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Unidade III Unidade III 88 7 DISCRIMINAÇÃO E DESIGUALDADE 7.1 Políticas públicas no Brasil atual Dados sobre discriminação e desigualdade têm sido amplamente divulgados nos últimos anos, e a questão continua a intrigar pesquisadores, a dificultar ações de governantes e a assustar a sociedade civil. O Brasil conta com um dos mais equipados centros de pesquisa sobre desigualdade no mundo, o Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA). Na prática, são várias as divergências acerca da melhor solução para essas questões. É certo que, contra a desigualdade, se luta com distribuição, porém, existem inúmeras formas de partilhar renda e oportunidades. Uma das propostas são as chamadas políticas de ação afirmativa, também designadas como política de cotas. Gostaríamos de esclarecer que, antes de assumir uma posição favorável ou contrária a essas políticas de redistribuição, é fundamental que nos empenhemos em conhecer e entender melhor o que elas são, sua história em nível mundial, as consequências de sua implementação em outros contextos e países e ainda conhecer o percurso assumido por algumas das polêmicas que têm suscitado. Relembrando as discussões levantadas na disciplina Homem e Sociedade, poderemos concluir que o relativismo cultural é ferramenta principal na dissimulação dessas questões relativas às ações afirmativas. Ele, conforme já visto, é uma ideologia político-social que defende a validade e a riqueza de todo sistema cultural existente. O relativismo cultural defende que o bem e o mal, ou seja, que a ética, é relativa a cada cultura. O certo corresponde ao que é socialmente aprovado num dado contexto. Porém, se nos ativermos ao fato de que cada cultura é válida e verdadeira em si, como podemos pensar em mudanças em sociedades reprimidas e desiguais, tendo o relativismo em mente? É cabível refletir sobre mudança propriamente dita, dentro da vulgata relativista? Se considerarmos uma sociedade em que as mulheres são reprimidas, na qual raças são segregadas, em que se impõem métodos punitivos que impliquem violência física extrema, podemos julgá-las válidas? Ou seja, o relativismo cultural é uma ferramenta emancipatória, que liberta os povos da dominação, ou é mais um mecanismo dessa mesma dominação, uma vez que anula quaisquer possibilidades de mudanças, por afirmar que toda cultura é válida e deve, portanto, manter-se alheia a alterações?

Introdução ao Pensamento Antropológico 7.2 Relativismo cultural: uma visão crítica O relativismo cultural foi uma imensa contribuição para desmoralizar a arrogância etnocêntrica dos países europeus em seu contato com outras culturas. Os relativistas colaboraram para desmoronar uma das bases ideológicas do imperialismo, mostrando para o mundo que o método de agir dos europeus não era o único válido e nem o melhor, mas sim mais um entre tantos possíveis. Tomemos como apoio um artigo do famoso filósofo Rouanet, de 1990, no qual ele trava um diálogo com o igualmente importante antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira. Rouanet (1990) coloca que: Talvez os ingleses não tivessem massacrado os aborígines australianos se tivessem refletido, com os relativistas, que a sofisticação do sistema do parentesco dessa cultura é tal, que desse ponto de vista são os ingleses que devem ser considerados povos primitivos. Se tivessem lido Malinowski e Radcliffe-Brown, é possível (ainda que pouco provável) que os missionários vitorianos, deslumbrados com a funcionalidade da poligamia e da poliandria (quando uma mulher é ligada a mais de um homem), tivessem se abstido de impor aos povos que as praticavam os ritos matrimoniais da Igreja anglicana. Não é possível assegurar que no apogeu da influência relativista, por volta dos anos vinte, os países metropolitanos tivessem um comportamento mais virtuoso que no passado, mas pelo menos já não podiam ser imperialistas com boa consciência, o que não é pouco. (ROUANET, 1990, p. 124) Porém, o autor coloca questões acerca da supremacia do relativismo, afirmando que essa ausência de qualquer forma de julgamento colocada pelos relativistas acaba por se converter em uma aprovação imediata. Ainda diz que em boa lógica, os relativistas teriam que limitar-se a dizer que não têm elementos para dizerem se uma cultura é ou não válida. Em vez disso, dizem que todas as culturas são igualmente válidas. (ROUANET, 1990, p. 124) O ponto é que, segundo o autor, os antropólogos (e a visão relativista) sempre encontram justificativas para todo ato em sociedade, seja ele bom ou ruim. E onde fica a ética? Em geral, segundo Rouanet, as críticas ao relativismo têm se concentrado em suas dificuldades teóricas: Por exemplo, assinala-se que o relativismo cultural não escapa ao dilema que está na raiz de todo relativismo: afirmar o relativismo é negar o relativismo, porque significa dizer que pelo menos uma tese a relativista não é relativa. (ROUANET, 1990, p. 129) O pós-guerra testemunhou uma onda antirrelativista dentro da antropologia, sendo este o bojo dos estudos da área nos anos de 1950. Para esses antropólogos (ver Ralph Linton, Clyde Kluckhohn, 89

Unidade III Robert Redfield e Alfred Kroeber, entre outros), os relativistas partem de uma ideologia romântica, nostálgica e, na melhor das hipóteses, ingênua, idealizando os valores exóticos das culturas não contaminadas pela civilização ocidental. Porém, vale a pena ressaltar, como o fez Rouanet, que muitas dessas culturas, longe de serem paraísos bucólicos, são sociedades miseráveis, repressivas e extremamente desiguais em diversos aspectos sociais. Com o intuito de preservar a pureza dessas culturas, o relativista é contra toda e qualquer mudança social, pois acredita que qualquer alteração irá contaminá-la com valores externos aos seus. Muitas vezes, o pesquisador relativista vai contra a vontade dos membros do grupo em questão, que desejam, precisamente, aquelas inovações estigmatizadas pelos relativistas, como é o fato entre muitos povos indígenas no Brasil. Segundo Rouanet, os relativistas acabam propondo, autoritariamente e em nome da tolerância cultural, 7.3 Ação afirmativa: cotas um modelo que não é desejado pelos próprios interessados, e em nome do respeito à dignidade de todas as culturas, recomendam sua própria versão do apartheid: guetos e reservas, longe da infecção civilizada. (ROUANET, 1990, p. 130) Ações afirmativas são políticas especiais compensatórias e redistributivas, determinadas pelo Estado. São redistributivas, pois têm o objetivo de eliminar o foco da desigualdade historicamente acumulada, buscando garantir a todos os cidadãos a igualdade de oportunidades; são compensatórias por visarem legitimar o reconhecimento legal (por parte do Estado) de perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros ocorridos no passado. Nos anos de 1960, nos EUA, a mobilização em prol dos direitos civis cuja bandeira clamava igualdade de oportunidades a todos teve um forte impacto na eliminação de leis segregacionistas no país. Nesse período, o movimento negro surge como uma das principais forças atuantes na arena social, com lideranças de projeção nacional. É nesse contexto que se desenvolve e que se cria o conceito de ação afirmativa; uma política pública que requer, no papel do Estado, a inclusão da garantia de oportunidades para populações legitimamente menos favorecidas. Uma vez que por décadas vigoravam no país leis segregacionistas, o movimento negro conseguiu quebrar essas correntes e exigiu compensação por tudo o que lhes foi privado. Os Estados Unidos completam mais de cinquenta anos de experiência sobre o tema, e isso nos oferece um ótimo campo para analisar os impactos que a implementação dessa política pode causar em longo prazo. 90

Introdução ao Pensamento Antropológico A ação afirmativa não ficou restrita aos Estados Unidos. Vários países da Europa, da África e da Ásia tiveram experiências semelhantes, o que nos fornece um material comparativo interessante e importante. As ações afirmativas possuem diversas formas, variando desde ações voluntárias, compulsórias, estratégia mista, programas governamentais ou privados, até leis e orientações a partir de decisões jurídicas ou de agências de fomento e regulação. Contudo, no Brasil, tais questões nunca foram discutidas em termos de raça, e hoje é a sociedade civil organizada que requer um debate dentro desses termos. Segundo Moehlecke (2002): Em uma perspectiva histórica, as políticas públicas brasileiras têmse caracterizado por adotarem uma perspectiva social, com medidas redistributivas ou assistenciais contra a pobreza baseadas em concepções de igualdade, sejam elas formuladas por políticos de esquerda ou direita. Com a redemocratização do país, alguns movimentos sociais começaram a exigir uma postura mais ativa do Poder Público diante das questões como raça, gênero, etnia, e a adoção de medidas específicas para sua solução, como as ações afirmativas. (MOEHLECKE, 2002, p. 203) Lembrete Ações afirmativas: esta denominação foi utilizada pela primeira vez em 1935 nos Estados Unidos em favor dos sindicalistas ou operários sindicalizados, para ressarcimento por qualquer discriminação feita pelos seus patrões. 7.3.1 Os estudos sobre o Movimento Negro no Brasil Para compreendermos as políticas de ações afirmativas no Brasil, faz-se necessário reconstituir o histórico de como se deram os debates em torno delas. Para tanto, a história do Movimento Negro, suas discussões e conflitos, contribuem para que possamos analisar a questão do negro hoje no Brasil. A produção acadêmica específica sobre o assunto constitui-se principalmente de dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos de revistas e alguns livros. Segundo Abdias do Nascimento (1997), o registro histórico do Movimento Negro no Brasil continua precário em razão da própria trajetória da comunidade afro-brasileira, que historicamente foi destituída de poder econômico e político. As primeiras pesquisas sociológicas sobre o Movimento Negro no Brasil aparecem nas análises sobre relações raciais, especificamente nos estudos financiados pela UNESCO. As interpretações sobre essa mobilização social estavam associadas às visões que os autores tinham das relações raciais entre brancos e negros. As análises de Florestan Fernandes 2, por exemplo, refletiam uma tendência geral de interpretar a história do Movimento Negro como uma linha evolutiva, apresentando avanços de acordo com a 91

Unidade III modernização da sociedade brasileira. Esses estudos partem da ideia de que o movimento teve origem num estágio de anomia social dos negros, recém-saídos da escravidão, passando pela fase da organização de seus primeiros jornais, até chegarem a um estágio mais consciente no qual puderam refletir sobre a realidade racial brasileira. Essa forma de analisar a história do Movimento Negro brasileiro tinha como concepção o modelo estrutural-funcionalista, que associava as razões dos protestos apenas às causas econômicas. Desse modo, a organização negra estaria voltada a integrar aquela população à sociedade, buscando um estilo democrático de vida e inexistindo, assim, uma consciência de raça. Nessa mesma linha, Georg Andrews 3, apesar das críticas a Florestan Fernandes, entende o Movimento Negro como resultado do processo de industrialização e considera as décadas de 1970 e 1980 como marco de sua conscientização racial. Para os novos estudos sobre a temática, entender a identidade coletiva tornou-se a questão central, uma vez que as abordagens econômicas começam a ser questionadas. Pesquisas como a de Regina Pinto 4, por exemplo, buscam entender o histórico do Movimento Negro associado à luta em definir o ser negro, ou seja, construir uma identidade não estigmatizada. 7.3.2 Da Declaração de Durban até a Lei 10.639/03 A aprovação da Lei 10.639 em 9 de janeiro de 2003, incluiu no currículo escolar a temática da história africana e seus correlatos. A aprovação da lei representou para o movimento negro brasileiro a concretização de mais um êxito na luta contra o racismo e a discriminação. Nesse contexto, a Conferência Mundial sobre o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e as formas correlatas de Intolerância, ocorrida em Durban, África do Sul, no ano de 2001, representam o marco dessa vitória. Em Durban, reuniram-se representantes de 170 países, com o objetivo de chamar a atenção do mundo para o compromisso político de se eliminar todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, e como resultado de suas discussões produziram uma declaração e um programa de ação. Representantes do Movimento Negro brasileiro buscaram, nesse momento de debates e reflexões, denunciar no cenário internacional o racismo presente no país e a falta de compromisso do governo brasileiro. Entre as primeiras medidas implementadas estão a política de cotas para estudantes de escolas públicas e para negros nas universidades públicas 5 ; as políticas de cotas do Ministério do Desenvolvimento Agrário e o programa Diversidade na Universidade, do Ministério da Educação. 2 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe, São Paulo: Ática, 1978. 3 ANDREWS, George R. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988) Bauru - SP: Edusc, 1998. 4 PINTO, Regina Pahin. Movimento negro em São Paulo: luta e identidade. São Paulo, Tese de Doutorado, FFLCH-USP, 1993. 5 A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade do Norte Fluminense foram as primeiras Universidades públicas a adotarem cotas para negros. 92

Introdução ao Pensamento Antropológico Em 2002, no contexto da campanha presidencial, os debates se acirraram, contribuindo para consolidar na agenda política a temática das ações afirmativas. O então candidato e posterior presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, apresenta em sua campanha o documento Brasil sem Racismo, elaborado a partir das propostas do Movimento Negro e pesquisadores. Por esse documento, são diagnosticadas as práticas discriminatórias existentes no Brasil, assim como é assinado um compromisso para desenvolver ações afirmativas com o objetivo de combater essa discriminação. Assim, em 2003, após a posse presidencial, é assinada a Lei 10.639, instituindo a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira no currículo do ensino básico. Nesse mesmo ano, foi criada a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, a SEPPIR. Em 2005 foi realizada a I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, ampliando os debates encaminhados pelo Movimento Negro e setores acadêmicos, na busca de uma sociedade mais democrática. 7.3.3 A dívida social do Brasil com a população negra após o 13 de maio A realidade vivenciada pela população negra no Brasil foi marcada pela ausência do direito de participação significativa na vida social. Trazidos na condição de escravos durante o período colonial, os negros tiveram sua cidadania negada devido às duras condições de vida e trabalho impostas pelos senhores. Na posição de trabalhadores escravizados numa economia agrária, não tinham qualquer oportunidade de acesso à escolarização formal e à assistência médica ou judicial, comprometendo suas perspectivas de ascensão social, assim como sua própria garantia de vida. Com as pressões internas e externas ocorridas no século XIX exigindo o fim da escravidão, representantes da elite brasileira começam a elaborar o projeto de substituição do trabalho escravo para o assalariado. Nesse contexto, é aprovada a Lei de Terras de 1850, que estabelecia novos critérios para sua aquisição, o que impedia que a população negra emancipada pudesse ocupar as faixas de terra livres, ou seja, sem proprietários. A partir dessa lei, a concessão de terras chegava ao fim e as chamadas terras devolutas (sem donos) poderiam ser obtidas somente por meio da compra junto ao governo. O governo brasileiro também estimulou a entrada de trabalhadores europeus, doando pedaços de terras e financiando passagens. No período entre 1888 e 1914, o país recebeu mais de 2,5 milhões de estrangeiro(as), especialmente da Itália, de Portugal e da Espanha. Não houve movimento de imigração africana para o Brasil como houve para outros países americanos. A 13 de maio de 1888 é abolida oficialmente a escravidão e os descendentes de africanos e exescravos assumem legalmente a partir de então a condição de cidadão, como os demais membros da sociedade. Surgem neste contexto maneiras de manter a desigualdade existente até o momento, que, por meio da linguagem, da mentalidade, do imaginário, da ideologia para criar palavras, imagens, formas e teorias, desprestigiam a população negra, recém-saída da escravidão, perpetuando e reforçando o discurso da inferioridade. As teorias sociais racistas, de defesa do embranquecimento da população com vistas à aproximação do ideal racial europeu foram inventadas no século XIX na Europa e nos Estados Unidos e tiveram grande 93

Unidade III aceitação no Brasil entre 1870 e 1930. Daí os investimentos na imigração de trabalhadores europeus e as barreiras para a vinda de negros e asiáticos. Ao mesmo tempo em que se adere à ideologia do branqueamento, cria-se o mito da democracia racial, ou seja, a crença de que o Brasil é uma terra sem impedimentos legais e institucionais para a igualdade racial, onde o preconceito e a discriminação são reduzidos. Sustenta-se que há igualdade de oportunidades, podendo os negros disputar, em iguais condições com os demais cidadãos, o acesso aos bens sociais e materiais. George Reid Andrews, em sua pesquisa sobre as relações raciais em São Paulo durante o período de 1940 a 1988, descreve a discriminação sofrida pela população negra no mercado de trabalho, nos clubes sociais e associações privadas. As consequências dessas barreiras raciais se refletem na subordinação social e econômica do grupo negro. No início do século XX, um número significativo de famílias negras chegava aos centros urbanos em busca de oportunidade de trabalho e melhores condições de vida. No entanto, para muitos, essa migração foi marcada pelas péssimas condições de vida nas cidades com os problemas de saneamento e epidemias, falta de escolas e pelas políticas públicas discriminatórias. Dados recentes mostram que no Brasil houve uma pequena redução da desigualdade entre brancos e negros no campo econômico, assim como no acesso à educação e às oportunidades de trabalho, o que comprova que ainda existe um longo caminho na conquista da cidadania. 7.3.4 Prós e contras: uma reflexão A questão principal do debate sobre as cotas é se elas caracterizam uma garantia de acesso a oportunidades por grupos menos favorecidos ou se acabam por favorecer um grupo em detrimento de outro, ou outros. Segundo Marcelo da Silva Prado do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, uma das primeiras instituições públicas no Brasil a assumir a política de cotas, E Prado continua: àqueles que as percebem como um privilégio, atribui-lhes um caráter inconstitucional. Significaria, portanto, uma discriminação inversa, pois favoreceriam um grupo em detrimento de outro e estariam em oposição à ideia de mérito individual, o que também contribuiria para a inferiorização do grupo supostamente beneficiado, pois este seria visto como incapaz de vencer por si mesmo. (http://www.lpp-buenosaires.net/olped/ acoesafirmativas/exibir_opiniao.asp?codnoticias=19443) 94 para os que as entendem como um direito, elas estariam de acordo com os preceitos constitucionais, à medida que procuram corrigir uma

Introdução ao Pensamento Antropológico situação real de discriminação. Não constituiriam uma discriminação porque seu objetivo é justamente atingir uma igualdade de fato e não fictícia. Elas não seriam contrárias à ideia de mérito individual, pois teriam como meta fazer com que este possa efetivamente existir. Seria, nesse caso, a sociedade brasileira a incapaz, e não o indivíduo; seria incapaz de garantir que as pessoas vençam por suas qualidades e esforços ao invés de vencer mediante favores, redes de amizade, cor, etnia, sexo. (http://www.lpp-buenosaires.net/olped/acoesafirmativas/exibir_opiniao. asp?codnoticias=19443) No Brasil, existem políticas de ações afirmativas para mulheres, negros e deficientes. No interior de uma sociedade tão desigual como o Brasil (um dos países mais desiguais do mundo, segundo estudos do IPEA), ser totalmente contra o sistema de cotas parece maldade. Mas elas nem sempre caem sobre a parcela realmente necessitada da população, e considerá-las como a solução mais eficaz pode acabar criando um problema a mais. Como continua Marcelo Prado, a política de cotas cai na armadilha de reconhecer a diversidade nas sociedades pela via legal pautando-se pelo critério de igualdade e não de diferença. A política de cotas mergulha no critério da exclusão, da submissão, a taxar o grupo que vai ser incluído porque portador de alguma deficiência ou por culpa da história. (http://www.lpp-buenosaires.net/olped/acoesafirmativas/ exibir_opiniao.asp?codnoticias=19443) Não buscamos simplificar essa discussão, senão, neste ponto, afirmar alguns problemas contemporâneos que recobrem nosso tema. Apresentaremos agora os argumentos sobre as ações afirmativas balizados nos estudos de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2005) a partir de suas contribuições e seus textos sobre racismo e antirracismo. Segundo o autor, os estudos sobre esse assunto no Brasil ainda são um tabu, pois existe um discurso de que vivemos em uma democracia racial, tendo respaldo tanto na história brasileira quanto na literatura. De acordo com Guimarães, desde a abolição da escravatura, no plano formal, não vivenciamos os conflitos raciais. Já em termos literários, passando por Gilberto Freyre nos anos 30 e por Donald Pierson nos anos 40 até os anos 70, as pesquisas sobre racismo ou antirracismo tranquilizaram e reafirmaram o caráter harmônico do nosso povo. Para pensar sobre racismo e antirracismo no Brasil o autor busca: a) demonstrar, em primeiro lugar, que a linguagem de classe e de cor, no Brasil, sempre foi usada de modo racializado, tanto na tonalidade de pele quanto outras cromatologias figuradas, que naturalizaram enormes desigualdades que poderiam comprometer a autoimagem brasileira de democracia racial; (GUIMARÃES, 2005, p. 59) b) indicar qual tem sido o contencioso político do racismo no Brasil em termos históricos e práticos. (GUIMARÃES, 2005, p. 69) 95

Unidade III O autor conclui com este texto: Deste modo, Guimarães pergunta: o que é cor? Essa reação do antirracismo ao antirracialismo acabou por contrariar os interesses e valores do povo negro brasileiro, que ressuscitou na sua luta contra o mito da democracia racial o conceito de raça tal como é usado no senso comum. (GUIMARÃES, 2005, p. 71). Neste sentido, cor é tomada como categoria empírica, manifestação objetiva de características fenotípicas ainda que sua denominação seja inteiramente subjetiva e ambígua, por falta de uma regra precisa de descendência racial. (GUIMARÃES, 2005, p. 103). E na tentativa de responder, o autor observa que junto com este evento que se dá no fenótipo, ou seja, a pigmentação da pele, vêm junto outras atribuições da aparência como, por exemplo, formato do nariz e dos lábios, o tipo de cabelo etc., acrescentando sua estreita associação com a hierarquia e a estratificação social e econômica, juntamente com as relações de poder e prestigio social. O que define a posição social de cada sujeito de cor negra, ou seja, a escola que ele terá acesso, o tipo de trabalho que realizará, seu lazer, seu acesso aos bens de consumo, é também o que condiciona a participação e seu acesso à arte, ao esporte e à cultura em geral. Este processo restringe sua participação social e seu acesso à cidadania mais elementar. De tal sorte, determinado desta forma, sua produção e reprodução social e humana define seu lugar no mundo. Desta maneira, Guimarães (2005) apresenta dois quadros em que expõe os principais discursos usados no debate sobre ação afirmativa. De um lado os que defendem e do outro os que são contra. O primeiro quadro é sobre o debate norte-americano e o segundo quadro é sobre o debate brasileiro. Argumentos esgrimados no debate norte-americano sobre ações afirmativas Contra Contrariando o credo americano no mérito individual, demonstrado na competição, a partir de oportunidades iguais. Alienam os aliados brancos na classe operária e entre os liberais. Fomentam atitudes racistas. Medidas universalistas teriam o mesmo efeito. Prejudicam, mais do que ajudam, o objetivo de diminuir a importância da raça. São estigmatizadores dos grupos beneficiados. Ferem os direitos constitucionais daqueles que passam a ser excluídos em consequência de sua aplicação. A favor São a melhor forma de corrigir distorções nos mecanismos de alocação de recursos, por meio da competição por mérito. Raça é um dos critérios reais, embora não declarado, usados tanto na alocação de recursos, quanto na política. Estão sob ataque de forma mais sutis de racismo. Medidas universalistas não rompem os mecanismos inerciais de exclusão. Entre prós e contras, são ainda as políticas mais eficientes. Proveem role models de êxito profissional para negros. Nenhum tribunal americano considerou, até hoje, inconstitucional a operação de políticas que usam critérios raciais explícitos. 96

Introdução ao Pensamento Antropológico Argumentos esgrimados no debate brasileiro sobre ações afirmativas Contra Significam o reconhecimento de raças e distinções de raças no Brasil e isso contraria o credo brasileiro de que somos um só povo, uma só nação. Não se pode discriminar positivamente no Brasil, porque não há limites rígidos e objetivos entre as raças. A indefinição dos limites raciais no Brasil ou a ausência de tradição de identificação racial daria margem a que oportunistas se aproveitassem da situação. Medidas universalistas teriam o mesmo efeito. Não há, na sociedade brasileira, consenso sobre a desigualdade social provocada por diferença de cor e raça. Reforçariam práticas de privilegiamento e de desigualdade hierárquica. Ferem os direitos constitucionais daqueles que passam a ser excluídos em consequência dessa aplicação. A favor Raça é um dos critérios reais, embora não declarados, de discriminação, utilizados em toda a sociedade brasileira; para combatê-lo, é mister ir contra sua existência. Esses limites não existem em nenhum lugar, o que dá conta, na discriminação, tanto positiva quanto na negativa à construção social da raça (identificação racial). Esse risco é real. Políticas de ação afirmativa requerem reconhecimento oficial das identidades raciais. No entanto, a discriminação positiva, por ser pontual, não pode reverter, em curto prazo, a estrutura de discriminação existente; por isso, o oportunismo esperado seria mínimo. Medidas universalistas não rompem os mecanismos inerciais de exclusão. Teriam o efeito contrário: ao inverter a desigualdade, poriam a nu o absurdo da ordem estamental. Não há base legal para demonstrar a inconstitucionalidade de políticas de ação afirmativa. À guisa de conclusão, Guimarães afirma: Nosso grande desafio como nação, portanto, é não cair numa paralisia, a um só tempo relativista e fatalista, ou seja, não aceitar, como traço definidor da nação aquilo que criticamos. Não podemos continuar a dispensar um tratamento formalmente igual aos que de fato são tratados como pertencendo a um estamento inferior. Políticas de ação afirmativa têm, antes de mais nada, um compromisso com o ideal de tratarmos todos como iguais. Por isso, e só por isso, em certos momentos, em algumas esferas sociais privilegiadas, que aceitamos tratar como privilegiados os desprivilegiados. (GUIMARÃES, 2005, p. 196) O fato é que vivemos numa sociedade desigual, e os mecanismos para mudar essa situação são muitos e bastante polêmicos. Na próxima seção, discutiremos algumas teorias que visam à mudança social. Lembrete Cotas: gradativamente este termo ganha uma amplitude e passa a ser usado por outros grupos para proibir as segregações sociais e ações discriminatórias, garantindo assim a ascensão de minorias étnicas, raciais e sexuais. 97

Unidade III 8 Antropologia e a teoria da ação comunicativa: o trabalho prático Diante do relativismo, do etnocentrismo e da discussão levantada acerca das políticas de ação afirmativa, temos outra saída para esses dilemas. A teoria da ação comunicativa, conceitualizada pelo sociólogo alemão Jurguen Habermas (1987), afirma duas premissas: (1) a mudança é necessária no caso de grupos materialmente carentes ou regidos por normas e instituições de caráter repressivo; (2) ela deve ser conduzida de modo a levar plenamente em conta a autonomia das populações interessadas. Ou seja, o autor desarticula os argumentos do relativismo por mostrar que, sem perder o senso de ética e respeito mútuo, sociedades repressivas e miseráveis têm de mudar para melhorar suas condições. Além disso, questiona também o etnocentrismo por propor um diálogo argumentativo com tais populações. Uma das justificativas para a atitude relativista é que não há padrões comuns que permitam um acordo quanto ao conteúdo da mudança. Nesse caso, a ação afirmativa se apresenta como uma das únicas soluções possíveis para mudar a situação de um grupo, por exemplo, excluído economicamente. Relembrando Rouanet (1990), o relativismo tem ainda outra justificativa para recusar a mudança, fortalecendo a crença de que todas as culturas, e portanto também a que se pretende mudar, já são válidas a priori. A tentativa de mudança só poderia perturbar a solução dada espontaneamente pela cultura para responder aos seus desafios de sobrevivência. (ROUANET, 1990, p. 134) O relativismo pode ser compreendido como um modo de infantilizar as culturas e os povos; assim o entende a antropologia pela luz da ação comunicativa. Rouanet (1990) coloca uma ilustração que nos cabe perfeitamente em contexto: A frase atribuída ao filósofo francês Voltaire (1778), de que ele não concordava com uma única palavra do interlocutor, mas defenderia até a morte o seu direito de dizê-la, ilustra bem uma concepção de tolerância fundada em premissas comunicativas. O autor da frase não dizia que todas as opiniões eram igualmente válidas; ele discordava das opiniões do interlocutor, acreditava profundamente que as suas eram mais verdadeiras, e estava disposto a defendê-las pela argumentação, o que supunha, como 98

Introdução ao Pensamento Antropológico corolário, a liberdade de expressão integral para os dois participantes do processo comunicativo. (ROUANET, 1990, p. 137) A ação comunicativa trata todos os seres humanos como indivíduos passíveis de dialogar por meio do raciocínio e da argumentação, capazes de conduzirem e escolherem seus próprios destinos. Segundo o autor, o relativismo implica excluir do âmbito argumentativo os membros de certas culturas, infantilizando-os. (ROUANET, 1990, p. 137) Assumir que todos os aspectos de uma cultura são legítimos simplesmente em prol da diversidade dispensa seus integrantes de argumentarem a favor dessa legitimidade. Os nativos são elogiados sua cultura é válida a priori e em seguida convidados a brincar em sua reserva ecológica. (ROUANET, 1990, p. 138) Entre uma infantilização baseada no fato de que certas culturas são inferiores ou de que todas são portadoras de uma sabedoria inata, o antropólogo comunicativo recusa, de todo, a estratégia da infantilização: Todos os homens são ou devem tornar-se iguais, sim, mas são iguais por serem dotados do atributo comunicativo por excelência, que supõe o direito à capacidade de apresentar argumentos e de refutá-los. (ROUANET, 1990, p. 138) Assim, o antropólogo encontra campo ético para dispor de argumentos contra uma ação que ele considere injusta o infanticídio, a tortura, a circuncisão feminina etc. e se colocará pronto para argumentar e não impor com os praticantes. Igualmente, ele dá razão aos ingleses quando proibiram a prática indiana de queimar as viúvas na fogueira e os condena quando massacraram as populações indígenas. (ROUANET, 1990, p. 136) Como a teoria da ação comunicativa não nos impõe qualquer postura relativizante, não precisamos sofrer dilema existencial algum em nosso repúdio à circuncisão feminina, feita a sangue frio e sem o consentimento da parte envolvida: A perspectiva comunicativa não nos proíbe, antes nos impõe, a expressão dos nossos julgamentos de valor, nesses casos e em outros semelhantes. (ROUANET, 1990, p. 156) Nessa perspectiva, a antropologia tem de tratar seus interlocutores como seres racionais, capazes de argumentação. A melhor maneira de prestar homenagem à dignidade humana desses seres racionais é incluí-los na esfera da argumentação, em vez de mantê-los num santuário extra-argumentativo, como os animais ameaçados de extinção. (ROUANET, 1990, p. 156) 99

Unidade III Portanto, vale a pena tentar a relação argumentativa e investir na comunicação. A teoria da ação comunicativa pressupõe que todos os povos são passíveis de dialogar e de expressar suas necessidades e suas atitudes. Não se faz mais necessária a interlocução: os antropólogos não são mais os únicos seres capazes de dizer aos nativos o que sua cultura significa, tanto para eles, quanto para o resto do mundo. A antropologia, na perspectiva comunicativa, implica que todos os povos estudados têm capacidade cognitiva de se expressar, e o diálogo é a ferramenta principal neste processo. Dito isso, temos, portanto, um mecanismo que nem sempre é utilizado, mas que tem como objetivo uma abrangência universal: os direitos humanos. Essa ferramenta almeja ultrapassar as fronteiras do relativismo cultural, pois coloca limites às culturas, pensando no que é global: o ser humano que existe além de sua cultura. Ela também limita o método comunicativo, pois restringe o diálogo em nome do mesmo ser humano universal. 8.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos: uma conclusão A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. O movimento de universalização dos direitos humanos, ou seja, que articula um acesso universal a tais direitos, compreendendo todas as raças, credos, sexos, orientações sexuais etc., sob a condição máxima de serem humanos, constitui um passo importante na história recente da humanidade. A Declaração surgiu exatamente após a Segunda Guerra Mundial (1940-45) como a resposta humana às desumanidades e aos horrores cometidos durante o regime do nazismo, tendo em mente que muitas atrocidades poderiam ser evitadas se um efetivo sistema de proteção internacional aos direitos humanos existisse. Dentre os pressupostos da Declaração de 1948, dois pontos são de suma relevância: (1) a universalidade e (2) a indivisibilidade desses direitos. 1. Universalidade, ou seja, o alcance dos direitos humanos, é universal, enfatizando que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos. 2. Indivisibilidade, uma vez que não se pode mais conceber direitos civis desconectados dos direitos econômicos, políticos, sociais e culturais. Ou seja, a Declaração de 1948 faz um esforço abissal de mostrar que a violência, a economia e a cultura são partes de um todo, enfim, não havendo como desassociar o ser humano do meio. Lembrete 100 Direitos humanos: denomina-se a livre expressão de credos religiosos, orientações sexuais e diversidade cultural. É a proteção internacional, que possibilita a cada indivíduo ser reconhecido como pessoa e cidadão do mundo.

Introdução ao Pensamento Antropológico Para que o termo universalização seja de fato legitimado, foi formado um sistema de defesa desses direitos. Esse sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados que o acolheram. O artigo primeiro coloca que: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. Esse artigo nos coloca que todos temos o direito de existir, independente de raça, religião, opção sexual ou gênero. Ou seja, pressupõe a igualdade, mesmo cada indivíduo sendo diferente, pois a igualdade que se propõe não é pela diferença, e sim pelos direitos. Continuando pelo artigo segundo: Pois, como diz o artigo sexto, Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei. Todas as diferenças entre as pessoas são passíveis de serem expressas, relembrando um pouco o que discutimos no item da teoria da ação comunicativa, ou seja, a Declaração não institucionaliza a diferença, mas a coloca no patamar da discussão, da argumentação. O décimo quarto artigo explicita que toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. Existem fortes críticas acerca da validade e das raízes de ter a Declaração como mediador de conflitos. Nota-se que a Declaração não é norma, nem lei; ela é uma linha de pensamento a ser seguida. Autores como o ganhador de um prêmio Nobel, Amarthya Sem, acreditam que, se não houver um esforço dos países em integrar na sua Constituição as metas da Declaração, os direitos humanos universais não sairão do papel. Outro contraponto à Declaração é vê-la como mais uma representação do etnocentrismo, e retomaríamos a nossa discussão sobre os itens discutidos anteriormente nesta seção. Isto é, poder-seia dizer que a universalidade dos direitos humanos nada mais é do que um esconderijo para as ações imperialistas do mundo ocidental, impondo sua ética ao resto do mundo. 101

Unidade III E não é que retornamos à nossa discussão inaugural desta unidade III? Se formos nos ater ao relativismo cultural, a Declaração perde todo o seu valor. Porém, na Declaração, o conceito cultura só é citado quando da possibilidade de acesso a todos. O que está em jogo na Declaração não é a cultura, ou raça, ou gênero, ou orientação sexual; o que está em jogo é o ser humano, com o intuito máximo de coibir seu sofrimento devido a uma existência indigna e desprovida de acesso a bens materiais, oportunidades e cultura. Dentre os valores que são relativos e próprios a cada cultura particular, existe uma parcela deles que é fundamental, irrevogável e que constitui um padrão mínimo legal. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 buscou delimitar as fronteiras desse patamar da ética humana. Esses são os direitos humanos. Saiba mais DA MATTA, R. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis: Vozes, 1981. NOGUEIRA, O. Tanto Preto Quanto Branco: estudos de relações sociais. São Paulo, 1985. RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro. São Paulo. Companhia das Letras, 1995. Questões étnico raciais: <http://www.afirma.inf.br> 102 Conclusão e síntese Traçamos, nessas três unidades, a jornada do pensamento social desde que ele se formalizou em diversas disciplinas acadêmicas, tais como Sociologia, Antropologia (social e cultural), Ciência Política, Filosofia, História, Geografia, Psicologia Social, Teoria Crítica, Estudos Culturais, entre outras. Na Unidade I, nosso objetivo foi o de situar os futuros assistentes sociais no contexto do pensamento social em seu berço: como o imperialismo moldou o pensamento social do início do século XX. Esse contexto histórico é relevante, uma vez que, sem esse apoio, seria impossível compreender as raízes do pensamento social, questão esta de tanta importância para que tenhamos em mente que o mesmo existe em paralelo às ações das pessoas. Devemos enfatizar a relação existente entre teoria e ação: as pessoas com as quais iremos trabalhar são atores passíveis de moldar as formas de se teorizar a sociedade e, com isso, de definir formas de se implementarem políticas públicas, ações sociais, entre tantas possibilidades.

Introdução ao Pensamento Antropológico O segundo objetivo, ainda na Unidade I, foi o de situar novamente os alunos no contexto de formação do mundo contemporâneo, trazendo a história recente da África como uma ferramenta de articulação para que os alunos possam compreender as políticas mundiais atuais e, com isso, entender os caminhos em que o pensamento social articulado entre teoria e ação encontra-se nos dias de hoje. Na Unidade II, continuamos na jornada do pensamento social, trazendo-o mais próximo para os dias de hoje. No mundo contemporâneo, globalizado, temos diversas culturas se relacionando entre si de forma jamais vista na História da humanidade. As culturas sempre estiveram em contato e em diálogo no curso da História, mas hoje, por razões referentes aos avanços nos meios de comunicação e transportes, temos um contato maior e mais duradouro, intenso. Essa convivência gerou a necessidade de se organizar o mundo: tendo diversas pessoas, oriundas de diversas culturas, dividindo um mesmo espaço, fez-se necessário delimitar as fronteiras das possibilidades, proporcionar aos menos privilegiados este processo de convivência e, assim, encontrar caminhos para uma coexistência harmoniosa. A descolonização da África foi o estopim para tais mudanças, tais necessidades de organização. Por isso, nos atemos tanto ao contexto histórico: devemos saber como o pensamento social se modificou e se modifica em razão das ações das pessoas. No Brasil, há o reflexo dessas mudanças e dessa necessidade de organização. Causas econômicas e ambientais implicam migrações; a convivência de diversos grupos étnicos dentro de um mesmo espaço geográfico; a posição socioeconômica de alguns desses grupos, muitos desprivilegiados, oprimidos, ou vivendo às margens graças a comportamentos impostos por teóricos relativistas: todos esses fatores abordam questões importantes a serem refletidas. Na Unidade III, propusemo-nos a iniciar um caminho de análises e reflexões sobre como moldar a organização necessária para que culturas diversas possam conviver juntas. Refletimos sobre o relativismo cultural de forma crítica: seria esse um caminho para segregação e manutenção do status quo de vários grupos, ou uma ferramenta emancipatória? Buscamos mostrar um caminho comunicativo, em que as culturas possam dialogar entre si, no qual os cientistas sociais sejam mediadores, em que pessoas oriundas de toda e qualquer cultura tenham o direito de se expressar e de argumentar. Essa teoria está de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em que o indivíduo é a máxima; preveni-los de todos de sofrimentos e degradações é a premissa, e não sua cultura sendo a máxima de pensamento, como acreditam os relativistas. Propusemos, nessas três unidades, reflexões acerca dos parâmetros do pensamento social atual. Não nos preocupamos em difundir soluções, tampouco dar respostas a tais questões. Ao lidarmos com pessoas, estamos sempre imersos no universo subjetivo: não existem parâmetros objetivos de investigação e intervenção social, pois jamais poderemos prever os atos escolhidos pelos indivíduos. 103

Unidade III Conscientes dessa subjetividade, de que teremos de tomar decisões baseadas em nossos próprios julgamentos, é que devemos nos dedicar a conhecer todas as formas possíveis de se compreender o mundo. Essa jornada que percorremos nesse livro texto foi parte deste processo: refletir sobre possibilidades de ação, analisando seus prós e contras. As análises de Florestan Fernandes (FERNANDES, 1978), por exemplo, refletiam uma tendência geral de interpretar a história do Movimento Negro como uma linha evolutiva, apresentando avanços de acordo com a modernização da sociedade brasileira. Esses estudos partem da ideia de que o movimento teve origem num estágio de anomia social dos negros, recém-saídos da escravidão, passando pela fase da organização de seus primeiros jornais, até chegarem a um estágio mais consciente no qual puderam refletir sobre a realidade racial brasileira. Essa forma de analisar a história do Movimento Negro brasileiro tinha como concepção o modelo estrutural-funcionalista, o qual associava as razões dos protestos apenas às causas econômicas. Desse modo, a organização negra estaria voltada a integrar aquela população à sociedade, buscando um estilo democrático de vida, inexistindo, assim, uma consciência de raça. Nessa mesma linha, Georg Andrews (ANDREWS, 1998), apesar das críticas a Florestan Fernandes, entende o Movimento Negro como resultado do processo de industrialização e considera as décadas de 1970 e 1980 como marco de sua conscientização racial. Para os novos estudos sobre a temática, entender a identidade coletiva tornou-se a questão central, uma vez as abordagens econômicas começam a ser questionadas. Pesquisas como a de Regina Pinto (PINTO, 1993), por exemplo, buscam entender o histórico do Movimento Negro associado à luta em definir o ser negro, ou seja, construir uma identidade não estigmatizada. Saiba mais ALBUQUERQUE, W. R; FILHO, W. F. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais (2006). DOMINGUES, P. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, 2007, vol.12, nº. 23, p. 100-122. ISSN 1413-7704. GOLDMAN, M. Segmentaridades e Movimentos Negros nas Eleições de Ilhéus. Mana, Out 2001, vol. 7, nº. 2, p. 57-93. ISSN 0104-9313. SILVA, M. L. A História no discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da História como estratégia de combate ao racismo. Dissertação de Mestrado. IFCH, Unicamp, 2007. 104

Introdução ao Pensamento Antropológico Resumo Relativismo cultural: contribuiu imensamente para desmoralizar a arrogância etnocêntrica dos países europeus em seus contatos com outras culturas. É evidente a colaboração dos relativistas para desarticular uma das bases ideológicas do imperialismo, mostrando para o mundo que o modo de vida europeu não era o único possível, nem o melhor, mas mais um entre tantos outros. Ações afirmativas: são políticas especiais compensatórias e redistributivas, determinadas pelo Estado. A primeira característica se deve ao fato de ser uma ação que visa a legitimar o reconhecimento legal (por parte do Estado) de perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros, ocorridos no passado. Já a segunda se dá por terem o objetivo de eliminar o foco da desigualdade historicamente acumulada, buscando garantir a todos os cidadãos a igualdade de oportunidades. As ações podem ser temporárias ou não, dependendo das normas jurídicas que as criaram. Os estudos sobre o Movimento Negro no Brasil: a produção acadêmica específica sobre o assunto constitui-se principalmente de dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos de revistas e alguns livros. Segundo Abdias do Nascimento (1997), o registro histórico do Movimento Negro no Brasil continua precário em razão da própria trajetória da comunidade afro-brasileira, que historicamente foi destituída de poder econômico e político. Da Declaração de Durban até a Lei 10.639/03: em 9 de janeiro de 2003, foi sancionada a lei 10.639 que alterou as diretrizes e bases da educação nacional e tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Médio e Fundamental, públicos e particulares. De acordo com a lei, o currículo deve conter o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra no país e suas contribuições para a formação da sociedade brasileira nas áreas econômica, social e política. A lei afirma ainda que esse conteúdo deverá ser ministrado em todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação artística, Literatura e História. A dívida social do Brasil com a população negra após o 13 de maio: a realidade vivenciada pela população negra no Brasil foi marcada pela ausência do direito de participação significativa na vida social. Trazidos na condição de escravos durante o período colonial, os negros tiveram sua 105

Unidade III cidadania negada devido às duras condições de vida e trabalho impostas pelos senhores. Na posição de trabalhadores escravizados numa economia agrária, não tinham qualquer oportunidade de acesso à escolarização formal e à assistência médica ou judicial, comprometendo suas perspectivas de ascensão social, assim como sua própria garantia de vida. Prós e contras: no Brasil, existem políticas de ações afirmativas para mulheres, negros e deficientes. No interior de uma sociedade tão desigual como o Brasil (um dos países mais desiguais do mundo, segundo estudos do IPEA), ser totalmente contra o sistema de cotas parece maldade. Mas elas nem sempre caem sobre a parcela realmente necessitada da população, e considerá-las como a solução mais eficaz pode acabar criando um problema a mais. Antropologia e a teoria da ação comunicativa: a ação comunicativa trata todos os seres humanos como indivíduos passíveis de dialogar por meio do raciocínio e da argumentação, capazes de conduzirem e escolherem seus próprios destinos. Segundo o autor Rouanet, o relativismo implica excluir do âmbito argumentativo os membros de certas culturas, infantilizando-os. A Declaração universal dos direitos humanos: o movimento de universalização dos direitos humanos, ou seja, que articula um acesso universal a tais direitos, compreendendo todas as raças, credos, sexos, orientações sexuais etc., sob a condição máxima de serem humanos, constitui um passo importante na história recente da humanidade. A Declaração surgiu exatamente após a Segunda Guerra Mundial (1940-1945) como a resposta humana às desumanidades e aos horrores cometidos durante o regime do nazismo, tendo em mente que muitas atrocidades poderiam ser evitadas se um efetivo sistema de proteção internacional aos direitos humanos existisse. Exercícios Questão 1. Há um mito no Brasil de que a variedade de raças que aqui se encontraram se harmonizaram por completo em suas relações e que, nesse sentido, o país não teria sofrido com a discriminação racial após o fim da escravidão em 1888. Essa mistura pacífica de raças teria permitido que brasileiros de diferentes descendências étnicas convivessem pacificamente, construindo um verdadeiro exemplo para o mundo. Por essa razão, somos tidos como um país que não é racista. O professor Osmundo de Araújo Pinheiro, ao escrever artigo sobre esse assunto, afirma: 106 O mito do excepcionalismo racial brasileiro tem conduzido, por outro lado, à percepção de que o caso brasileiro de relações raciais é único no mundo. Este ideia está bastante

Introdução ao Pensamento Antropológico desenvolvida em Gilberto Freyre, mas também em diversos autores estrangeiros. Este mito implica o reconhecimento de uma variante específica para a escravidão brasileira, mais branda em relação a outros países. O autor desmascara esse excepcionalismo demonstrando que existiu, também aqui, a institucionalização de práticas racialmente discriminatórias no que diz respeito a imigração, educação e políticas públicas, assim como toda a violência intrínseca ao regime do trabalho forçado. A partir de dados de sua pesquisa empírica, Hanchard argumenta que discursos, tanto populares como de elite, conjugam a ideia de harmonia racial ao suposto excepcionalismo. A principal consequência disso é que o cidadão comum não consegue identificar, no Brasil, problemas de raça, produzindo-se uma ausência de reconhecimento de que problemas de violência, discriminação e desigualdade de base racial existem de fato entre nós. Os elementos-chave para a não-politização e o enfraquecimento da consciência racial no Brasil seriam, para Hanchard: a) a assunção de que, devido à democracia racial, não existe discriminação de raça no Brasil, ao menos não na intensidade de outros países; b) a contínua reprodução e disseminação de estereótipos negativos com relação aos negros e de imagens positivas associadas aos brancos, o que resulta em dificuldades para a ação coletiva organizada; c) coerção e ameaças para os negros que pretendem ir de encontro a padrões assimétricos de relações raciais. Hanchard analisa as tentativas históricas de organização política dos negros no Brasil e chama a atenção para as transições na ênfase ideológica e na ação política dos diversos movimentos negros históricos. O autor procura destacar a transição de movimentos integrativos ou assimilacionistas, característicos da primeira metade do século XX, para o afro-marxismo contemporâneo, emergente a partir dos anos 70, definido como tendo desenvolvido uma crítica global à sociedade e não mais mobilizado por uma demanda meramente reinvidicativa. A questão cultural foi decisiva neste período formativo do moderno movimento negro e parece central na crítica que Hanchard dirige a estes grupos. Expressões como black, blackness e negritude passaram a dominar o vocabulário da época. Grande parte dos grupos concentrou sua ação simbólica sobre raízes africanas, baseando sua prática a partir daí, de modo que a negritude passou a ser a pedra fundamental para a definição de determinado sujeito político negro. Este processo associou-se à onda black soul na ênfase para a aparência, os cabelos etc. Externamente, as maiores dificuldades para os ativistas, no sentido de construírem um movimento de massas, foram a ausência de recursos, a hegemonia racial e o culturalismo prevalecente nos discursos dominantes sobre raça. Este último ganha papel de destaque na abordagem do autor. A fetichização de elementos culturais, tão marcante na produção de vários intelectuais que trataram da problemática racial no Brasil, transferiu-se para o conjunto da ideologia nacional e colonizou a consciência nacional/racial brasileira, de modo que certa economia política da representação racial (negra) restou profundamente contaminada pela perspectiva exotizante e alegórica dos Estudos Afro-Brasileiros. O pano de fundo político-cultural para a auto-representação negra e suas transformações preservaria esse fundo culturalizante. Assim é que os elementos mais assimilados pelos novos agentes sociais afrodescendentes, a partir da expressão cultural negra internacional, foram os mais eminentemente culturais. Dimensões práticas como boicotes, piquetes, desobediência civil e 107