MEMÓRIA ORAL E TOPONÍMIA DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS DO TOCANTINS

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Transcrição:

335 MEMÓRIA ORAL E TOPONÍMIA DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS DO TOCANTINS Lucília Paula de Azevedo Ferreira (UFT/Bolsista PIBIC/UFT) luciliapaula@uft.edu.br Karylleila dos Santos Andrade (UFT) karylleila@gmail.com INTRODUÇÃO Este estudo é um recorte do macro projeto ATT Atlas Toponímico do Tocantins, vinculado ao Atlas Toponímico do Brasil ATB. O objetivo deste trabalho é realizar um estudo 1 dos nomes das comunidades remanescentes de quilombos, com foco nos estudos linguísticos e nas práticas culturais e históricas. Pretende-se, ainda, descrever e analisar, por meio da memória oral, os topônimos (nomes de lugares) 2 de nove comunidades, a saber: Malhadinha e Córrego Fundo, município de Brejinho de Nazaré; Morro de São João, município de Santa Rosa do Tocantins; Lagoa da Pedra, município de Arraias; Redenção, município de Natividade; Ambrósia, Formiga, Mumbuca e Carrapato, município de Mateiros. O percurso metodológico utilizado no estudo é o plano onomasiológico de investigação apresentado por Dick (1990). Por meio de um conceito genérico se identificam as variáveis possíveis das fontes consultadas. Para analisar a origem/etimologia dos nomes das comunidades em estudo, quanto à sua motivação, nos pautaremos na memória oral dos moradores. A técnica de pesquisa utilizada é a pesquisa de campo. Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas que foram gravadas e, posteriormente, transcritas. A ideia é descrever e analisar o que os moradores dizem acerca do nome das comunidades, por meio da memória oral e narrativas, para tomarmos conhecimento da(s) história(s) que 1 Os dados a serem investigados já foram coletados pela equipe do projeto Convênio CNPq/SECT/N 700.349/2008 no valor de R$ 35.000,00 (período de agosto de 2011 a maio de 2012). 2 Estudo dos nomes de lugares. Toponímia é uma subárea da Onomástica (estudo dos nomes próprios).

336 envolve(m) a escolha/motivação dos nomes. Por fim, serão classificados os nomes das comunidades, conforme a metodologia sugerida por Dick (1990). A autora divide os fatos que envolvem a cosmovisão de um dado grupo ou realidade em dois aspectos: físico e antropocultural. A pesquisa é de abordagem qualitativa. Nossa intenção é compreender e interpretar os fenômenos, considerando seus significados e contextos, tarefas presentes na produção de conhecimentos. Toponímia: breves anotações A palavra toponímia vem do grego topos (lugar) e onoma (nome). E designa a área dedicada aos estudos dos nomes de lugares, os designativos geográficos: físico, humano, antrópico ou cultural. Suas particularidades são a busca pela etimologia, o significado e as transformações linguísticas. A toponímia reflete de perto a vivência do homem, enquanto ser individual e membro do grupo que o acolhe. Carvalhinhos (2002/2003, p. 173) refere-se à toponímia como um elemento catalisador de memória: O que se pretende comprovar é a imutabilidade do homem, independente de variantes cronoespaciais: a estrutura profunda de um nome (motivo ou última instância resultante da análise de um discurso toponímico, isto é, quando realmente se logra chegar à ideologia do denominador em questão, revelando todo um pendor ideológico de determinada era humana), a estrutura profunda do topônimo é a mesma em qualquer tempo e espaço, embora sua capa linguística mude conforme as variantes culturais. (CARVALHINHOS, 2002/2003, p. 173). O topônimo é o resultado da ação do nomeador ao realizar um recorte no plano das significações, representações, ou seja, praticar um papel de registro no momento vivido pela comunidade. (SAPIR 1984 citado por ANDRADE, 2010, p. 106). Sobre a história social contida nos nomes, Carvalhinhos relata que: Os atuais estudos onomásticos no Brasil vêm justamente resgatando a história social contida nos nomes de uma determinada região, partindo

337 da etimologia para reconstruir os significados e, posteriormente, traçar um panorama motivacional da região em questão, como um resgate ideológico do denominador e preservação do fundo de memória. (CARVALHINHOS, 2002/2003, p. 172). Para os estudos toponímicos, a memória tem sido matéria-prima do reviver do outro para a nossa própria reflexão. Enquanto pesquisador, cabe-nos refletir sobre a informação relembrada, trabalhá-la contextualizando sua historicidade. Somá-la a outras informações, documentos e análises para, em seguida, trabalhar sobre o conjunto de informações disponíveis. Memória oral Quando nos reportamos à palavra memória, julga-se necessário defini-la, pois se torna quase impossível referir-se ela sem fazer referência à identidade de grupo. Nas sociedades tradicionais a memória individual e a coletiva se fundem, é isso que nos fala Benjamin (1994) em O Narrador: a síntese que perpassa o passado individual e o coletivo numa situação de comunicação baseia-se na oralidade. Enquanto a memória individual se dá em um processo individual de reminiscência, a coletiva se assenta na especificação de uma problemática grave que reúne pessoas e possibilita o ordenamento identitário marcado por afinidades politicamente estabelecidas (MEIHY, 2000, p. 97). Somam-se ainda a estes dois tipos de memória, a histórica e a social. A primeira é produzida a partir de documentos e registros materiais; a segunda corresponde ao conjunto de manifestações de grupos que conservam modos de produção, fazeres e visões sistematizadas sobre si e sobre o mundo. Quando estamos a coletar nossas informações factuais, nossa preocupação devese centrar não na quantidade, mas fazer emergir dessas informações uma visão de mundo. Bosi (2003, p. 19) provoca: Como arrancar do fundo do oceano das idades um fato puro memorizado? Quando puxarmos a rede veremos o quanto ela vem carregada de representações ideológicas. Nesse caso, a narrativa aponta para uma complexidade do acontecimento. É o ponto que permite relacionar/ligar a história com o quotidiano.

338 Para Meihy (2000, p. 94), Memórias são lembranças organizadas segundo uma lógica subjetiva que articula elementos que nem sempre correspondem a fatos concretos, objetivos e materiais. As memórias podem ser individuais, sociais ou coletivas. Frochtengarten (2005, p. 374) diz que a narração de memórias de vida propicia um trabalho de elaboração psíquica no qual reside outra razão para a ascensão da memória oral. Quando conta sua biografia, o memorialista não tem a oferecer um discurso completo e definitivo sobre o vivido. Uma narração é uma prática da linguagem em processo e que se renova a cada experiência de recordar, pensar e contar. Comunidades remanescentes de Quilombos no Tocantins Conforme dados do governo do estado do Tocantins, já foram reconhecidas, até o presente momento, 29 comunidades remanescentes de quilombos, as quais compreendem o patrimônio cultural estadual com características peculiares que as distinguem umas das outras, e de toda a sociedade circundante. Apresentam semelhanças no que diz respeito ao uso e à ligação com a terra, onde estão localizadas. A terra é usada para manutenção na produção de alimentos necessários à sustentabilidade, e é o local onde seus antepassados estão enterrados. Com isso, estabelecem um sentimento de pertencimento com o local, território onde as raízes culturais estão fincadas, resistindo às ações do homem e do tempo. Os topônimos das comunidades remanescentes de quilombos do Tocantins A partir da memória oral dos moradores, tomamos conhecimento da cosmovisão de mundo das comunidades em estudo, e da(s) muitas história(s) envolvida(s) na escolha dos nomes. Como a memória vai se esvaindo com o passar do tempo, identificamos algumas informações incompletas acerca da motivação do nome.

339 Quanto ao significado cultural dos nomes, Claval (2001, p. 189) citado por Seemann (2005, p. 209) afirma que todos os lugares habitados e um grande número de sítios característicos na superfície da Terra têm nomes frequentemente há muito tempo. A toponímia é uma herança preciosa das culturas passadas. (CLAVAL, 2001, p. 189 citado por SEEMANN, 2005, p. 209). Comunidade Malhadinha A comunidade Malhadinha está situada na zona rural do município de Brejinho de Nazaré, a 31 km da sede do município, e a 22 km do município de Porto Nacional. (memória oral) Malhadinha (nome atual) Município de Brejinho de Nazaré TO a) O nome Malhadinha surgiu do lugar onde se criava gado solto. Era, na verdade, o lugar onde o gado dormia malhada do gado. b) Outros relatos defendem que a palavra malhada vem do gado que era mestiço, a pelada era malhada, ou seja, de várias cores. c) Segundo depoimentos, o primeiro nome do local foi Fazenda Felipe. a) Ecotopônimo b) Cromotopônimo c) Antropotopônimo Segundo Cunha (2010, p. 403), malhada vem do latim magalĭa-ĭum cabana, choupana. Constam, ainda, os significados de cabana de pastores, curral de gado. O nome Malhadinha, referente à letra a, faz parte da taxionomia dos ecotopônimos (topônimo relativo às habitações em geral), a letra b refere-se aos cromotopônimos (topônimo relativo a cor: malhada ). E letra c, à taxionomia dos Antropotopônimos (topônimo relativo a nome de pessoa Filipe ).

340 Comunidade Córrego Fundo Andrade, Esteves e Lima (2010, p. 107 a 108) afirmam que Córrego Fundo é uma comunidade que se formou a partir de migrações de vários camponeses negros, oriundos de fazendas localizadas na região do município de Brejinho de Nazaré. Topônimo nome Córrego Fundo (nome atual) Brejinho de Nazaré TO Segundo relatos dos moradores, há um córrego, próximo à comunidade, que nunca seca. Devido a sua importância para os moradores, o lugar foi nomeado de Córrego Fundo. Dimensiotopônimo Caracterizamos o topônimo Córrego Fundo como dimensiotopônimo, ou seja, topônimo relativo às características dimensionais do acidente geográfico, profundidade, fundo. Comunidade Morro de São João A comunidade está situada há 20 km do município de Santa Rosa. Atualmente, sua população é constituída por 70 famílias. Essa comunidade não conta com registros escritos sobre sua história, podendo ser conhecida pelos relatos orais de seus moradores. Morro de São João (nome atual) Santa Rosa do Tocantins a) Nas redondezas tem um morro que servia de cativeiro para esconder negros. O nome São João foi escolhido devido ao padre Bernaldino (antigo dono das terras onde hoje é a comunidade) ser devoto de São João. b) O primeiro nome foi Fazenda Roma a) Geomorfotopônimo/Hagiotopônimo b) Corotopônimo

341 Pela importância do nome Morro de São João, classificamo-lo, considerando tanto a motivação para o termo genérico quanto o específico, como Geomorfotopônimo (topônimos relativos à forma topográfica morro ) e hagiotopônimo (topônimos relativos ao santo São João ). Para Fazenda Roma, a taxionomia é Corotopônimo, dado que se relaciona a nomes de uma capital de país, Itália. Comunidade Lagoa da Pedra A comunidade remanescente de quilombo Lagoa da Pedra localiza-se há cerca de 33 km de Arraias. De acordo com Lima (2006, p. 12), o povoado é composto por 33 famílias, contando 177 pessoas. Lagoa da Pedra (nome atual) Arraias Tocantins O nome Lagoa da Pedra originou-se do fato de existir uma lagoa com uma pedra no meio. Litotopônimo O nome Lagoa da Pedra pode ser classificado como um litotopônimo (topônimo relativo à constituição do solo, pedra ). Comunidade Redenção Redenção é um nome recente. A localidade era conhecida como Fazenda Custódio ou somente Custódio, ou mesmo por Gameleira, utilizado por causa de um pé de gameleira.

342 Os moradores dividiram o povoado em três partes: 1) Gameleira, na entrada, e à direita do córrego Cocal; 2) Manoel Carvalho; 3) do lado esquerdo do córrego, a Macabeira. Redenção (nome atual) Natividade Tocantins a) Fazenda Custódio primeiro nome b) Redenção nome atual c) A localidade é dividida em vários núcleos: Gameleira, Macabeira, Manoel Carvalho. Identificamos, ainda, os nomes Chiquinho e Custódio. Segundo os relatos, cada morador ou família tinha que nomear o seu lugar para se diferenciar das demais áreas, e assim poder trabalhar com o plantio para a subsistência. a) Antropotopônimo (nome relativo a pessoas, Custódio ) b) Animatopônimo (topônimo relativo à vida psíquica, à cultura espiritual, Redenção ). c) Gameleira Fitotopônimo (topônimo relativo à índole vegetal) d) Supõe-se que o nome Macabeira seja a passagem de bacabeira para macabeira, isto é, a transformação de b > m. A partir disso, podemos classificar em Fitotopônimo (topônimo relativo à índole vegetal) e) Manoel Carvalho - Antropotopônimo (nome relativo a pessoas) Segundo o dicionário Houaiss (2010, p. 1424), gameleira significa: nome comum a árvores cuja madeira é usada para confecção de gamelas e objetos domésticos. E bacaba significa tipo de palmeira, vem do tupi iwa kawa de iwa (fruta) + kawa (gorda, graxa), cp macaba. (HOUAISS, 2010, p. 370). E Redenção significa salvação moral ou religiosa (HOUAISS, 2010, p. 663). Comunidade de Ambrósia A comunidade Ambrósia está situada no município de Mateiros, região do Jalapão. Segundo uma moradora, a comunidade é composta por seis famílias. O nome

343 Ambrósia foi escolhido porque tem um brejinho chamado Ambrósio. 3 Guérios (2004, p. 59 e 60) assinala que Ambrósio é de origem latina Ambrósius, do grego Ambrósios, que quer dizer imortal, divino. Ambrósia Mateiros - Tocantins O nome foi motivado pela existência de um brejinho chamado Ambrósio. Animotopônimo / antropotopônimo Devido ao nome Ambrósia significar imortal, divino, incluímos o nome da comunidade na categoria dos animotopônimos (topônimo relativos à vida psíquica, à cultura espiritual, abrangendo todos os produtos do psiquismo humano). Mas pode também ser um antropotopônimo (relativo a nome de pessoas), dado que não ficou claro nas entrevistas. Comunidade Formiga A comunidade Formiga está situada no município de Mateiros, região do Jalapão. Ao perguntarmos a um dos moradores o porquê do nome, o morador diz que: Formiga é aquele brejo que é a cachoeira do Formiga. 4 Na região, há um córrego e uma cachoeira chamado Formiga, considerados pontos turísticos importantes para a região do Jalapão. Formiga Córrego Formiga Mateiros Tocantins O nome foi escolhido devido à existência de um córrego e 3 Entrevista realizada aos 10/02/2013. 4 Enelci Matos Mendes. Entrevista concedia aos 10/02/2013.

344 uma cachoeira, ambos com o nome de Formiga, pontos turísticos da região do Jalapão. Zootopônimo Formiga se classifica na categoria dos zootopônimos (topônimo de índole animal, representado por indivíduos domésticos, não domésticos e da mesma espécie). Comunidade Mumbuca O povoado Mumbuca está situado em uma região dentro do parque do Jalapão, 30 km do município de Mateiros. O povoado foi formado basicamente por negros, que vieram da Bahia em busca de melhores condições de sobrevivência, durante a primeira década do século XIX. Mumbuca (nome atual) Mateiros - Tocantins a) Ziado = Veado (z > v) primeiro nome dado à comunidade b) Mumbuca abelhas a) Zootopônimo b) Zootopônimo O primeiro nome Ziado, uma referência ao animal veado, e o nome atual Mumbuca, ambos, se inscrevem na categoria dos zootopônimos (topônimo de índole animal, representado por indivíduos domésticos, não domésticos e da mesma espécie). Comunidade Carrapato Carrapato localiza-se no município de Mateiros, região do Jalapão. Um dos moradores nos informa que a comunidade se chama Carrapato por causa de um córrego

345 que tem este mesmo nome: É porque a tradição do povo é antiga, o córrego que desce esse rio é chamado Carrapato, é um córrego. Carrapato Mateiros - Tocantins O nome Carrapato foi escolhido por causa da existência de um córrego na região com o nome de Carrapato. Zootopônimo Carrapato se classifica na categoria dos zootopônimos (topônimo de índole animal, representado por indivíduos domésticos, não domésticos e da mesma espécie). A escolha dos nomes, conforme relatos dos moradores, em sua maioria, foi influenciada por aspectos físicos, encontrados na região, tais como: morro, córregos, animais etc. Em seguida vêm as motivações relativas à natureza antropo-cultural: cultura espiritual, nome de santos e pessoas, etc. Os nomes de lugares não podem se restringir à função de mera referência, pois há identidades múltiplas por traz dos topônimos. Dessa maneira, como diz Bullock (2004) citado por Seemann (2005, p. 221), a análise da toponímia se aproxima dos valores humanos (ou melhor, humanísticos), porque os nomes se tornam um armazém histórico, social e cultural através das suas associações e valores variados, no contexto do seu fundo ontológico (BULLOCK, 2004 citado por SEEMANN, 225, p. 221). REFERÊNCIAS ANDRADE, Karylleila. Atlas toponímico de origem indígena do Tocantins. Goiânia: PUC, 2010. ANDRADE, Karylleila; ESTEVES, Franscisco; LIMA, Sibéria. Perfil sociolinguístico e socioeconômicos das comunidades remanescentes de quilombolas do estado do Tocantins: Considerações iniciais. Revista EntreLetras. PPGL UFT. V.1, N. 1, Araguaína, 2.sem de 2010.

346 BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. Ensaios de psicologia social. 2 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. CARVALHINHOS, Patrícia de Jesus. Onomástica e Lexicologia: o léxico toponímico com catalisador e fundo de memória. Estudo de caso: os sociotopônimos de Aveiro (Portugal). Revista USP, São Paulo, n. 56, p. 172-179, dezembro/fevereiro 2002-2003. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário da língua portuguesa. 4 ed. Revista pela nova ortografia. Rio de Janeiro: Lenikon, 2010, p. 540. DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. A motivação e a realidade brasileira. Arquivo do Estado de São Paulo, São Paulo 1990. FROCHTENGARTEN, Fernando. A memória oral no mundo contemporâneo. Estudos Avançados. 19 (55), 2005. GUÉRIOS, Rosário Farâni Mansur. Dicionário Etimológico de Nomes e sobrenomes. 5 ed. São Paulo: Artpress, 2004. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 4. Ed. rev. e aumentada. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. LIMA, Sandra Maria Faleiros. Comunidades Remanescentes de Quilombo Lagoa da Pedra e Kalunga Mimoso Arraias Tocantins. Revista da ANPOCS, 2006. Disponível em: <http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid= 3431&Itemid=232>. Acesso em: 09 jun. 2013. MEIHY, José Carlos S. Bom. Manual de História Oral. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2000. SEEMANN, Jörn. A Toponímia como construção histórico-cultural: o exemplo dos municípios do estado do Ceará. Vivência. N. 29, 2005, p. 207-224.