Economia DEZEMBRO 2017 UMA PUBLICAÇÃO DA: Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) Sexta de nove publicações

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Transcrição:

Economia Púrpura DEZEMBRO 2017. UMA PUBLICAÇÃO DA: Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) Sexta de nove publicações

Economia Púrpura: Construir a economia do cuidado Cuidar e ser cuidada/o é uma das experiências emocionais centrais das nossas vidas. No entanto, a maior parte das atividades do cuidado recaem ainda sobre as mulheres. A brochura Economia Púrpura apela à construção de uma economia do cuidado que garanta às mulheres e aos homens o direito a um trabalho dignamente remunerado e compatível com as suas responsabilidades cuidadoras. // O CONTRIBUTO Nesta brochura encontrará informação sobre: 01. A crítica feminista ao modelo económico dominante. 02. Da crise do cuidado ao questionar do paradigma vigente: a economia do cuidado. 03. Por uma nova ordem económica: a Economia Púrpura. 04. Recomendações. Esta brochura é parte integrante de uma série de 9 brochuras desenvolvida pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) no âmbito do projeto Feminismos no Centro: Capacitação e mobilização para a igualdade entre mulheres e homens. // ESTAMOS ON LINE Mais informação sobre o projeto disponível em: http://plataformamulheres.org.pt/projectos/femi- nismos-no-centro-capacitacao-e-mobilizacao-para- -a-igualdade-entre-mulheres-e-homens/ 2

01. A CRÍTICA FEMINISTA AO MODELO ECONÓMICO DOMINANTE // o pensamento S O pensamento económico convencional assenta no conceito de homo economicus, ou Homem Económico. Esta conceção económica dos seres humanos apresenta-os como agentes completamente racionais, guiados unicamente pelo interesse próprio, e independentes de todas as necessidades naturais e influências sociais. Esta visão ainda prevalece no campo da macroeconomia apesar de ter sido objeto de várias críticas. Uma destas é a crítica feminista, ou seja, o esforço para examinar os princípios centrais da economia do ponto de vista feminista, tal como se encontra no trabalho pioneiro de Ferber e Nelson (1993) ou de Waring (1988). Estas autoras mostraram, nomeadamente, que a focalização dos economistas no mercado, em detrimento das atividades domésticas, e nas escolhas individuais, em detrimento das condicionantes sociais destas escolhas, resulta de um ponto de vista masculino que distorceu a definição e os limites da disciplina económica. Em consequência, a economia tem-se preocupado, de forma desproporcionada, com a parte da atividade económica que é remunerada, mediada pelo mercado e, pelo menos de acordo com a conceção do homo economicus, produtiva. Para a crítica feminista, pelo contrário, o trabalho não inclui apenas o trabalho produtivo mas também o reprodutivo, nomeadamente o trabalho associado às atividades cuidadoras na esfera doméstica. O trabalho reprodutivo, também designado como reprodução social, envolve todas as tarefas relacionadas com o apoio e manutenção da força de trabalho passada, atual e futura. Inclui a maternidade e os cuidados infantis, mas vai muito para além destas atividades. A maior parte deste trabalho é realizado principalmente por mulheres e é não remunerado, não sendo, portanto, registado nas contas nacionais (Instituto Mediterrâneo de Estudos de Género, 2009). De acordo com Frazer (2013), o capitalismo liberal do século XIX privatizou a reprodução social; o capitalismo de meados do século XX, adminis- 3

trado pelo Estado, socializou-a parcialmente; e o capitalismo financeiro da atualidade tende, cada vez mais, a transformá-la numa mercadoria. Em cada caso, a uma determinada organização da reprodução social correspondeu um conjunto distinto de ideais de género e de família. No atual capitalismo financeiro, no âmbito do qual muitas mulheres entraram no mercado de trabalho, as necessidades cuidadoras são crescentemente asseguradas (pelo menos pela minoria com possibilidades financeiras de o fazer) através do recurso ao trabalho remunerado. Mas a maioria das pessoas que trabalham nas atividades do cuidado continuam a ser mulheres e estas atividades, por seu turno, tendem a ser caracterizadas por baixos salários, altos níveis de trabalho a tempo parcial e Os recursos necessários para a reprodução social são considerados um dado adquirido condições de trabalho precárias. Esta situação assenta, ainda, numa clivagem racial e étnica entre mulheres, pois estas atividades são muitas vezes realizadas por trabalhadoras migrantes, frequentemente oriundas da Europa de leste ou do sul global. Os recursos necessários para a reprodução social são considerados um dado adquirido. Parte-se do princípio de que existe uma fonte infinita de mão-de-obra feminina não remunerada dedicada à esfera do cuidado e passível de desempenhar o papel de rede de segurança de último recurso (Elson, 2012). Mas quando uma sociedade submete as pessoas que asseguram o essencial da reprodução social a longas e cansativas jornadas de trabalho remunerado e, simultaneamente, restringe os apoios públicos à reprodução social, está a esgotar as capacidades sociais das quais a sua própria existência depende. Esta é a nossa situação hoje. Um processo semelhante ocorreu com os recursos naturais, de tal forma que agora enfrentamos uma crise ecológica sistémica, cujo reconhecimento levou à emergência da economia verde. É tempo de reconhecer a crise sistémica do cuidado e de lançar os fundamentos de uma economia do cuidado. A crise ecológica e a crise das atividades do cuidado estão interligadas, e as respostas a ambas estão-no também. 4

02. DA CRISE DO CUIDADO AO QUESTIONAR DO PARADIGMA VIGENTE: A ECONOMIA DO CUIDADO // a economia do cuidado S O valor e os imperativos morais do trabalho do cuidado são invisíveis na maioria das sociedades. Contudo, de acordo com um Relatório do Secretário-Geral das Nações Unidas (Nações Unidas, 2016), estima-se que o valor total das atividades cuidadoras e domésticas não remuneradas em todo o mundo se situe entre 10 e 39 do PIB. O trabalho na esfera do cuidado e das atividades domésticas representa, de facto, uma transferência de recursos das mulheres para outros agentes na economia. Esta questão tornar-se-á cada vez mais urgente nas próximas décadas à medida que a população idosa aumenta e que os cuidados com esta população se tornam também mais prementes, exigindo cada vez mais respostas ao nível das políticas públicas. A defesa do recurso ao investimento público em alturas de crise ou elevado desemprego deriva da teoria macroeconómica keynesiana e baseia-se na ideia de que a injeção de procura na economia por via do investimento público gera emprego, direta e indiretamente, e tem um impacto expansionista que ajuda as economias a saírem da recessão. Tradicionalmente, os governos que adotaram estas estratégias investiram nas infraestruturas físicas, especialmente nas indústrias da construção, promovendo o aumento no emprego masculino, com pouca atenção ao impacto social ou de género de tal estratégia. Contudo, existem cada vez mais evidências da eficácia do investimento público na infraestrutura social. Esta infraestrutura está intimamente ligada ao trabalho de reprodução e inclui todas as infraestruturas relacionadas com educação, serviços de saúde e atividades cuidadoras, bem como a força de trabalho que presta estes serviços (De Henau et al., 2016). Embora tanto o investimento público em infraestruturas físicas como em infraestruturas sociais criem novos empregos, dados recentes mostram que este último, particularmente o que se centra na esfera do cuidado, 5

cria mais emprego. De acordo com um estudo do ITUC (2016), que fez uma análise de género do estímulo ao emprego em sete países da OCDE, se 2 do PIB fosse investido nas atividades cuidadoras, haveria um aumento estimado no emprego que variaria entre 2,4 a 6,1. A maioria dos empregos criados seriam inicialmente ocupados por mulheres, devido à segregação ocupacional, mas o efeito multiplicador desta criação de empregos criaria muitos outros postos de trabalho fora do setor do cuidado, levando assim a um aumento do emprego para ambos os sexos. A provisão pública de serviços na esfera do cuidado também pode contribuir para atenuar as clivagens sociais, permitindo a mulheres de baixos recursos a entrada no mercado de trabalho ou a obtenção de emprego a tempo inteiro. Tal teria um impacto positivo nos rendimentos das mulheres ao longo da vida, no seu direito a pensões e na redução das assimetrias de género nas taxas de pobreza. Em suma, os autores deste estudo mostram que o investimento público em infraestrutura social faz sentido económico, pois não só gera emprego, mas também contribui para a igualdade de género e para o desenvolvimento humano. 03. POR UMA NOVA ORDEM ECONÓMICA: A ECONOMIA PÚRPURA // a economia púrpura S O impacto de género das crises económicas globais de 2008, e das medidas de austeridade que se seguiram, tornou-se claro à medida que estas medidas começaram a produzir efeitos em 2011. O desemprego feminino cresceu continuamente à medida que os setores económicos com mais mulheres empregadas começaram a ser afetados pelos cortes, pelo congelamento de salários e por outras medidas de austeridade. Aumentou o autoemprego e o trabalho involuntário a tempo parcial, assistindo-se ainda à emergência da chamada economia do biscate ( gig economy ), levando a uma informalização do mercado de trabalho e a um enfraquecimento dos direitos sociais. A austeridade poderá ter ainda levado ao 6

reaparecimento de modelos tradicionais de família assentes num ganha- -pão masculino e numa cuidadora feminina. Face a este cenário, muitas críticas das políticas de austeridade defendem que sejam repensados os critérios que usamos para avaliar o sucesso económico. Académicas/os e ativistas apelam cada vez mais a que se passe de uma economia orientada para o lucro e para o crescimento para economias sustentáveis e justas em termos de género, que atendam às necessidades de todos os seres humanos no respeito pelos limites ecológicos, que reconheçam que os mercados não se autorregulam e que promovam um estado social regulador. Neste cenário, Ipek Ikkaracan (Ilkkaracan, 2013) propôs a Economia Púrpura 1, uma visão alternativa que trata o cuidado como um bem público e um direito humano básico. A Economia Púrpura assenta em quatro pilares: //01 Prestação pública universal de serviços de apoio para crianças, idosas/os, pessoas com deficiência e doentes, bem como para o autocuidado; //02 Regulação do mercado de trabalho para permitir o equilíbrio entre o emprego remunerado e as atividades do cuidado na esfera privada, com igualdade de condições e incentivos para mulheres e homens; //03 Políticas públicas para atender às necessidades especiais das comunidades rurais; //04 Reorientar as políticas macroeconómicas para que tenham como objetivos fundamentais a satisfação das necessidades da natureza e do cuidado (nature and nurture). 1 A cor púrpura é proposta dado o seu cariz simbólico enquanto cor adotada pelo movimento feminista em muitos países do mundo. 7

O financiamento do primeiro pilar implica uma reorientação dos investimentos públicos tradicionais e dos gastos com estímulos à economia, que passam a estar centrados na construção de uma infraestrutura de assistência social. O segundo pilar diz respeito à regulação do mercado de trabalho de modo a promover o equilíbrio entre vida profissional e familiar. Tal assentaria em quatro componentes: direito a licenças remuneradas e não remuneradas para assistência à infância ou a outros dependentes, tanto para homens como para mulheres, incluindo licenças de paternidade não transferíveis, remuneradas e de igual duração; regulação dos horários de trabalho de acordo com padrões que permitam um trabalho digno; direito a acordos de trabalho flexíveis que permitam responder às necessidades de cuidado à medida que estas mudam ao longo do ciclo de vida; e regulação do mercado de trabalho para eliminar práticas discriminatórias. O terceiro pilar aborda as necessidades específicas das comunidades rurais na realização de atividades cuidadoras. Tal implicaria, nomeadamente, além da prestação de serviços públicos de assistência, apoios ao investimento verde, público e privado, na agricultura e nas infraestruturas rurais, e programas de transferência de tecnologia verde que se baseiem no conhecimento local das mulheres sobre os ecossistemas. Finalmente, a reorientação das políticas macroeconómicas implica abandonar o seu enviesamento de género, nomeadamente a sua focalização exclusiva na eficiência e no crescimento do PIB. Estes últimos devem ser concebidos como instrumentos possíveis, entre outros, para atingir os objetivos últimos relacionados com a satisfação das necessidades com a natureza e com o cuidado. Este esforço incluiria ainda reconhecer que a orçamentação sensível ao género (gender budgeting) não tem ainda expressão suficiente nos orçamentos nacionais. Quer a tributação, quer a alocação da despesa devem ser inseridas no quadro analítico da orçamentação sensível ao género, de modo a permitir uma avaliação do seu impacto sobre o acesso aos cuidados e sobre a igualdade de género. 8

04. RECOMENDAÇÕES // r e f l e x ão S A UE está atualmente num processo de reflexão na sequência do lançamento, em março de 2017, do Livro Branco sobre o futuro da Europa: reflexão e cenários para a UE-27 em 2025. É, portanto, um momento favorável para lembrar que as economias e as sociedades precisam de ser reequilibradas e que mulheres e homens têm direito a um trabalho dignamente remunerado e compatível com as responsabilidades cuidadoras. Um dos instrumentos possíveis para acompanhar a situação das mulheres e dos homens é a realização de inquéritos regulares e periódicos sobre os usos do tempo em todos os países da UE. Dados desagregados sobre este tema - por sexo, rendimento, idade, localização geográfica e outros fatores relevantes deveriam ser tidos em conta na formulação de políticas. Compreender a dimensão de género das economias e conceber as crises económicas como crises da reprodução social, das finanças e da produção deveria levar a que, no futuro, a avaliação do impacto de género das políticas macroeconómicas, bem como a orçamentação sensível de género, se tornem práticas institucionalizadas ao nível da UE e dos seus Estados-Membros. O cuidado é praticamente invisível ao nível do PIB. Esta invisibilidade perpetua a pobreza, promove a disparidade de género e a desigualdade de rendimento, degrada os sistemas democráticos e coloca os orçamentos nacionais sob pressão. Criar uma infraestrutura do cuidado, onde a satisfação das necessidades humanas seja não o oposto de uma economia próspera, mas o próprio fundamento no qual esta assenta, é o caminho a seguir. A governança económica ao nível da UE tem-se centrado sistematicamente na redução da despesa pública e tem feito muito pouco para regular as receitas fiscais a nível global, particularmente no que respeita aos impostos sobre as empresas. A justiça fiscal é uma questão de direitos das mulheres e uma necessidade que deve ser assegurada para permitir aos governos o investimento na igualdade de género. 9

// Especificamente, recomendamos que as políticas macroeconómicas incluam uma dimensão de género, nomeadamente: Investir na infraestrutura social para desenvolver a economia do cuidado, face ao enorme potencial que tal apresenta para a criação de empregos de qualidade e para responder ao aumento das necessidades cuidadoras; Assegurar que o orçamento do Banco Europeu de Investimento (BEI) preveja investimentos na economia do cuidado, de modo a implementar a sua Estratégia para a Igualdade de Género e Empoderamento Económico das Mulheres, adotada em dezembro de 2016; O investimento na economia do cuidado é um investimento sustentável a longo prazo para as gerações presentes e futuras. Estes investimentos devem ser excluídos dos cálculos do défice público que consideram este tipo de investimento como um custo e um fardo para o erário público e não como um investimento sustentável para o presente e para o futuro; A governança económica da UE (particularmente na zona euro) deve encorajar fortemente os investimentos na economia do cuidado e realizar avaliações de impacto de género antes da apresentação de recomendações específicas para cada país. // Recomendamos ainda a necessidade de evoluir para um modelo de relações familiares que assegure que mulheres e homens partilhem as responsabilidades cuidadoras, o que implica, nomeadamente: Aprovação rápida da proposta de legislação da Comissão Europeia sobre articulação entre vida profissional e familiar, no que diz respeito às licenças parentais pagas e não transferíveis, licenças de paternidade e licenças de cuidador/a pagas, e ao direito a acordos de trabalho flexíveis em matéria de regresso à atividade laboral que permitam assegurar a partilha contínua de cuidados entre mulheres e homens em diferentes fases do ciclo de vida. // Outras medidas importantes seriam: 10 Investir na economia do cuidado para implementar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em particular o Objetivo 5 Alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e raparigas, o Objetivo 8 Promover o crescimento económico inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho digno para todas/os e o Objetivo 10 Reduzir as desigualdades no interior dos países e entre países; Assegurar os recursos necessários para que as organizações não-governamentais, e em particular as organizações de mulheres, possam desenvolver iniciativas e serviços inovadores na área do cuidado; Promover as ligações entre a economia do cuidado e a economia verde, como parte de um continuum de cuidado com as pessoas, com o ambiente e com o planeta.

// A Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) é uma associação com personalidade jurídica, sem fins lucrativos, que congrega organizações que na sua intervenção visam: - A eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, com particular enfoque nas discriminações múltiplas; - A defesa e promoção dos direitos das mulheres em todas as áreas; - A prevenção e o combate à violência de todos os tipos e formas contra as mulheres; - E a realização da igualdade entre mulheres e homens. Foi criada no dia 12 de Novembro de 2004 com o objetivo de construir sinergias para a reflexão e ação coletiva, tendo em vista a promoção da igualdade entre as mulheres e os homens e a defesa dos direitos das mulheres, com recurso aos mais variados meios, entre os quais pesquisa, lobbying, divulgação, comunicação, sensibilização e formação. A Plataforma visa também contribuir para a integração da perspectiva da igualdade de género em todas as dimensões da vida social. A Plataforma detém Estatuto Consultivo Especial junto do Comité Económico e Social (ECOSOC) das Nações Unidas e representa Portugal no Lobby Europeu das Mulheres (LEM) e na Associação das Mulheres da Europa Meridional (AFEM). É também membro da Fundação das Mulheres do Euro- Mediterrâneo (FFEM) e da Plataforma da Sociedade Civil Europeia contra o Tráfico de Seres Humanos. A Plataforma gere o Centro Maria Alzira Lemos Casa das Associações e é composta por 27 organizações que representam as mulheres na sua diversidade. // As organizações membros da PpDM Membros fundadores: Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV); Graal; Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens (REDE) Membros efetivos: Aliança para a Democracia Paritária (ADP); Associação Mulher Séc. XXI; Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP); Associação de Mulheres Cabo-verdianas na Diáspora em Portugal (AMCDP); Associação Mén Non Associação das Mulheres de São Tomé e Príncipe em Portugal; Associação Mulheres na Arquitectura; Associação Mulheres Sem Fronteiras; Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres (APEM); Associação Projecto Criar; ComuniDária; Fundação Cuidar o Futuro; Meninas de Odivelas Associação (MOA); SERES Associação de mulheres infetadas e afetadas pelo VIH; APDMGP Associação Portuguesa pelos Direitos das Mulheres na Gravidez e no Parto: Soroptimist International Clube Lisboa Fundador Membros associados: Akto Direitos Humanos e Democracia; Associação Plano I para a igualdade e inclusão; CooLabora; Cooperativa SEIES Sociedade de Estudos e Intervenção em Engenharia Social; EOS Associação de Estudos, Cooperação e Desenvolvimento; Fundação ADFP Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional; Questão de Igualdade Associação para a Inovação Social; GAIP - Associação de Apoio e Intervenção em Psicologia; Paramédicos de Catástrofe Internacional. 11

Projeto promovido pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) em cooperação com as suas organizações membros sediadas na Região Centro do país - Akto Direitos Humanos e Democracia, Associação Mulher Séc. XXI, Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres (APEM), CooLabora, Fundação ADFP Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional, e Graal. Cofinanciado por: Contactos: Centro Maria Alzira Lemos Casa das Associações Parque Infantil do Alvito Estrada do Alvito, Monsanto 1300-054 Lisboa Tel: +351 21 362 60 49 @PlatMulheres www.plataformamulheres.org.pt E-mail: plataforma@plataformamulheres.org.pt www.facebook.com/plataforma.direitos.mulheres 12