TERCEIRA PARTE PARÂMETROS PARA UM PROJETO NACIONAL
1. AS DIMENSÕES DE UM PROJETO NACIONAL A primeira parte deste livro analisou o esgotamento, ou a crise dos fundamentos da organização social ainda vigente neste final de século, e as conseqüências da sobrevida que deles se pretende manter continuando, através deles a ordenar a sociedade, organizando-a ou desestruturando-a ou fazendo-a caminhar no rumo de alguma forma de impasse ou de ruptura do processo. A segunda parte, deteve-se num esforço de identificar e caracterizar os conteúdos dos fundamentos que deverão reordenar a nova organização social, a era da globalização, da interdependência e da mudança contínua, humanizando-a. Esta terceira parte objetiva delinear um projeto para o Brasil, coerente com esses fundamentos, ou seja, que viabilize uma organização social desconcentrada e cooperativa, capaz de reverter a crise que afeta o país e transformá-la em oportunidade para um novo caminho. O objetivo não é, simplesmente, provar que é possível conciliar uma proposta teórica com a prática. É, efetivamente, buscar uma contribuição no rumo da superação consistente da crise que se agrava no país e propor rumos alternativos ao processo de desenvolvimento brasileiro, embasado na concentração contínua e na crescente exclusão e por isto ele mesmo, em contínua crise. Para que esta reordenação ocorra, algumas questões podem se contrapor a esse propósito e devem, por isto, ser consideradas: os que detém o poder e a riqueza concentrados, e dela são beneficiários, terão a vontade política de promover um projeto capaz de afetar a ordem social que os beneficia?
ou, por outra, será possível mover a parcela beneficiária da sociedade concentrada, na linha de promover as mudanças, ou a mudança terá de ocorrer sem ela, ou contra ela? ou terá que ocorrer necessariamente o conflito, em conseqüência da resistência à mudança, levando ao extremo a continuidade do processo de concentração e de exclusão, e desestruturando de vez a sociedade, ao ponto de inviabilizar a convivência e tornar inevitável a ruptura? ou, como no passado, se deverá aguardar simplesmente que aconteça a explosão, ou, enfim, o que Deus quiser? Embora considerando que pouco do que ocorreu no passado, poderá voltar a ocorrer novamente, é bom registrar que as elites, as que detinham o poder, ou eram beneficiárias da ordem vigente, raramente foram capazes, no passado, de perceber o momento e promover a mudança. O poder, como a riqueza, cega, e parece criar obstáculos intransponíveis para que as elites se antecipem ao processo, quebrando a tendência do determinismo histórico ou impositivo das circunstâncias. Será impossível a superação dessa tendência histórica, mesmo no limiar do terceiro milênio, com toda a complexidade e dinâmica do processo, com tudo o que mudou no mundo nessa passagem? Será zero o exponencial ou o vetor que impulsiona o ritmo de transformação do homem, de sua capacidade de mudança ou de construir seu próprio destino? Porque o poder e a riqueza acumulados tendem a cegar as elites, as mudanças acabaram ocorrendo, no passado, a partir dos excluídos e as elites pagaram sempre um pesado preço por sua falta de percepção
do momento e do processo. Maria Antonieta, a Rainha da França, teria mandado dar brioches aos que não tinham pão; em seguida, entregaria sua cabeça à guilhotina. D. Pedro II, o Imperador brasileiro, promovia com a corte o baile da Ilha Fiscal, às vésperas da República e, em seguida, tomaria o vapor para o exílio. Nicolau II, o Czar de todas as Rússias, consultava Rasputin enquanto as massas se organizavam, e ele imaginava o trono inabalável; a revolta dos excluídos, enquanto isto, preparava Ekterimburgo para ele e para sua família. Neste contexto, cabe uma indagação preliminar: se, em face da distância entre o poder concentrado das elites e o que restou aos excluídos países ou pessoas, terão condições os excluídos, por causa da globalização, ou do poder concentrado, de opor-se à ordem da concentração e gerar a nova ordem social? Neste caso, qual seria o preço? Qual seria o método? Como haveria de se precipitar a mudança? Uma primeira linha de raciocínio seria a de que, não restando alternativas ou outras armas, o caminho seria o da desestruturação da ordem vigente, não importando a forma. Adotando o princípio de que a quem não tem o que perder, cabe arriscar tudo, será inevitável o apelo a qualquer forma de violência. Essas formas podem ser a sabotagem, o terrorismo, a guerrilha, o seqüestro, a insegurança e outras ações que, por ora, ocorrem aqui e ali, e que poderão se transformar numa arma generalizada e globalizada nas mãos dos excluídos, porque esta é a arma de que eles dispõem. No Brasil, as sementes que podem fazer germinar este quadro, estão evidentes em toda parte: a violência urbana, apresentando contornos de
guerra civil, nas periferias, invadindo as cidades; as invasões de terra nas áreas rurais e urbanas; os seqüestros; aqui e ali, atentados contra os indivíduos e os bens públicos. Enquanto isto, tem sido anunciado com insistência, a articulação dos movimentos de resistência, a nível internacional, onde o crime organizado conquista seus espaços, aproveitando o contexto e fazendo frente comum com os excluídos. Não é difícil imaginar que se tal articulação não estiver ocorrendo, ocorrerá, porque está na lógica do processo. É inútil imaginar que o poder dos que têm o domínio do mundo terá condições de reprimir a reação dos oprimidos, mesmo porque, a capacidade do Planeta de suportar o poder de retaliação dos poderosos é limitada. É, no mínimo, ingênuo pensar que a força tudo pode. Cabe lembrar, mais uma vez, o que ocorreu no Vietnã, no Iraque, nos Balkans, ou, mais recentemente, na Iugoslávia, no Timor Leste ou na Chechenia. Esses fatos mostram a fragilidade da força e o equívoco da confiança ilimitada no poder absoluto dos que são capazes de fazer a guerra nas estrelas, ou empregar os milagres da tecnologia para a destruição. O desespero dos excluídos responde à concentração da tecnologia, a seu modo, e o preço do confronto, como seus resultados, continuará sendo imprevisível. Enfim, refletindo sobre a metodologia, da mudança, volta a pergunta: haverá condições de promover a mudança através do desenvolvimento de uma estratégia de organização social, capaz de produzir o convencimento, mover as consciências e precipitar a ação transformadora, antes de se chegar ao extremo da ruptura, ou do confronto?
O pressuposto desta possibilidade é a consciência do processo. Depois, a possibilidade existirá na medida em que novas propostas de organização social consigam algum espaço no debate público, nos meios de comunicação, nas Universidades entre os intelectuais e os cientistas sociais, entre as lideranças políticas, as classes empresariais e trabalhadoras, as organizações sociais. Mas, seguramente, a mudança não será repentina e nem a transformação ocorrerá por milagre. Cada proposta, no entanto, será um passo conquistado, ou uma contribuição para o despertar das consciências e o alargamento da ação. A globalização do agravamento da crise também atuará no mesmo sentido, de apressamento da mudança, desde que ela não ocorra tarde demais. Há de ser da conjugação do maior número de fatores que a mudança poderá ser precipitada. Enfim, o clamor por mudanças não constitue mais uma voz isolada. Cada vez mais, um número maior de vozes, no Brasil e no mundo, nas áreas políticas, religiosas e intelectuais, têm se manifestado, o que significa uma crescente esperança em favor da transformação. A consciência da necessidade das mudanças, por outro lado, vem se aguçando na sociedade, entre os jovens, nas novas gerações, mesmo que essa consciência ocorra de forma difusa, inspirando mais denúncias, revoltas ou perplexidade, do que estratégias. Se, porém, falharem esses esforços, mesmo assim a sociedade pode mover outros fatores capazes de condicionar os processos, ou definir outros elementos, em condições de produzir alternativas. A sociedade
dispõe de potencialidades, às vezes, ocultas, mas que, libertas, podem precipitar os processos. Tais potencialidades têm, por si mesmas, um peso específico, e na medida em que sejam movidas, liberadas por um impulso endógeno, a organização social irá com elas se transformando, de alguma forma. Desta forma, a humanização da sociedade não é apenas um objetivo a ser alcançado, mas é também o método, ou o instrumento para alcançá-lo. São diversos esses instrumentos de humanização; A própria tecnologia e todos os elementos que a acompanham, pode, na medida em que se difunde, constituir-se ela mesma em fator decisivo nesse processo. Esta difusão, pode ser lenta e, mesmo, defasada, mas é inevitável, e assim o próprio meio tecnificado passará a contribuir na formação de consciências e de alguma forma, na aceleração do processo. Os recursos financeiros e outros recursos que, embora igualmente defasados, acabarão necessariamente determinando a multiplicação de iniciativas produtivas e, portanto distribuidoras de renda, impulsionando o processo de mudanças, as consciências ou os gritos em favor da humanização. Os conhecimentos, a cultura e os anseios das populações, seu volume e suas múltiplas formas de expressão, constituem outros fatores a serem considerados, desde que neles se insira e se expresse a consciência, o conhecimento, a vontade e as aspirações da sociedade. Neste processo, têm grande responsabilidade os artistas, os promotores culturais, os meios de comunicação, as igrejas; enfim, todos os
produtores de cultura e formadores de consciências ou de opinião. No caso brasileiro, enfim, mais do que qualquer um desses fatores, ou mais que em qualquer outra época, ou qualquer outro processo, um fator, especialmente importante, pode ser decisivo na implementação de uma proposta de mudança, desde que efetivamente utilizado. Trata-se da dimensão dos recursos naturais disponíveis e da disponibilidade de tecnologias para transformá-los em instrumento capaz de originar um processo alternativo, à prevalência da visão meramente econômica, ou especulativa, da riqueza concentrada que, hoje, condiciona no País e ordena o processo de desenvolvimento brasileiro. A consciência desses recursos e seu uso sustentado, constituem, elemento básico para a viabilização da mudança, ou a superação da crise, porque o Brasil possui esses recursos e os possui em dimensão planetária, capazes de influenciar, em conseqüência, os rumos do processo global, ou planetário. Esta disponibilidade de recursos dá ao Brasil uma posição estratégica, e uma potencialidade ainda não movida, para construir seu próprio futuro e contribuir para a construção da sociedade humanizada, a grande aspiração ou o caminho inevitável desse novo milênio. Para isso, exige-se uma presença mais efetiva do Brasil nas relações com o mundo, especialmente com o mundo desenvolvido, assumindo uma posição de liderança entre os países em desenvolvimento, países à busca de seus próprios caminhos. Nesta linha, poderia ser
exercitada uma discussão muito maior sobre os rumos da humanidade, desde que o país optasse por ser o primeiro entre os em desenvolvimento, ao invés de ser o último entre os desenvolvidos. Esses recursos, de dimensão planetária poderiam libertar o Brasil de sua submissão aos processos da concentração e competição impostos pela globalização e pela interdependência, processos nos quais o país está entrando, tendo por arma apenas seu calcanhar de Aquiles, conforme já foi assinalado: suas reservas monetárias ou o jogo do câmbio a disputa pela tecnologia, a competição nos setores de ponta, e nos mercados ocupados a dolarização, em vez de apresentar-se com seus próprios recursos e entrar na globalização através deles, de igual para igual, com os detentores de outros recursos, ou abrindo novas formas de acesso e novos mercados, para aqueles que não têm perspectivas. Essa, também, a Revolução necessária. Antes de analisar esses recursos, como base estratégica para um projeto brasileiro alternativo, é necessário atentar para alguns equívocos que tem atuado como obstáculos para uma decolagem do país, ou para um projeto alternativo, tornando-o prisioneiro do círculo da sua própria crise, condicionada pela crise global.