A FOTOGRAFIA ENTRE O ÍNDICE E O ÍCONE: POR UMA DUPLA ABORDAGEM



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Transcrição:

A FOTOGRAFIA ENTRE O ÍNDICE E O ÍCONE: POR UMA DUPLA ABORDAGEM Karliane Macedo Nunes (UFBA) Foi no século XIX, a partir da obtenção de imagens gravadas pela ação da luz numa superfície quimicamente sensibilizada, que a fotografia surgiu como um novo meio de registro do mundo, dando origem a um vigoroso debate em torno da visualidade humana. Onipresente no cotidiano da vida moderna, a fotografia suscitou diferentes reflexões, que vieram a desembocar, pelo menos, em duas grandes formulações teóricas para a abordagem da imagem fotográfica: De um lado, a insistência de um grupo de estudiosos em destacar o aspecto de registro do real da fotografia, a sua ligação física com o referente. Nessa linha, destacamos o francês Roland Barthes (e sua famosa definição ontológica da fotografia, que a singulariza na referência) e Lucia Santaella. Do outro lado, uma corrente que busca enfatizar a necessidade de interpretar fotografias a partir da sua composição interna, dos elementos que a constituem, e que, em boa medida, podem ser acionados por conta do caráter icônico das imagens fotográficas. Destacamos aqui Umberto Eco e Ernst Gombrich. A proposta apresentada neste trabalho considera a fotografia um meio expressivo complexo e marcado por dualidades e paradoxos, que carrega consigo múltiplas possibilidades informativas e geradoras de conhecimento, tanto se se considera o seu caráter referencial, e documental, portanto; quanto se o que é enfatizado é a composição interna de seus elementos, ou, em outras palavras, o seu aspecto de expressividade artística. A forma de abordagem mais comum à fotografia, aquela com a qual se ocuparam muitos teóricos desse meio desde a sua invenção, a saber, o caráter de registro do real que o dispositivo fotógrafo encerra, deve ser problematizado no sentido de superar a noção ingênua de que, por conta desse rastro do real presente nas imagens fotográficas, e- las se constituiriam em cópias da realidade. A correspondência física entre o fotografado e o objeto ou conjunto de objetos do mundo se constitui, ainda hoje, para muitos teóricos, na essência da fotografia, naquilo 1

que a diferencia de qualquer outro tipo de imagem. Essa conexão física entre o signo fotográfico e seu referente é o que a define como a emanação de algo que já foi. Roland Barthes, no seu clássico A Câmara Clara, obra que dedicou inteira ao tema da fotografia, diz: [...] o Referente da Fotografia não é o mesmo que o dos outros sistemas de representação. Chamo de referente fotográfico, não a coisa facultativamente real a que remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia. A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto (Barthes, 1980: 114-115). São muitas as passagens do citado livro em que Barthes, enquanto observador das imagens, maravilha-se com a questão da pregnância e da presença do referente nas fotografias. Nesse sentido, é válido destacar a crítica de Philippe Dubois quanto a um excessivo referencialismo proposto pelo autor de A Câmara Clara: Evidentemente, ao apresentar as coisas dessa maneira, Barthes é pego na armadilha, não da mimese, mas do referencialismo. Pois aqui está o perigo que espreita esse tipo de concepção: generalizar, ou melhor, absolutizar, o princípio da transferência de realidade, quando se adota uma atitude exclusivamente subjetiva de pretensão ontológica. Barthes está longe de ter escapado a esse culto a essa loucura da referência pela referência (Dubois, 1994: 49). Na tentativa de sair da absolutização em direção a uma relativização do campo da referência, Dubois evoca alguns pressupostos que, segundo ele, se inspiram nos conceitos semióticos de Charles Sanders Peirce e na sua noção de índice 1. Para Dubois, o grande salto dessas considerações semióticas em torno da noção de índice está no fato de possibilitar um deslocamento da fixação na questão da referência (no fato de o objeto ter estado ali num determinado momento do tempo) para a possibilidade de realização de [...] uma verdadeira análise da condição da imagem fotográfica [...] (Ibidem, 1994: 50). Tal possibilidade não leva em consideração o produto concluído, mas todo o seu processo de produção, cujo ponto de partida seria a natureza técnica do processo fotográfico, o fato de a fotografia ser nada mais que uma impressão luminosa regida pelas leis da física e da química 2. 1 Peirce já havia assinalado em 1985 a condição indicial da fotografia. As fotografias, e em particular as fotografias instantâneas, são muito instrutivas porque sabemos que, sob certos aspectos, elas se parecem exatamente com os objetos que representam. Porém, essa semelhança deve-se na realidade ao fato de que essas fotografias foram produzidas em tais circunstâncias que eram fisicamente forçadas a corresponder detalhe por detalhe à natureza. Desse ponto de vista, portanto, pertencem à nossa segunda classe de signos: os signos por conexão física [índice] (Peirce apud Dubois, 1994: 49). 2 Esse aspecto, de acordo com Dubois, coloca a fotografia na mesma categoria de signos em que se encontra, por exemplo, a fumaça (indício do fogo) ou a cicatriz (indício de um ferimento). 2

Por outro lado, para que haja essa inscrição do objeto do mundo sobre a superfície sensível, é necessária a intervenção de gestos inteiramente culturais e codificados, que dependem de escolhas e decisões humanas (escolha do aparelho, do referente, da lente, anteriores ao ato fotográfico, além das escolhas posteriores ao ato, como a revelação no e a distribuição dessas imagens). Também para Santaella, a fotografia pode ser vista como o protótipo do signo indicial, uma vez que o índice liga-se existencialmente ao seu objeto referente, de acordo com ela: [...] por uma relação temporal, espacial ou causal, que dirige a atenção do receptor diretamente e sem reflexão interpretativa do veículo do signo para o objeto. Signo e objeto se constituem, assim, um par orgânico, cuja ligação existe independente de uma interpretação (terceiridade) e é percebida pelo intérprete apenas como uma realidade já existente (cf. CP 2.299, apud Santaella, 2005: 148). No caso da fotografia, essa conexão entre imagem e objeto é existencial por ter se originado de uma relação de causalidade a partir de leis óticas. Se, por um lado, a emanação do real e a evidência do registro, ou seja, o caráter indicial pode ser considerado o traço fundamental que distingue a fotografia das demais imagens na comunidade das representações visuais; por outro lado, esse não pode ser o único aspecto que deve ser contemplado na tentativa de significação da imagem fotográfica. Algumas pesquisas mais recentes consideram, inclusive, que deslumbrar-se e deter-se no aspecto de registro de real que o dispositivo fotográfico encerra seja uma maneira de apagar a discursividade própria da imagem fotográfica, que não necessariamente precisaria recorrer a elementos externos a ela para ser analisada e interpretada. Segundo esse modo de interpretar fotografias, a função icônica 3 torna-se indispensável para a atividade analítica e crítica da fotografia enquanto configuração expressiva. Nessa perspectiva, a fotografia termina por se afastar do seu aspecto documental e da sua possibilidade de funcionar como instrumento de apoio à pesquisa em muitos campos das ciências humanas, como a antropologia e a história. 3 Grosso modo, a definição peirceana de ícone pode ser resumida como o signo que apresenta uma relação de similaridade com o seu referente, embora em graus diferenciados. 3

Essa abordagem desloca a atenção dos temas e assuntos fotografados para os elementos constitutivos da organização interna da imagem, que caracterizam sua composição, tais como contrastes, texturas, enquadramento, profundidade, luminosidade. Ao enfatizar esses elementos, passamos a considerar as estratégias de composição do ato fotográfico e a perceber que há algo codificado também na analogia, o que coloca a fotografia no papel de criadora (e não mais de simples cópia) da realidade. Nesse sentido, cabe deslocar o problema da interpretação de imagens para a instância da recepção, colocando-a em evidência. Algumas abordagens consideram que a nossa visão está confirmada a esquemas prévios, determinados pela experiência. Desse modo, perceber fotografias significaria, nessa perspectiva, lidar com as expectativas da ordem cultural e subjetiva de quem vê. Uma das contribuições de Barthes às teorias da fotografia está na atenção que o autor reservou à instância da recepção, quando propôs tratar a fotografia a partir do e- xercício interpretativo do sujeito observador que, por princípio, deve sair das concepções e (pré)conceitos comuns que nos são dados de imediato pelo contexto em que se inserem certas fotografias, como as jornalísticas, por exemplo. A proposta do autor é observar a imagem fotográfica como uma realidade desanimada, pois que, é tarefa do sujeito animá-la. Assim, o ato de perceber uma imagem torna-se indissociável dela, suas características intrínsecas são inferidas do efeito que ela produz no observador. E é a partir dessa idéia que o autor desenvolve os famosos conceitos de studium e de punctum 4. De todo modo, indo um pouco além de abordagens polarizadas acerca da fotografia, podemos identificar uma espécie de constância inerente a esse meio: as duplicidades. Esse aspecto foi abordado por Santaella e Noth, no livro Imagem. Cognição, semiótica, mídia. Para eles, [...] qualquer que seja o ângulo adotado para a observação da fotografia, o resultado parece sempre conduzir à constatação de sua natureza diádica, opositiva, até mesmo contraditória (Santaella, Noth, 1997: 125). Os autores afirmam ainda 4 O semiólogo dividiu a fotografia em dois níveis: o chamado studium, entendido como o campo objetivo, ou seja, a realidade concreta da imagem, isenta de interpretação estética (aquela que se serve de imagens jornalísticas e históricas, por exemplo); e o denominado punctum, idéia que pode ser entendida como o campo subjetivo da imagem, aquilo que está além da realidade concreta da foto e atinge a observação estética da imagem. 4

que essa presença de contrários na imagem fotográfica vai [...] desde o nível de materialidade mais evidente até o nível de maior complexidade e abstração. Assim, cabe-nos levantar alguns questionamentos: Como analisar uma fotografia sem considerar a aderência do referente? Por que negligenciar a possibilidade de a fotografia se configurar enquanto uma fonte de informação histórica, antropológica e etnográfica? Guardadas as devidas ressalvas bem como a criticidade necessária para superar visões ingênuas sobre uma suposta mimese da realidade, é possível considerar a fotografia um documento visual, uma espécie de reflexos de existências e ocorrências dos seus referentes conservados e congelados no tempo? Por outro lado, é justo tratar a fotografia realçando apenas o seu caráter de referência, que normalmente desemboca em análises que consideram exclusivamente os temas fotografados, ou seja, elementos externos a e- la, mas que não se debruçam sobre o próprio texto 5 fotográfico, sobre a fotografia enquanto um meio com configuração própria? É buscando propor um diálogo entre essas duas abordagens fotográficas como uma possibilidade enriquecedora para as teorias da fotografia, que se articula a proposta de análise que venho tentando desenvolver. De certo modo, o próprio Barthes trata dessa necessidade em seu famoso livro, quando afirma que: Em suma, referente adere. E essa aderência singular faz com que haja uma enorme dificuldade para acomodar a vista à Fotografia. Os livros que tratam dela, aliás muito menos numerosos que os relativos a qualquer outra arte, padecem dessa dificuldade. Uns são técnicos; para ver o significante fotográfico, são obrigados a acomodar a vista muito perto. Outros são históricos ou sociológicos; para observar o fenômeno global da Fotografia, estes são obrigados a acomodar a vista muito longe (Barthes, 1980:16-17). Do ponto de vista de uma atividade crítica da fotografia, a tentativa desse trabalho é a de explicitar as linhas gerais das duas abordagens fotográficas já mencionadas, na tentativa de propor um diálogo entre elas, no sentido de ampliar e diversificar os modos de análise de fotografias. Desse modo, a hipótese que buscamos desenvolver é a de lidar tanto com as abordagens que se concentram nos assuntos fotografados, e que por isso terminam por valorizar o seu caráter indicial; quanto com a abordagem que ressalta a discursividade interna inerente à fotografia, dando destaque à composição fotográfica. Esses modos de abordagem não são antagônicos e se colocados em inter-relação podem 5 Para o russo Iuri Lotman, texto é uma mensagem distinta que é claramente percebida como sendo diferente de um não-texto e de um outro texto. (...) Um texto tem início, um fim e uma organização interna definida. Uma estrutura interna é inerente, por definição, a qualquer texto. Um amontoado amorfo de signos não é um texto (Lucid, 1980: 119, trad. da autora, apud Campelo, 1997: 15). 5

tratar dos diferentes aspectos constituintes da fotografia e da experiência fotográfica, valorizando suas diferentes facetas e se aproximando de uma análise mais abrangente da fotografia. Isso posto, faz-se importante mobilizarmos a interpretação da configuração interna das fotografias como um dado relevante e pertinente aos estudos que lidam com a comunicação visual. É nesse sentido, que torna-se necessário acionarmos a discussão acerca do caráter icônico das imagens fotográficas como um dos elementos que possibilita a percepção das fotografias. De acordo com Umberto Eco, o fato de podermos nos comunicar não só mediante signos verbais, mas também por meio de signos figurativos é um dado da experiência comum. O grande desafio, colocado pelo autor como o problema da semiologia das comunicações visuais, estaria em saber como algo nos parece igual ao signo fotográfico, se nele não há elemento material comum a aquele algo. E explica: Ora, se não tem e- lementos materiais comuns, pode suceder que o signo figurativo comunique, mediante suportes estranhos, formas relacionais iguais (Eco, 1976: 103). Para ir adiante, tornarse-ia necessário saber o que são e como se dão essas relações. Os signos icônicos 6 reproduzem algumas condições da percepção do objeto, mas depois de tê-las selecionado com base em códigos de reconhecimento e anotado com base em convenções gráficas [...] (Ibidem, 1976: 104). O que vale destacar aqui se refere aos códigos de reconhecimento. É a partir deles que identificamos os aspectos pertinentes, que, uma vez selecionados, vão permitir a recognoscibilidade do signo icônico. Abordagens ingênuas que apostavam nas semelhanças naturais que ligariam a i- magem e o fotografado ponto a ponto e consideravam a fotografia como ícone baseadas na noção de espelho do real, análogo perfeito ou duplo da realidade foram rapidamente derrubadas, já que é sabido por todos que as fotografias produzem imagens planas, enquanto a visão natural é tridimensional. Além disso, pode-se também, nesse sentido, destacar alguns outros aspectos, a saber: perda do movimento, limite dado pela 6 A definição peirceana de signo icônico e mobilizada por Eco é a seguinte: aqueles signos que têm certa nativa semelhança com o objeto a que se reportam. Além disso, Eco completa que o signo icônico pode possuir, entre as propriedades do objeto, as ópticas (visíveis), as ontológicas (pressupostas) e as convencionadas (modelizadas, sabidamente inexistentes mas eficazmente denotantes). In: A Estrutura Ausente. 6

moldura, perda da cor e da estrutura granular da superfície da foto, mudança de escala e perda dos estímulos não visuais (Gubern, apud Santaella, 1997: 109). Ernst Gombrich também combate a idéia do olho inocente, ao defender que mesmo a mais realista das imagens icônicas requer uma atividade configuradora para ser compreendida, e destaca que as fotografias podem ter diferentes graus de iconicidade, argumento este também utilizado por Eco. Mesmo quando a leitura de uma foto deve ser aprendida, este processo de aprendizagem é sensivelmente mais fácil que o aprendizado de um código realmente arbitrário, como, por exemplo, uma língua natural (Gombrich, apud Santaella, 1997: 109). Tal argumento também é defendido por Christian Metz, quando afirma que a própria analogia é codificada, portanto, culturalmente determinada: [...] sob a capa da iconicidade, no seio da iconicidade, a mensagem analógica vai obter os códigos mais diversos [...] (Metz, 1973: 10). E vai mais além: A imagem não constitui um império autônomo e cerrado, um mundo fechado sem comunicação com o que o rodeia. As imagens como as palavras, como todo o resto não poderiam deixar de ser consideradas nos jogos de sentido, nos mil movimentos que vêm regular a significação no seio das sociedades. A partir do momento em que a cultura se apodera do texto i- cônico e a cultura já está presente no espírito do criador de imagens -, ele, como todos os outros textos, é oferecido à impressão da figura e do discurso. A semiologia da imagem não se fará fora de uma semiologia geral (Ibidem, 1973: 10). Assim, assumimos que não é recomendável trabalhar com análise de fotografias nem pela via de um iconismo ingênuo, já que ficou comprovado que não existe equivalência ponto a ponto entre signo e mundo, nem pela via de uma arbitrariedade estrita, que gostaria de atribuir à imagem características estruturais semelhantes à da língua verbal. Nesse contexto, torna-se necessário e importante reconhecer o papel da instância da recepção e da percepção para a atividade interpretativa de imagens. Obviamente, uma dose de convenção será sempre acionada, já que [...] a relatividade semântica da foto se refere ao fato de que a percepção de imagens fotográficas possui elementos culturais [...], como observou Barthes, referindo-se às relações que são criadas na percepção, que uma vez sendo operadas, seleciona traços pertinentes para a observação baseados nas suas experiências prévias. Ou, como Metz preferiu colocar, a questão da analogia visual admite variações qualitativas, ou seja, a semelhança é apreciada diferentemente segundo as culturas. 7

Numa mesma cultura há vários graus de semelhança: é sempre numa certa relação que dois objetos se assemelham (Ibidem, 1973: 16). Em suma, o que dissemos até aqui a respeito de uma possibilidade diferente de análise fotográfica, pode ser colocado do seguinte modo: Com as devidas ressalvas, a fotografia só existe na medida em que existe algo para se fotografar (fotografia de algo), o que enfatiza a função indicial do meio. A ação do fotógrafo, a partir da utilização de um aparato tecnológico, resulta na materialização fotográfica numa superfície plana de um dado fragmento do espaço e do tempo. Segundo Kossoy (1988): Um artefato da realidade que contém em si um fragmento determinado da realidade registrado fotograficamente [...], e que poderia conferir à fotografia um status documental. Nesse sentido, vale acrescentar ainda que o próprio fotógrafo constitui-se num filtro cultural, que vai imprimir, de modo consciente ou não, suas visões de mundo na sua composição. Ao mesmo tempo, a fotografia só existe a partir do momento em que é percebida e lida, ou seja, quando interpretada e investida de sentido pelo receptor. Na fotografia, muito dessa percepção se dá por conta da dimensão icônica da imagem, que possibilita a seleção e a ordenação de códigos de reconhecimento pertinentes. É essa reivindicação do olhar do receptor, através de sua percepção não inocente, não natural, mas marcada por culturas, que permite o exercício interpretativo que desencadeia a significação semiósica. Nas palavras de Metz: Não há nenhuma razão em supor que a imagem possui um código que lhe seja inteiramente específico e que a explique por completo. A imagem é informada por sistemas bem diversos, dos quais alguns são propriamente icônicos e outros aparecem igualmente em imagens nãovisuais (Metz, 1973: 16-17). O que Metz ressalta é, em outras palavras, o fato de que pode haver diversos códigos em uma só mensagem e que, numa pesquisa semiológica, os cortes mais importantes não necessariamente têm a ver com unidades de intenção social nem com as matérias de expressão, mas com as relações, com os campos de comutabilidade no interior dos quais diversas unidades adquirem sentido, umas em relação às outras (Ibidem, 1973: 14). As idéias apresentadas neste texto pretendem funcionar apenas como um esboço para o desenvolvimento de uma análise que possibilite o diálogo entre essas duas maneiras de abordar a fotografia. Acreditamos ser através da articulação entre o aspecto 8

indicial e o analógico, o documental e o expressivo, o espontâneo e o construído numa imagem fotográfica, uma das vias possíveis para que possamos lançar um outro olhar em direção a novas possibilidades de interpretação da fotografia, esse meio que, apesar de antigo, ainda padece de reflexões mais abrangentes. BIBLIOGRAFIA AUMONT, Jacques. A Imagem. Trad. Estela dos Santos Abreu. São Paulo. Papirus,1993. BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro. Nova Fronteira: 1984.. A mensagem fotográfica. In: O óbvio e o obtuso. Trad. Lea Novais. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1990.. A retórica da imagem. In: O óbvio e o obtuso. Trad. Lea Novais. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1990. CAMPONE, Cleide Riva. Cal(e)idoscorpos. Um estudo semiótico do corpo e seus códigos. São Paulo: AnnaBlume, 1997. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. São Paulo: Papirus, 1994. ECO, Humberto. O olhar discreto: semiologia das mensagens visuais. In: A estrutura ausente. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1976. GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986 KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê, 2003. METZ, Christian. Além da analogia, a imagem. In: A análise das imagens. Seleção de Ensaios da revista Communications. Novas Perspectivas em Comunicação, 8. Petrópolis: Vozes, 1973. SANTAELLA, Lúcia e NOTH, Winfried. Imagem. Semiótica, cognição, mida. São Paulo: Iluminuras, 2005. 9