Associação Nacional de História ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA

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Transcrição:

Associação Nacional de História ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007 O tempo do progresso nas narrativas jornalísticas: uma história da imprensa fluminense Leticia Cantarela Matheus * Resumo: O artigo representa uma tentativa de elaboração de uma história do jornalismo no Rio de Janeiro, tendo em conta o trabalho de temporalização efetuado por meio das narrativas postas em circulação midiaticamente. Trata-se de meta-narrativas que realizam uma espécie de historiografia das práticas jornalísticas voltada para o público geral. O corpus é composto por edições comemorativas de periódicos fluminenses com mais de 100 anos. Nessas edições, são verificadas as articulações temporais das histórias do jornalismo, dos títulos celebrados e do Brasil, de modo a evidenciar as trajetórias e explicações que os periódicos atribuem a si bem como sua inscrição nos quadros temporais contemporâneos às edições. Palavras-chave: História do Jornalismo Narrativa Temporalidade Abstract: This paper shows an attempt to write a history of Rio de Janeiro's journalism, having in account the temporalization work made by putting midiatic narratives in circulation. These narratives built a kind of journalism historiography addressed to general public. The corpus is composed of special issues of centenarian newspapers in Rio de Janeiro. Based on these issues, it is possible to realise temporal articulations regarding journalism, enterprises and even Brazilian histories, in order to evidence explanations and importance attributed to newspapers as well as the way they inscribed theirowns on temporal squares. Key-words: Journalism History Narrative Temporalization Este artigo é fruto de um esforço em procurar questões interdisciplinares entre História e Comunicação. Ele parte de uma pesquisa, em fase inicial, que tem por objetivo contribuir para uma história do jornalismo que vá além de um inventário de periódicos, seus fundadores e datas de falência. A pesquisa tem como horizonte compreender o papel da representação no processo histórico, tendo em vista os diferentes modos de simbolização em permanente disputa. Ela procura investigar histórias do jornalismo fluminense contadas por três periódicos centenários do Estado do Rio, seu significado e sobretudo entender as bases simbólicas sob as quais essa sociedade elaborou o status jornalístico. A que necessidades correspondeu e corresponde esse conjunto de práticas comunicacionais? Em função de que expectativas o jornalismo tomou as formas que tomou nos últimos dois séculos no Rio? * Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense.

2 Nesta pesquisa, são analisadas meta-narrativas publicadas em edições de aniversário. Nelas, as empresas jornalísticas configuram narrativamente uma ou múltiplas trajetórias, procurando se explicar, apresentando publicamente argumentos acerca de sua relevância. Desfiando as tramas narrativas elaboradas por jornalistas em diferentes épocas, é possível perceber a relação entre esse conjunto de práticas comunicacionais e as noções compartilhadas de tempo. Não se trata, portanto, de estudar as representações jornalísticas do tempo, mas investigar o poder de temporalização do jornalismo bem como a própria inserção dos periódicos nos quadros temporais de uma dada sociedade. Jornais centenários do Rio de Janeiro Procurando as edições comemorativas de aniversário dos principais jornais do Rio de Janeiro, independentemente da época em que circularam, a pesquisa limitou-se aos periódicos mais longevos: Jornal do Brasil (116 anos), O Fluminense (129 anos) e Jornal do Commercio (180 anos), os três em circulação. As edições comemorativas exibem algumas características especiais em relação aos produtos noticiosos diários. Elas estão na fronteira entre duas frentes discursivas. Ao mesmo tempo em que se voltam para o público geral, são, antes de tudo, celebrações das empresas de comunicação e da imprensa enquanto instituição e por isso falam também aos profissionais que nela atuam. Contam histórias que refazem o percurso de jornais e dos jornalistas. Elaboram passados da atividade jornalística, suas múltiplas memórias em disputa e sua significação na época da publicação. A excepcionalidade discursiva dessas edições, entretanto, vai além da questão do leitor projetado. O conjunto referencial sobre o qual os jornais tratam, sob o prisma noticioso, costuma estar ancorado em acontecimentos recentes, sobretudo nos diários. Entretanto, essas edições apresentam enredos elaborados com base em passados mais remotos. Além disso, elas representam uma exceção no que concerne à temática do fluxo de notícias, principalmente pelo fato de tornarem o próprio jornal notícia. São, afinal, celebrações, momentos de suspensão do tempo noticioso para que o periódico se autoreferencie de modo explícito. Esses meta-discursos permitem visualizar o entendimento que os jornalistas tinham de sua inserção no tempo histórico. Como eles se revelaram? E qual a necessidade dessa exibição?

3 Ribeiro (1995) afirma que nesses espaços, que ela chama de lugares de autoreferenciação, o jornalismo "tenta construir uma imagem de si próprio e através dela se legitimar" (idem, ibidem: 12). Em algumas oportunidades, esses lugares representaram publicações inteiras (Jornal do Brasil, 100 anos, 1º de abril de 1991, e O Fluminense, 100 anos, 7 de maio de 1978), produzidas de tal modo que se apresentaram como uma espécie de grande retrospectiva histórica, válida para ser consumida em qualquer época e orientada por uma espécie de pedagogia do uso documental do jornal: Com o suplemento especial do 'Produto Fluminense', enfeixado em 8 cadernos, e mais o tablóide em policromia com a história dos '100 Anos de O FLUMINENSE', estamos dando hoje aos leitores uma visão do desenvolvimento do Estado do Rio e contando a nossa epopéia de 36 mil edições. Aliás, estes 90 cadernos-extras se completam numa documentação analítica, e por vezes, crítica, de uma terra ligada a seu jornal. São reportagens, depoimentos e pesquisas para serem guardados e consultados em termos quase enciclopédicos. Um século de jornal fiel à sua missão e à própria História do Estado do Rio. (O Fluminense, 07/05/1978: primeira página) Os jornais entrelaçaram narrativamente suas trajetórias à vida do país e até do mundo. Transmitiram a idéia de que todos os acontecimentos relevantes do Brasil e do mundo estavam contidos nas páginas do periódico e, conseqüentemente, na sua própria história, como se as duas se confundissem. Por exemplo, em sua edição centenária (1º de outubro de 1927), o Jornal do Commercio afirma que "vem evoluindo com a própria evolução nacional" (primeira página). Segundo Ribeiro (1995), o jornalismo justifica sua relevância social pela história: A mídia é elevada, assim, ao estatuto de porta-voz oficial dos acontecimentos e da transformação do social, o que lhe confere, enquanto registro da realidade, uma certa "aura". O jornalismo não só retrata a realidade e as suas transformações, mas também as registra, legando às sociedades futuras um testemunho sem igual. A mídia é a testemunha ocular da história. (Idem, ibidem: 27) O testemunhar da história pode ser entendido como o fato de a articulação das narrativas se dar de tal forma que elas fornecem um efeito de simultaneidade entre as histórias do jornal e do Brasil. Certamente, como conclui Ribeiro (op. cit.), a interpretação do sentido histórico está em disputa pelos dois campos (BOURDIEU, 2004): a historiografia e o jornalismo. A noção que se tem da história, em uma sociedade altamente midiatizada, é fruto de permanente disputa. Segundo Zelizer (1992), o jornalismo lutaria para se investir de uma

4 autoridade de enunciador de verdade, tendo em vista a competição com outros campos. Passa essa luta pelo domínio do tempo, sendo o jornalista um historiador do imediato? Nora (1976) acredita que desde o século XIX tem cabido cada vez mais aos meios de comunicação determinar o acontecimento histórico, ou seja, aquilo que irrompe do emaranhado cotidiano. O autor constata uma ansiedade característica do nosso tempo em enxertar sentido histórico nos fatos cotidianos, em um permanente esforço interpretativo do imediato, diante do qual os meios de massa se afirmariam. Mas, para isso, eles se valem de que tipos de temporalidades? Seriam elas contraditórias com as da historiografia? É, afinal, no tempo que se dá a disputa entre esses campos? Ou é a própria disputa fruto de uma dada consciência histórica, ancorada em uma dada temporalidade? 1 Em última instância, é preciso perguntar qual a relação entre o papel desempenhado pelos meios jornalísticos atualmente e as temporalidades que operam e com as quais são operados. Para Barbosa (1999), a mídia trabalha presentificando o passado. Sob o imperativo da novidade, ela estende o presente ao máximo, rompendo os laços fundadores entre passado/ presente e futuro. E esses laços são a condição inexorável para a consciência histórica. Entre tempo e narrativa Segundo Chesneaux (1986), experimentamos cotidianamente o tempo de múltiplas maneiras a partir de complexos arranjos, dentre os quais participa a mídia com seu tempomundializado. A mídia faria parte de um tempo instaurado pelo capitalismo através de um longo processo de padronização da medição do tempo, com os relógios, os fusos horários, entre outros instrumentos que permitiram e permitem uma referência temporal única para o sistema produtivo, de transportes, entre outros. Pomian (1984) explica também que a tecnologia da impressão está no centro de um longo processo de registro do tempo, ou seja, de sua instrumentalização. Nesse sentido, o próprio periodismo cotidiano está intimamente ligado à crença em um suposto domínio do tempo, no planejamento do futuro e no conhecimento científico da história. Como essa instrumentalização aparece nas narrativas jornalísticas? Como estudar o tempo na narrativa? Quem fornece a solução é Paul Ricoeur (1994), para quem há reciprocidade entre narratividade e temporalidade. Sua concepção deriva da junção entre reflexões de Santo Agostinho acerca do tempo e de Aristóteles sobre a representação. 1 Consciência histórica e temporalidade cf. HELLER, Agnes. Uma teoria da história. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1993.

5 Agostinho percebeu que "os lapsos de tempo não se encaixam simplesmente uns nos outros segundo quantidades numéricas, os dias nos anos, os anos nos séculos. De um modo geral, os problemas relativos à extensão do tempo não esgotam a questão do tempo humano" (idem, ibidem: 128). Por isso, Ricoeur foi levado a pensar que o tempo só se torna humano na medida em que é articulado de modo narrativo, ou seja, que só se realiza narrativamente. Interessado na ontologia do tempo, Agostinho (2005) afirma que, se o passado não mais existe e o futuro ainda não chegou, há, então, somente o presente: o presente das coisas presentes, o presente das coisas passadas e o presente das coisas futuras. O passado enquanto memória, o futuro enquanto esperança e projeto e o presente enquanto ação. Mas, novamente, outro paradoxo: se só o presente existe, como percebê-lo se o instante é sem espessura? Ricoeur conclui que aquilo que impede que o tempo não-seja é o dizer do tempo. O caráter aporético do tempo se resolve, portanto, poeticamente, pois é na narrativa que reconfiguramos nossa experiência temporal. Ricoeur (1994) adota essa compreensão e articula-a com a mimese aristotélica para pensar que o que fornece espessura ao instante é a narrativa, ou seja, que o tempo é humanizado pela linguagem. "É pela intriga que reconfiguramos nossa existência confusa informe e, no limite, muda" (idem, ibidem: 12). Ou seja, graças às intrigas (enredos) reconfiguramos o tempo, isto é, nossa existência prática. Por seu turno, a inteligibilidade narrativa se dá somente pela inteligibilidade temporal. Ou seja, a mimese fornece a mediação entre tempo e memória. Vetores de progresso As observações preliminares levam a crer que haja um posicionamento geral dos três periódicos estudados como vetores de progresso, ou seja, vetores de um tempo projetado para o futuro. Esse posicionamento, ou seja, essa inscrição temporal, seria voltada para dois públicos: aquele formado pelos jornalistas e os leitores em geral. Aos primeiros, as edições especiais se constituiriam em instrumento/ suporte de memória. Por outro lado, ao promoverem o compartilhamento de um mesmo passado entre jornalistas e seu público, as edições inscreveriam os periódicos como mediadores do tempo. Teleologicamente, produziriam uma ilusão retrospectiva, de modo a explicar, a posteriori, intenções do passado e instaurando futuros e ritmos no presente. De modo claro, o Jornal do Commercio se considera um fator de desenvolvimento do país. Na sua edição centenária, associa, por exemplo, a evolução da

6 medicina ao advento da imprensa no Brasil e atribui a ela a entrada do país no fluxo da história universal: Enquanto pelo velho mundo da Eurasia fervilhavam as ondas dos povos e raças, que durante séculos ali representavam o drama da [e]volução humana, traçando as páginas históricas da Humanidade, as vastidões da America jaziam arredadas de tudo isso, no torpor da anabiose, como elemento fecundável á espera do germe fundador. [...] Decretada a abertura dos portos, suspensa a prohibição de haver fabricas e manuffacturas, fundada a typographia official [...] promptamente desenvolveramse commercio, indústria, artes, letras e sciencias, de mais a mais se emancipando dos monopolios do reino... (Jornal do Commercio, 01/10/1927: 55) Já o Jornal do Brasil acentua um papel de guardião das liberdades de imprensa e individual, sobretudo na sua edição centenária (1991). A temporalidade é vetorial progressiva, elaborando seqüências causais. O jornal enfoca a simultaneidade dos tempos de sua história e da história nacional, reivindicando autoridade com base em sua longevidade e, conseqüentemente, poder para instaurar determinadas relações com o passado, fundando tradições: No nosso Brasil onde tudo é novo, onde as instituições adquirem com alguns lustros fóros de tradição, onde as coisas e os homens passam tão depressa, onde a viagem da evolução apaga todos os rastros de tanta coisa e de tanta gente, os cincoenta anos da labuta jornalística, hoje completados pelo Jornal do Brasil, já são por si só um galardão raro, precioso, na vida de uma folha carioca. (Jornal do Brasil, 09/04/1941: primeira página) Na mesma página, o diário ensina aos "não-iniciados" sobre o significado da data: Cincoenta anos de existência completa hoje o Jornal do Brasil. O feito talvez não se revista de sua expressão maxima para os que vivem fóra das lutas e atividades jornalísticas. Os que conhecem, entretanto, as dificuldades que dia a dia salteiam o trabalho de uma folha diaria, sabem que meio seculo de vida representa, de certo, vitoria, e não pequena. Considere-se o panorama desses cincoenta anos, desde o período inicial, quando o Jornal do Brasil apareceu, sob responsabilidade de uma elite de intelectuais, para participar das pelejas que acompanharam os primeiros tempos do regime republicano. (Jornal do Brasil, 09/04/1941: primeira página) Ainda que haja diferentes linhas editoriais, essas narrativas indicam uma linealidade temporal progressiva, direcionada para um futuro supostamente previsível e, por isso, controlável, mas ela adquiriria configurações próprias em cada periódico de acordo com sua inserção histórica.

7 Conclusão Embora cada um dos títulos conte uma história do jornalismo com diferentes contornos, a análise inicial leva a crer que eles se constituam em instrumentos de temporalização, a partir de seu poder de narratividade cotidiana, ao moverem as fronteiras do passado, do presente e do futuro, de acordo com o presente. Nesse sentido, os diários se inseririam no tempo histórico como mediadores do tempo. Seriam capazes de, ao articularem os tempos, fornecerem noções de decadência ou progresso, indicando aquilo que declina, aquilo que ascende, promovendo hierarquizações dos fenômenos, dilatando ou compactando o tempo, dizendo de acelerações ou retrações, fornecendo efeitos de rupturas com passados ou de inserções em futuros. A mediação do tempo pelo jornalismo, em sua forma hegemônica, dar-se-ia de modo vetorial para o futuro, conformando um tipo de racionalidade, que, por sua vez, favoreceria certas formas de organização social. Ao nos orientarmos para o futuro, e de forma cada vez mais acelerada, abandonamos outras temporalidades e outros ritmos, ampliando os abismos cognitivos e sociais também por meio dos distanciamentos temporais que produzimos. A despeito de a idéia de progresso ter fundamentado uma série de doutrinas nos últimos séculos (NISBET, 1985), é importante entender progresso aqui como uma percepção temporal de ruptura com o passado, de superioridade do presente em relação a ele e de direcionamento para um "futuro melhor" (LE GOFF, 1997: 303). A organização do discurso se projeta para o futuro e fornece um sentido de corte radical entre a sociedade em que vivemos e a sociedade que deveria, segundo a tese de alguns, existir, como se entre uma e outra não houvesse ligação prática no hoje. A quantos passados deixamos de pertencer performativamente? Em quantos futuros somos inseridos todos os dias na mídia? Enquanto tudo passa, a história muda, só o jornal permanece. Suas meta-narrativas nos dizem que é o jornal que dá estabilidade à existência, guardião da consciência cotidiana. Os jornais se fazem, assim, necessários, por se constituírem em ordenadores temporais, com ritmos e sentidos que favorecem certos modos de organização social. Daí, talvez, a constante preocupação, mobilização e fé de certos grupos sociais no jornalismo, como, por exemplo, os intelectuais. Por outro lado, é preciso ter cuidado para não realizar uma leitura simplista da relação entre os ideais de uma época e aquilo que foi posto em prática, sobretudo nas

8 diferentes camadas sociais e nas diferentes dimensões da cultura. Por isso, ainda que a noção de progresso possa ter pautado temporalmente o fazer jornalístico, não é possível descartar que há estratificações de ritmos, de tempos que se entrelaçam e se chocam. (VOVELLE, 1991) E é justamente essa "respiração fina" (idem, ibidem: 282) a principal contribuição que o campo da História pode dar à pesquisa em Comunicação. Referências BARBOSA, Marialva. Meios de comunicação, memória e tempo: a construção da "redescoberta do Brasil". Pesquisa de pós-doutorado em Comunicação Social. Laboratoire d'anthropologie des Institutions et des Organisations Sociales Laios/Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, 1999. BOURDIEU, Pierre. The Political Field, the Social Science Field, and the Journalistic Field. In: Journalistic Field. Cambridge: Polity Press, 2004. CHESNEAUX, Jean Marie. Habiter les temps. Paris: Bayard Éditons, 1986. HELLER, Agnes. Uma teoria da história. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1993. LE GOFF, Jacques. Passado/Presente. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 1. Portugal: Imprensa Nacional, 1997. Pp. 293-310. NISBET, Robert. História da idéia de progresso. Distrito Federal: Editora UnB, 1985. NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, JACQUES e NORA, PIERRE (orgs.). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editores Ltda., 1976. Pp. 179-193. POMIAN, Krysztof. L'Ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984. RIBEIRO, Ana Paula Goulart. A história do seu tempo. A imprensa e a produção do sentido histórico. Dissertação de mestrado. ECO/UFRJ, 1995. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas (SP): Papirus Editora, 1994, tomo I. SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Martin Claret, 2005. Pp. 211-284, livros 10º e 11º. VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, 2ª edição. Periódicos pesquisados: Jornal do Commercio maio de 1908 junho de 1908 setembro de 1908 outubro de 1928 edição especial de 1º de outubro de 1908 Jornal do Brasil maio de 1908 setembro de 1908 julho de 1908 abril de 1941 edição especial de 1º de abril de 1991 O Fluminense maio de 1928 maio de 1978 edição especial de 8 de maio de 1978