular na América do Sul O maior impacto das DCVs no mundo é proveniente dos países em desenvolvimento e o infarto agudo do miocárdio é seu principal representante. Fatores de risco como obesidade abdominal, DM, dislipidemia e HAS são claramente associados com DCV, levando ao infarto agudo do miocárdio e AVE. Os dados oficialmente disponíveis sobre as prevalências desses fatores são da OMS, baseados em pesquisas locais. Nesse contexto, a América do Sul encontra-se nos estágios iniciais da epidemia relacionada ao tabaco, e por essa razão ainda não sofreu o pleno impacto das doenças e mortes relacionadas ao tabagismo como já evidenciado nos países desenvolvidos. Assim, de acordo com dados da OMS, as taxas de tabagismo encontram-se entre 35% dos homens e 25% das mulheres. Em relação a sobrepeso e obesidade, dados mundiais os destacam em cerca de 4

Cenário das Doenças Cardiovasculares no Mundo Moderno 1,3 bilhão de indivíduos, principalmente em populações de baixa renda, com taxas variando entre 40% e 65% no sexo masculino e 28% e 72% em mulheres, dependendo da região avaliada. O número de pessoas com DM encontra-se também em ascensão, com estimativas para que, em 2030, ultrapasse a marca de 82 milhões de indivíduos nos países em desenvolvimento e 48 milhões nas nações desenvolvidas dentre aqueles acima de 64 anos de idade. A despeito do gênero e da idade, fatores como etnia e condição socioeconômica são apontados como grandes contribuintes para a manifestação de HAS. Embora com escassos estudos, muitas vezes não comparáveis devido a diferenças metodológicas e critérios classificatórios, estima-se a prevalência de HAS variando entre 20% e 30% de acordo com a casuística estudada. No Brasil, entre 1983 e 2005, houve redução de 11,8% nas taxas de mortalidade por DCVs. Em 1983, as DCVs representaram a principal causa de morte no país, atingindo prevalência de 26%, sendo que 8,7% delas eram provenientes de doença arterial coronária e 8,7% devido a acidente cerebrovascular. Em 2005, o AVE apresentou redução de 16,4% da taxa de mortalidade em comparação ao registro anterior, embora permanecendo na liderança de razão de morte. Infarto agudo do miocárdio continuou em segunda posição, com redução de 8,5% da taxa de mortalidade comparada a 1983. Entretanto, a tendência mostra um aumento proporcional da mortalidade por DCVs em relação à mortalidade por todas as causas, já que em 2005 aumentou 2,2 pontos, alcançando 28,2% da mortalidade geral. Impacto socioeconômico das doenças cardiovasculares O aumento da incidência de acometimentos cardiovasculares em indivíduos em idade produtiva tem sido destacado nos relatórios econômicos de países desenvolvidos. Estimativas conservadoras do Brasil, China, Índia, México e África do Sul apontam que, anualmente, são perdidos cerca de 21 milhões de anos de vida produtiva devido as DCVs. Na África do Sul, por exemplo, os gastos com tratamento de DCVs equivalem de 2% a 3% do Produto Interno Bruto, ou seja, em torno de 25% das despesas com atenção de saúde local. Gastos com DCVs são atualmente utilizados como indicadores de possíveis despesas futuras nos países em desenvolvimento. Como parâmetros para estimativas, podem ser referidos os gastos dos Estados Unidos que, em 2003, atingiram o marco de 350 bilhões de dólares para tratamento direto e indireto das DCVs e, em 1998, já haviam dispensado 109 milhões de dólares para o tratamento de HAS, o que representou 13% do orçamento previsto para a saúde naquela época. Além disso, apesar de possuírem limitações para extrapolação de resultados, os estudos atualmente conduzidos permitem avaliar que as doenças relacionadas à obesidade já representaram um gasto atual variando de 2% a 8% de todo o orçamento previsto para a saúde só nos países desenvolvidos. Em conclusão, se ignoradas, as DCVs irão aumentar drasticamente nos próximos anos, com substancial impacto global devido a morte, invalidez e vultosos gastos com recursos da saúde. Nesse sentido, com o intuito de planejar melhores estratégias preventivas, estudos de registros de incidência e de prevalência de fatores de risco para DCVs, já em andamento, visam urgentemente caracterizar o cenário a partir do qual intervenções sociais possam diminuir as sérias consequências desse processo. Bibliografia 1. Avezum A, Braga J, Santos I, Guimarães HP, Marin-Neto JA, Piegas LS. Cardiovascular disease in South America: current status and opportunities for prevention. Heart 2009; 95 (18): 1475-82. 2. Fuster V, Kelly BB, editors. Promoting Cardiovascular Health in the Developing World: A Critical Challenge to Achieve Global Health. Institute of Medicine (US) Committee on Preventing the Global Epidemic of Cardiovascular Disease: Meeting the Challenges in Developing Countries. Washington (DC): National Academies Press (US); 2010. 3. Gaziano T, Reddy KS, Paccaud F, Horton S, Chaturvedi V. In: Jamison DT, Breman JG, Measham AR, Alleyne G, Claeson M, Evans DB, Jha P, Mills A, Musgrove P, editors. Disease Control Priorities in Developing Countries. 2nd edition. Washington (DC): World Bank; 2006. p. 645-62. 4. Mendis S. The contribution of the Framingham Heart Study to the prevention of cardiovascular disease: a global perspective. Prog Cardiovasc Dis 2010; 53 (1): 10-4. 5. Yusuf S, Ôunpuu S, Anand S. The global epidemic of atherosclerotic cardiovascular disease. Med Principles Pract 2002; 11 (suppl 2): 3-8. 6. Yusuf S, Reddy S, Ôunpuu S, Anand S. Global burden of cardiovascular diseases. Part I: general considerations, the epidemiologic transition, risk factors, and impact of urbanization. Circulation 2001; 104 (22): 2746-53. 5