Terra Indígena Avá-Canoeiro Demarcação indefinida: risco de sobrevivência étnica



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Transcrição:

Terra Indígena Avá-Canoeiro Demarcação indefinida: risco de sobrevivência étnica Luciano Alves Pequeno 1 Resumo - Este artigo tem por objetivo abordar a incerteza quanto à regularização fundiária da Terra Indígena Avá-Canoeiro, processo que já dura 33 anos, desde as primeiras tentativas de consolidar os limites de espaço territorial de ocupação racional necessário ao bem-estar físico e cultural dos índios Avá-Canoeiro. Esta situação se configura em um fator de grande risco à possibilidade de recomposição desse povo, que hoje conta com somente seis indivíduos e sofre consequências de uma usina hidrelétrica cujas instalações incidem sobre suas terras. Palavras-chave: Avá-Canoeiro. Regularização fundiária. Sobrevivência étnica. Demarcação. Os primeiros esforços para definir oficialmente um território destinado aos índios Avá-Canoeiro localizados no alto rio Tocantins foram as propostas apresentadas pela equipe de Frente de Atração durante os trabalhos da Expedição Avá-Canoeiro, em 1973. A área abrangia a margem direita do rio Tocantins, neste trecho regionalmente denominado rio Maranhão, não incidindo na margem esquerda deste rio, supostamente porque as frentes de contato para esses índios, criadas desde os primeiros anos da década de 1940 2, não conheciam e não dispunham de informações suficientes a respeito dos locais de ocupação tradicional deste grupo indígena. A confirmação de uso tradicional de áreas situadas na margem esquerda do rio Tocantins ocorreu após o efetivo contato com os Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Brasília, v.2, n.2, p. 171-182, dez. 2005

LUCIANO ALVES PEQUENO índios, em 1983. Os responsáveis pela Frente de Atração dos índios Avá-Canoeiro fixaram-no na foz do córrego dos Macacos, afluente da margem esquerda do rio Maranhão, após percorreram as chamadas áreas de perambulação do grupo indígena. Sertanista Canguçu percorre a região próxima ao córrego dos Macacos juntamente com os índios. Registra os muitos sinais da existência de antigas aldeias no local (restos de casas, pilões, mamoeiros, etc.) e o depoimento dos regionais de que ali era, já há alguns anos, uma posse dos índios. (Toral, 1984, p. 7-8). A continuidade dos estudos de regularização do território tradicional dos índios Avá-Canoeiro ocorreu em 1982 por determinação da Portaria da Funai nº 1471/E, de 02 de dezembro de 1982, com o propósito de promover estudos e levantamentos visando localizações de grupos indígenas arredios Avá-Canoeiro no Estado de Goiás, para fins de interdição de área, os quais resultaram na proposta de interdição de uma área objetivando a atração e pacificação dos Avá-Canoeiro de 38.000 hectares. Tais estudos foram posteriormente complementados por determinação da Portaria da Funai nº 1794/E, de 14 de novembro de 1984, para proceder a estudos junto aos Avá-Canoeiro recém-contatados, no sentido de subsidiar e embasar a confirmação da área proposta. Os estudos e pesquisas resultaram na interdição da área indígena Avá- Canoeiro, conforme a Portaria nº 1850/E, de 08 de abril de 1985, com uma superfície de 38.000 hectares, situada nos municípios de Minaçu e Cavalcanti, estado do Goiás. Posteriormente, a Funai determinou novos estudos complementares, realizados em 1994, por meio da Portaria nº 784, de 172

TERRA INDÍGENA AVÁ-CANOEIRO DEMARCAÇÃO INDEFINIDA: RISCO DE SOBREVIVÊNCIA ÉTNICA 31.08.1994, os quais confirmaram os limites da área interditada para a Terra Indígena Avá-Canoeiro, caracterizando-a como terra de ocupação tradicional, sendo imprescindível a sua demarcação física. Passados 23 anos dos estudos iniciais sobre a definição do território tradicional Avá-Canoeiro, o Ministério da Justiça expediu a Portaria Declaratória nº 598, de 02 de outubro de 1996, publicada no DOU de 04.10.1996 3, declarando como de posse permanente dos índios a Terra Indígena Avá-Canoeiro, situada nos municípios de Colinas do Sul e Minaçu, estado de Goiás, com superfície aproximada de 38.000 hectares, determinando que a Funai procedesse à sua demarcação administrativa para posterior homologação. Somente 3 anos mais tarde, em 1999, a Funai iniciou o procedimento demarcatório da Terra Indígena Avá-Canoeiro. E, ainda hoje, os índios aguardam a respectiva homologação. O procedimento administrativo de regularização fundiária da Terra Indígena Avá-Canoeiro não foi concluído. Apesar de estarmos aguardando há aproximadamente 33 anos, desde as primeiras tentativas para consolidar os limites do espaço territorial de ocupação tradicional necessário ao bem-estar físico e cultural dos Avá-Canoeiro, os quais vivem, ainda hoje, um sério risco iminente de extinção, os obstáculos burocráticos/administrativos impostos por Furnas Centrais Elétricas S.A., responsável pelo cumprimento de todos os acordos e termos de ajustes celebrados com a Funai, (Convênios nº 023/1986 e nº 10.323/1992 4 ), visando a promover as condições reais de sobrevivência dos Avá-Canoeiro, vêm desrespeitando as determinações e os compromissos ratificados e estabelecidas pelo Decreto Legislativo nº 103/1996. 173

LUCIANO ALVES PEQUENO Esclarecemos que as influências e interferências de Furnas neste processo têm causado sérios e graves prejuízos aos direitos indígenas. Simultaneamente aos estudos realizados pela Funai em 1982, na definição com vistas a assegurar um território para os Avá-Canoeiro, o Governo Federal outorgava a Furnas Centrais Elétricas S.A., em 1981, Decreto nº 85.983, de 06 de maio de 1981, concessão para um conjunto de aproveitamento de energia hidráulica no trecho do curso principal do rio Tocantins e seus afluentes da margem direita e esquerda. Os estudos empreendidos por Furnas definiram na região a construção de três empreendimentos, quais sejam: Usinas Hidrelétricas de Serra da Mesa, Cana Brava e Peixe. Furnas optou por priorizar a construção da UHE Serra da Mesa. Desde essa época, mais intensivamente a partir de 1984, ou seja, um ano após o contato com os Avá-Canoeiro, Furnas iniciou as obras, com a implantação do canteiro de obras, acampamentos, estradas de acesso e demais obras associadas ao empreendimento. O canteiro de obras da empresa ficava a apenas 05 km do Posto de Atração Avá-Canoeiro, instalado pela Funai, onde estavam residindo os 04 índios recém-contatados. Nos primeiros anos da construção da UHE Serra da Mesa, os índios eram sucessivamente encontrados passando pelo canteiro de obras, expostos a todos os perigos advindos de uma obra gigantesca, além do contato com o grande número de operários de diversas empreiteiras vinculadas à obra. O Aproveitamento Hidroelétrico (AHE) de Serra da Mesa não considerou o aspecto indígena no afã da abertura de novos horizontes desenvolvimentistas no Centro- Oeste goiano. A implantação da Usina Hidrelétrica (UHE) Serra da Mesa por Furnas atingiu os limites da Terra Indígena Avá-Canoeiro, 174

TERRA INDÍGENA AVÁ-CANOEIRO DEMARCAÇÃO INDEFINIDA: RISCO DE SOBREVIVÊNCIA ÉTNICA causando sérios impactos, diretos e indiretos, aos indígenas e ao meio ambiente, entre os quais destacamos a inundação de uma área de aproximadamente 3.163 hectares da terra indígena, correspondendo em média a 10% do território, além da abertura de estradas, linhas de transmissão, retirada de material argiloso para edificação da barragem, sem mencionar que parte da barragem propriamente dita e diques de contenção também se situam no interior da terra indígena. A obra foi concluída em outubro de 1996, dando início à fase de enchimento do reservatório, ao longo de dezoito meses. O Decreto Legislativo nº 103/1996, o qual autorizou o Aproveitamento Hidroelétrico Serra da Mesa, determinou que Furnas, num prazo de 180 dias, realizasse a compensação da área equivalente inundada na referida terra indígena, previamente aprovada pela Funai. Os estudos objetivando à indicação de áreas prioritárias para a reposição a ser feita por Furnas, realizados por determinação da Portaria da Funai nº 104/PRES/97, constantes no Relatório Sobre Reposição da Área Inundada à Terra Indígena Avá-Canoeiro, concluíram que as Áreas Prioritárias seriam as que abrangiam as bacias formadoras das cabeceiras do córrego Pirapitinga, Lageado e Macaco, e a Área Complementar seria a que abrangia as cabeceiras do córrego formador do braço direito do córrego João Vieira (ver mapa anexo). No entanto, foram apontadas dificuldades por Furnas, para a aquisição de alguns dos imóveis situados nas Áreas Prioritárias definidas pela Funai, sobretudo na região das cabeceiras do córrego Pirapitinga, Lageado e Macaco. 175

LUCIANO ALVES PEQUENO A Funai concordou então que Furnas adquirisse os imóveis da Área Complementar, em face dos entraves de ordem legal apontados pelos técnicos da empresa para a aquisição imediata das Áreas Prioritárias da cabeceira do córrego Pirapitinga. Entretanto, ficou acordado que Furnas daria continuidade ao processo de aquisição das Áreas Prioritárias formadoras das cabeceiras do córrego Pirapitinga, tendo em vista essas áreas terem sido consideradas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos Avá-Canoeiro e à sua reprodução física e cultural. No decorrer dos trabalhos demarcatórios da Terra Indígena Avá-Canoeiro, em 1999, Furnas solicitou à Funai que procedesse à alteração dos limites da terra indígena, alegando que estruturas importantes da Usina Serra da Mesa estão inseridas no polígono da referida Terra Indígena. Enfatizou ainda que tais alterações seriam para preservar todas as condições de segurança operacional e patrimonial, imprescindíveis ao funcionamento da Usina Serra da Mesa. Tal solicitação foi submetida à análise da Funai, e, após parecer emitido pela Diretoria de Assuntos Fundiários/DAF/DEID, acatada, procedendo-se à alteração dos limites da Terra Indígena Avá-Canoeiro, que tem atualmente uma superfície de 38.702,7174 hectares, incluindo os imóveis da Área Complementar. Ressalta-se que esta alteração estava condicionada ao estabelecimento de um novo compromisso por parte da empresa quanto à aquisição das Áreas Prioritárias que abrangem as cabeceiras do córrego Pirapitinga. 176

TERRA INDÍGENA AVÁ-CANOEIRO DEMARCAÇÃO INDEFINIDA: RISCO DE SOBREVIVÊNCIA ÉTNICA Em 2000, a Funai cientificou Furnas da decisão, solicitando um posicionamento daquela empresa quanto à aquisição das terras situadas no extremo norte da Terra Indígena Avá-Canoeiro (cabeceiras do córrego Pirapitinga), até hoje pendente de resposta concreta. Faz-se oportuno salientar, com respeito às Áreas Prioritárias das cabeceiras do córrego Pirapitinga que, além de terem sido definidas como prioritárias para reposição por parte de Furnas, tendo em vista a área inundada em decorrência da construção da barragem da UHE Serra da Mesa, também havia ficado acordado em cumprimento ao Decreto Legislativo nº 103/96, que Furnas daria continuidade ao processo de aquisição das mesmas, independentemente desta nova situação de alteração dos limites da Terra Indígena Avá-Canoeiro. Ao longo desses aproximadamente 07 anos, desde o início da demarcação da Terra Indígena Avá-Canoeiro, várias correspondências oficiais da Funai foram encaminhadas a Furnas solicitando providências e soluções urgentes para poder concluir o processo demarcatório da terra indígena. Porém esta empresa continua se valendo de respostas evasivas e argumentando enfrentar as mesmas dificuldades de ordem legal para aquisição das áreas das cabeceiras do córrego Pirapitinga. Por conta desse impasse, entre outros, em março de 2001 a Funai decidiu recorrer ao próprio Congresso Nacional, encaminhando um dossiê contendo informações e documentos comprobatórios a respeito do descumprimento por parte de Furnas das determinações do Decreto Legislativo nº 103/96, ressaltando, sobretudo, o seu Art. 5º, o qual trata da suspensão da concessão da UHE, até a plena 177

LUCIANO ALVES PEQUENO regularização das pendências junto à FUNAI. O assunto tramita atualmente na Comissão de Serviços de Infra-Estrutura do Senado Federal, sob a designação PET nº 004/2003. Os índios Avá-Canoeiro habitam, atualmente, em região que faz parte de suas terras tradicionais. Desde a segunda metade do século XVIII, os Avá controlavam e dominavam vasta região do alto rio Tocantins, até começarem a sofrer, ao longo dos séculos, perseguições e expulsões territoriais com sangrentos e sucessivos massacres pelas frentes de expansão e colonização da região central do Brasil. A questão da indefinição quanto à demarcação da Terra Indígena Avá-Canoeiro é fator de grande risco para a possibilidade de recomposição do grupo indígena, que hoje conta com somente 6 indivíduos 5, após séculos de conflitos, culminando numa impetuosa redução populacional. A Terra Indígena Avá-Canoeiro constitui uma pequena fração de uma ampla área historicamente por eles ocupada, inclusive constitucionalmente garantida, sendo de posse inalienável e de usufruto exclusivo dos Avá-Canoeiro. Ocorre que, com o descumprimento das determinações legais assumidas perante a Funai, Furnas não só desconhece tais preceitos constitucionais como perde a legitimidade de sua inserção na terra indígena. Notas 1 Antropólogo/Diretoria de Assuntos Fundiários/Funai - Coordenador do Programa Avá-Canoeiro. 2 As Frentes de Contato oficiais para os índios Avá-Canoeiro iniciaram-se a partir de 1946, com a instalação do Posto dos Canoeiros, na Serra da Tromba, município de Amaro Leite, atual Mara Rosa/GO. Fatores de diversas ordens, quer sejam administrativos ou de dificuldades no estabelecimento de contato com esses índios ao longo dos anos, forçaram os órgãos indigenistas SPI/ 178

TERRA INDÍGENA AVÁ-CANOEIRO DEMARCAÇÃO INDEFINIDA: RISCO DE SOBREVIVÊNCIA ÉTNICA FUNAI a desativar e ativar, ao longo de 6 décadas, tais Frentes de Contato. Depois de efetivado o contato com os 04 índios Avá-Canoeiro do Alto Tocantins, em 1983, a Frente de Contato ainda permaneceu, ocasionalmente desativada e ativada nas incursões em busca de índios arredios até o ano de 2000. O contato feito com os 4 índios Avá-Canoeiro, que se encontram estabelecidos atualmente na Terra Indígena Avá-Canoeiro, ocorreu de forma inesperada e pacífica, em agosto de 1983, nas proximidades do córrego Pirapitinga, na região da Serra da Mesa, município de Minaçu/GO. Ao voltar de uma caçada, o agricultor Reginaldo Gomes dos Santos encontrou-se com quatro índios que estavam vagando na mata, os quais ao encontrá-lo, embora ficassem assustados, não fugiram. Este por sua vez levou-os para casa e comunicou o ocorrido à FUNAI/GO. 3 Coincidentemente no mesmo mês de outubro/1996, o Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 103, de 24 de outubro de 1996, autoriza o Poder Executivo, por intermédio da Concessionária Furnas Centrais Elétricas S.A. - Furnas, a realizar o aproveitamento hidroelétrico (AHE) da Serra da Mesa, localizado em trecho do rio Tocantins, nos municípios de Colinas do Sul e Minaçu, estado de Goiás. Entre outros artigos, o Art. 2º, determina: Todos os concessionários de utilização da UHE Serra da Mesa, tanto os atuais quanto os que vierem a sucedê-los, ficam obrigados a manter e cumprir integralmente os convênios, ajustes e termos de cooperação celebrados com a Fundação Nacional do Indio - Funai, relacionados a este empreendimento e que visam a proteção e compensação da nação indígena Avá-Canoeiro.Na verdade, importa salientar que este Decreto serviu apenas para consumar um fato, pois no momento da edição deste Decreto a construção da UHE Serra da Mesa já havia sido praticamente concluída. 4 Em 25/11/1986, foi assinado o primeiro convênio, nº 023/86, ajustado entre Furnas e Funai, tendo como objeto a Proteção e relocalização dos Avá-Canoeiro que habitam a região da Serra da Mesa, em Goiás e prazo de vigência de dois anos. O Convênio nº 10.323/92, ajustado entre Furnas e Funai em 1992, constituía o estabelecimento da forma de compensação à comunidade indígena Avá-Canoeiro, face aos impactos diretos e indiretos decorrentes da implantação da UHE Serra da Mesa, seu respectivo sistema de transmissão e demais obras associadas, com prazo de vigência de dez anos. O Convênio estabelecia quatro partes para fins de compensação aos Avá-Canoeiro, sendo: Localização e Contato dos Índios Avá-Canoeiro Isolados, Re-estudo dos Limites da Terra Indígena, Regularização Fundiária e o Programa Avá-Canoeiro. Este Convênio expirou a sua validade em junho de 2002, sem o devido êxito na implementação em sua totalidade. A Funai enviou a Furnas nova minuta de convênio, juntamente com o Programa de Apoio aos Avá-Canoeiro, em abril de 2004, e até o momento não obteve manifestação por parte de Furnas Centrais Elétricas S.A. 179

LUCIANO ALVES PEQUENO 5 Após o contato com os 04 índios: Iawi (45 anos), Matxa (67 anos), Nakwátxa (60 anos) e Tuia (35 anos), realizado em 1983, nasceram duas crianças: um menino - Jatulika e uma menina - Niwatima. Hoje, estão com 19 e 17 anos, respectivamente. As idades dos índios mais velhos são estimativas aproximadas atuais. Documentos consultados FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Processo FUNAI/BSB/ 1241/71. Brasília, 1971.. Processo FUNAI/BSB/ 1166/73. Brasília, 1973.. Processo FUNAI/BSB/ 0253/83. Brasília, 1983.. Processo FUNAI/BSB/ 0317/99. Brasília, 1999. GOMES, Mercio Pereira et al. Peça antropológica. Rio de Janeiro: IPARJ, 1995. PROGRAMA de Apoio aos Avá-Canoeiro. Brasília: FUNAI, 2005. TORAL, André do Amaral. Situação e perspectivas de sobrevivência dos Avá-Canoeiro. Rio de Janeiro: PPGAS- MN,UFRJ, 1984.. 180

Anexos Terra Indígena Avá-Canoeiro Terra Indígena Avá-Canoeiro Terra Indígena Avá-Canoeiro FUNAI, 1997.

LUCIANO ALVES PEQUENO 182

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