Aproxima-se a hora da transferência de poder no Partido Comunista Chinês (PCC). O 18º Congresso do PCC, no segundo



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Transcrição:

ANO 20 Nº 3 MAIO/2012 tiragem: 20 000 exemplares E mais... Diário de Viagem Manaus converteu-se em metrópole a partir da implantação da Zona Franca, em 1967. Pág. 2 Editorial A corrupção provoca a descrença na política. Eis aí a maior das ameaças à democracia. Pág. 3 Duas décadas após a guerra que implodiu a Iugoslávia, a Croácia recebe o sinal verde da União Europeia. Pág. 3 Nicolas Sarkozy e François Hollande, os rivais principais nas eleições francesas, não têm respostas para a crise do euro. Pág. 4 Barack Obama apostas as fichas de uma reeleição difícil no voto hispânico. Pág. 5 Londres é uma cidade global desde o século XVIII. Mas a metrópole que recebe as Olimpíadas é uma cidade reinventada nas últimas décadas. Pág. 12 China tenta decifrar o enigma de seu futuro Aproxima-se a hora da transferência de poder no Partido Comunista Chinês (PCC). O 18º Congresso do PCC, no segundo semestre do ano, assistirá ao fim do mandato do secretário-geral Hu Jintao. Em 2013, Jintao deixará também o cargo de presidente da China e, junto com ele, sairá de cena o primeiro-ministro Wen Jiabao. Tudo indica que o posto de liderança será entregue ao vice-presidente Xi Jinping. Na superfície, funciona como uma máquina azeitada o sistema de direção coletiva e de sucessão ordenada criado por Deng Xiaoping, a figura que, entre 1978 e 1992, ergueu o edifício da China pós-maoísta. Nos subterrâneos, porém, desenrolam-se disputas pelo comando efetivo do PCC. O indício mais evidente da conflagração encontra-se no expurgo de Bo Xilai, afastado da chefia partidária da cidade de Chongqing e da alta cúpula do PCC. As disputas de poder no Partido refletem, de modo enviesado, diferentes visões sobre a encruzilhada em que se encontra a China. A nova grande potência mundial moldou a etapa da globalização iniciada na virada do século. O antigo Império do Centro se converteu em país de renda média e num ator crucial no comércio e nas finanças mundiais. Esta etapa, porém, chegou ao fim. A crise global, ainda em marcha, assinala o esgotamento do modelo de crescimento chinês baseado na exportação de bens industriais produzidos pela mobilização de força de trabalho barata. A demografia chinesa também conspira contra a manutenção do modelo econômico, enquanto explosões cada vez mais frequentes de insatisfação social evidenciam as Em Hong Kong, milhares protestam contra a corrupção e exigem democracia na China, ecoando reivindicações de milhões que se manifestam também na zona costeira e no continente chinês As paisagens, segundo Ab Sáber O geógrafo Aziz Ab Sáber morreu em março, mas suas inspirações e ideias estão vivas, nos campos da pesquisa e do ensino. Ab Sáber participou da obra coletiva, pontilhada de polêmicas, de interpretação da gênese e das dinâmicas do relevo brasileiro. Seus pontos de vista nem sempre prevaleceram, mas representaram, invariavelmente, pontos de referência para o debate. A geomorfologia de Ab Sáber atribuiu aos climas papéis determinantes na configuração do relevo e das paisagens naturais. Quando pensava nos climas, ele tinha em mente os paleoclimas: as sucessivas oscilações climáticas que acompanharam as glaciações do Quaternário. A sua abordagem excita a curiosidade científica e a imaginação racional. Quem estudou com ele ou leu seus textos aprendeu a gostar da Geografia Física. Págs. 10 e 11 Mike Clarke/AFP fissuras de um sistema de poder assentado sobre a ausência de liberdades políticas e sindicais. Veja as matérias nas págs. 6 a 9 Beatles, 50 anos Parlophone

Áthila Kzam Especial para Mundo Manaus, capital da Amazônia Ocidental N o último carnaval, aproveitei para fugir da confusão e realizar um passeio geográfico : conhecer a capital amazonense. Queria visitar a capital que apresentou o maior ritmo de crescimento econômico da Região Norte nas últimas décadas. Apesar de curta, a viagem proporcionou uma visão da realidade manauara. Localizada na confluência dos rios Negro e Solimões, Manaus foi fundada em 1669, pela implantação do forte de São José do Rio Negro. O nome é uma homenagem à tribo indígena manáos, do tronco linguístico aruaque que significa Mãe de Deus. A primeira impressão foi causada pela ponte sobre o rio Negro, de 3,5 quilômetros de extensão e orçada em mais de R$ 1 bilhão. Inaugurada no ano passado pela presidente Dilma Rousseff, no aniversário da cidade, é a segunda maior ponte fluvial estaiada do planeta e a maior do Brasil. Serve como ligação com a cidade de Iranduba, polo turístico pontilhado por hotéis de selva. Já figura, ao lado do Teatro Amazonas, símbolo da riqueza gerada pela borracha na Amazônia Ocidental no final do século XIX e início do século XX, como orgulho da população local. A ponte simboliza o crescimento econômico da cidade, processo associado diretamente à implantação da Zona Franca em 1967. Quatro décadas depois, Manaus ostenta o sexto maior PIB e a sétima maior população entre as cidades brasileiras. O distrito industrial abriga cerca de 600 empresas, principalmente dos setores de motocicletas, televisão e informática. Juntas, elas geram mais de 100 mil empregos diretos e, apesar das isenções alfandegárias, o distrito recolheu R$ 4 bilhões ao estado em 2011. O dinamismo econômico converteu Manaus em um polo de atração demográfica. Em 1960, eram apenas cerca de 200 mil habitantes; hoje, a população gira na casa de 1,8 milhão. A infraestrutura urbana não acompanhou o crescimento demográfico. Nos bairros periféricos, a paisagem está marcada por habitações precárias, construídas sobre palafitas. De acordo com dados da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, são mais de 20 mil palafitas construídas nos igarapés. Melhorar o sistema de saneamento básico é um desafio nacional, mas na capital amazonense a tarefa é mais árdua. A criminalidade, Wikipedia Em Manaus, cenários tradicionais, como o Teatro Amazonas, combinam-se com uma arquitetura avançada, como a da ponte de 3,5 km sobre o rio Negro, que procura atender às demandas de crescimento da região por seu lado, atingiu níveis alarmantes. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2009 Manaus ocupou a sétima posição entre as capitais mais vulneráveis à violência juvenil, ficando à frente do Rio de Janeiro, na oitava posição. Geógrafo que se preze não se contenta em visitar os tradicionais pontos turísticos de uma localidade. Fiz questão de conhecer a usina hidrelétrica de Balbina no rio Uatumã, a 180 quilômetros da capital, no município de Presidente Figueiredo, conhecido por suas cachoeiras. Nos 100 primeiros quilômetros, o percurso foi realizado pela BR-174 (Manaus-Boa Vista) que liga a capital amazonense a Pacaraima (RR). A rodovia se estende, ao todo, por 974 quilômetros e atravessa reservas indígenas como a dos waimiri-atroari, além do importante projeto de exploração mineral de Pitinga. Construída durante a ditadura militar e asfaltada no governo de Fernando Henrique Cardoso, o eixo rodoviário surpreendeu pelo bom estado de conservação. Os outros 80 quilômetros foram realizados pela rodovia estadual AM-240. Chegando lá, avistei o assombroso reservatório do empreendimento, um dos maiores desastres técnicos, ambientais e sociais da história do país. O lago, com mais de 2,3 mil km 2, foi responsável pelo remanejamento de povos tradicionais, além de provocar a submersão de uma vasta área florestada, o que provoca fortes emissões de gás carbônico (CO 2 ), o principal gás de efeito estufa. Com área alagada quase duas vezes maior que a de Itaipu (1.350 km 2 ), a usina amazonense não gera nem 5% da eletricidade produzida na hidrelétrica do rio Paraná. Nem mesmo consegue atender à demanda de Manaus, que continua a queimar petróleo em centrais termelétricas. Apesar dos problemas manauaras e dos municípios do entorno, o estado do Amazonas tem se esforçado, nos últimos anos, para superar o desflorestamento, estigma que marcou o processo de ocupação da fronteira amazônica. A enorme concentração econômica e demográfica na capital ajuda o estado a ensaiar um discurso de sustentabilidade, pelo menos enquanto forem contidas as frentes econômicas rumo ao interior. As iniciativas voltadas para o ecoturismo evidenciam as possibilidades de conciliação entre crescimento econômico, justiça social e proteção do meio ambiente. Após um agradável passeio no rio Negro, visitei o Parque Amazon Fish, que oferece comida regional deliciosa, ótimo atendimento e íntimo contato com a natureza. Um paraense em visita a Manaus não pode deixar de lado o tema da tradicional rivalidade entre as duas metrópoles amazônicas. A concorrência ganhou dimensões mais amplas com a escolha de Manaus como subsede da Copa do Mundo de 2014. As obras da Arena da Amazônia, no antigo estádio Vivaldão, curvam-se à lógica do atraso, típica das obras públicas brasileiras, mas já foram iniciadas. O problema ficará evidente quando o evento terminar, após a primeira fase da Copa. O que fazer, depois da festa efêmera, com uma obra de R$ 580 milhões num estado em que a final do campeonato de futebol recebe público de apenas 3 mil pagantes? Será que tem sentido o investimento faraônico, quando se sabe que Clube do Remo e Paysandu, os dois maiores, alcançaram médias de público de 13,6 mil e 5,3 mil, respectivamente, no último campeonato estadual? Roberto Carlos/Governo do Estado do Amazonas Na verdade, ao contrário do que reza a lenda, não ocorreu uma disputa genuína entre Manaus e Belém. A articulação política amazonense, liderada pelo senador e ex-governador Eduardo Braga, foi muito maior que a paraense. Belém, acuada pela trilogia desmatamento, conflitos agrários, prostituição, perdeu até mesmo para cidades menores, como Cuiabá e Natal, selecionadas pela FIFA para sediar partidas de sua Copa do Mundo. Rivalidade à parte, tive em Manaus a melhor recepção possível e já sinto vontade de retornar. Quem sabe em outros carnavais... Áthila Kzam, licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Pará e professor do ensino médio e cursos pré-vestibulares de Belém, é coautor do livro A Amazônia decifrada Para quem quer ser amazônida E X P E D I E N T E PANGEA Edição e Comercialização de Material Didático LTDA. Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia) Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779) Revisão: Jaqueline Rezende Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise Endereço: Rua Romeu Ferro, 501 São Paulo SP CEP 05591-000 Fones: (11) 3726.4069 / 2506.4332 Fax: (11) 3726.4069 E-mail: pangea@uol.com.br Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos no seguinte endereço, em São Paulo: Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900 Fone: (11) 3283.0340 www.clubemundo.com.br Infelizmente não foi possível localizar os autores de todas as imagens utilizadas nesta edição. Teremos prazer em creditar os fotógrafos, caso se manifestem. 2012 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 2

E D I T O R I A L Lembrem-se apenas de que o governo lhes pertence Ano passado, um após o outro, ministros do governo Dilma Rousseff tombaram em meio a escândalos de corrupção. Em nome de seus interesses pessoais, aqueles altos funcionários do poder público operavam como agentes de poderosos atores privados. Há pouco, eclodiu o escândalo da máfia de Carlinhos Cachoeira. Diante dos olhos de todos, ruiu a imagem santificada de um farsante: o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), cujo mandato pertencia, de fato, ao chefe mafioso. Rapidamente, emergiram as ramificações do esquema de Cachoeira no governo goiano de Marconi Perillo (PSDB) e no governo do Distrito Federal de Agnelo Queiroz (PT). Logo mais, ao que parece, o STF finalmente julgará o processo do mensalão, seis anos após a denúncia oferecida pelo procurador-geral da República. No banco dos réus estarão algumas lideranças do PT, inclusive José Dirceu, o mais poderoso dos ministros no primeiro mandato de Lula. A contaminação do cenário nacional pelos episódios de corrupção provoca uma reação generalizada tão compreensível quanto ingênua e perigosa. A política é a esfera do banditismo. Todos os políticos são iguais: não passam de uma alcateia de corruptos. A descrença geral no sentido público da política constitui a maior das ameaças à democracia: é nesse terreno tóxico que brotam as sementes do salvacionismo e do autoritarismo. Uma resposta a tal sentimento encontra-se num discurso de 1939 de Harry Hopkins, assessor do presidente Franklin Roosevelt, a jovens alunos da escola na qual estudara na adolescência: Não me parece que (...) grupos de pressão não possam tentar (...) influenciar o governo. Eles simplesmente estarão copiando o que fazem as empresas de eletricidade e as ferrovias. (...) Não é peciso recuar mais de 50 anos para descobrir que membros do Legislativo estavam na folha de pagamento das ferrovias, reconheceu Hopkins, antes de explicar que, apesar de tudo, pior seria renunciar à política. Este governo é nosso, quer seja municipal, estadual ou federal. Não pertence a ninguém, a não ser ao povo americano. Não o encarem como coisa de ninguém; não o tratem com desprezo, mas como algo que pertence a vocês. Pouco me importa que o critiquem, tampouco quero saber em que partido votam; lembrem-se apenas de que o governo lhes pertence. Croácia abre as portas da União Europeia à Sérvia e à Bósnia E m 2013, a União Europeia (UE) acolherá a Croácia como o 28º membro da organização. Desde 1957, quando foi criada a Comunidade Europeia, embrião da UE atual, os países do bloco definiram dois grandes objetivos a serem perseguidos. O primeiro era o de aprofundar o relacionamento entre os países-membros e o segundo, o de ampliar o número de seus integrantes. A integração vertical conheceu um forte avanço em 1992, quando o Tratado de Roma, até então o documento básico do bloco, foi substituído pelo Tratado de Maastricht, fonte da moeda comum. A ampliação horizontal avançou gradativamente, a partir do núcleo original dos seis signatários do Tratado de Roma (França, Alemanha Ocidental, Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo). Nos anos 1960, foram incorporadas a Grã-Bretanha, a Irlanda e a Dinamarca. Na década seguinte, o bloco admitiu Portugal, Espanha e Grécia, a periferia mediterrânica. Nos anos 1990, ingressaram na UE a Áustria, a Suécia e a Finlândia. Com a queda do Muro de Berlim e o encerramento da Guerra Fria, o alargamento gradativo deu lugar a um salto impressionante. Na primeira década do século XXI foram aceitos 12 novos membros. Em 2004, dez países foram aceitos, inclusive nações que haviam pertencido ao bloco soviético da Europa Oriental (Polônia, Hungria, República Tcheca e Eslováquia), as três repúblicas bálticas da antiga União Soviética (Estônia, Letônia e Lituânia), a antiga República Iugoslava da Eslovênia, além dos pequenos Estados A minoria sérvia na Croácia ESLOVÊNIA M A R A D R I Á T I C O C R O Á C I A 1 Zagreb insulares de Chipre e Malta, antigas colônias britânicas. Três anos mais tarde, passaram a fazer parte do bloco a Romênia e a Bulgária, antigos satélites soviéticos. A Europa dos Seis de 1957 transformou-se, meio século depois, na atual Europa dos Vinte e Sete. A Croácia é um Estado recente, oriundo do desmembramento da Iugoslávia na primeira metade da década de 1990. Ao lado da Eslovênia, o país figurava como república mais próspera da antiga Iugoslávia, um Estado federal criado pelo marechal Josip Broz Tito em 1945. O novo integrante da UE possui pouco mais de 56 mil km 2, extensão comparável ao estado da Paraíba, e uma HUNGRIA 2 3 B Ó S N I A SÉRVIA MONTENEGRO Áreas tradicionais de povoamento sérvio na Croácia Krajina Eslavônia ocidental Eslavônia oriental população de aproximadamente 4,5 milhões de habitantes. A guerra é uma memória viva entre os croatas. Entre 1991 e 1995, o país atravessou um sangrento conflito que contrapôs a maioria croata (85% da população) à minoria sérvia. Os sérvios étnicos, que há muito habitavam territórios croatas junto à fronteira com a Bósnia, não aceitavam viver numa Croácia independente. No início das hostilidades, líderes sérvios proclamaram a efêmera República Sérvia de Krajina, que existiu até 1995 (veja o mapa). A guerra, vencida naquele ano pelo governo croata, deixou cerca de 20 mil mortos. Grande parte da população de origem sérvia residente na Croácia buscou 1 2 3 refúgio na Bósnia e na Sérvia ou pereceu nos combates. Segundo o governo croata, atualmente os sérvios correspondem a 4,5% da população total. Fontes não oficiais, contudo, asseguram que a população remanescente de sérvios étnicos é bem inferior ao divulgado. O processo de incorporação da Croácia começou em 2003, com um pedido de adesão, mas se arrastou de impasse em impasse. A primeira dificuldade foi o cumprimento dos rigorosos critérios econômicos impostos pelo bloco europeu. Durante algum tempo, as negociações esbarraram na oposição da Eslovênia, com a qual a Croácia possui algumas questões fronteiriças não totalmente resolvidas. Por fim, havia a exigência de que o governo croata se empenhasse mais ativamente na captura de militares acusados de crimes de guerra, mas considerados heróis por parcela da população. O mais famoso deles, Ante Gotovina, foi condenado em 2011 pelo Tribunal Penal Internacional de Haia. O Parlamento Europeu aprovou a entrada da Croácia em dezembro de 2012. Em referendo, no mês seguinte, cerca de dois terços dos eleitores croatas confirmaram a adesão. A incorporação da república tão profundamente envolvida nas guerras que acompanharam a implosão da Iugoslávia pode abrir as portas para a entrada da Sérvia, da Macedônia, da Bósnia, de Montenegro e, quem sabe, até de Kosovo. Em meio à crise do euro, que abala os seus alicerces econômicos e políticos, a UE empurra suas fronteiras até o núcleo da antiga Iugoslávia. 3 MAIO 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

O Discursos nacionalistas marcam Cláudio Camargo Especial para Mundo atentado de Toulouse, onde três crianças e um rabino foram assassinados numa escola judaica pelo terrorista islâmico Mohammed Merah, em 21 de março, reacendeu a velha chaga francesa em torno da imigração e deu fôlego à combalida candidatura do presidente Nicolas Sarkozy. Merah, 24 anos que, antes, já eliminara três militares franceses, dois dos quais muçulmanos foi morto no dia seguinte numa operação policial. A candidata da Frente Nacional, de extrema-direita, Marine Le Pen, bem que tentou capitalizar o episódio vociferando contra a islamização da França, mas Sarkozy saiu-se melhor, com um duro discurso de condenação do terrorismo, porém Na França, o inexpressivo candidato socialista François Hollande (foto) ganhou pontos inesperados contra o presidente Nicolas Sarkozy, desgastado pela crise do Euro e por uma postura ofensiva para com as comunidades estrangeiras e de imigrantes ilegais; mas o crescimento dos extremistas Marine Le Pen (à direita no espectro ideológico) e Jean-Luc Mélenchon (à esquerda) foi a grande surpresa em defesa da República, como se espera de um chefe de Estado francês. Ganhou pontos e subiu nas pesquisas de intenção de voto. Meses antes, contudo, Sarkozy havia radicalizado o discurso anti-imigração, justamente para tentar tirar votos de Le Pen, como fez na campanha eleitoral de 2007 contra o pai dela, Jean-Marie. O presidente disse que a França tem estrangeiros demais em seu território. Não podemos mais encontrar acomodação, trabalho e escolha para eles. Precisamos dividir por dois o número de pessoas que recebemos; isso quer dizer passar de 180 mil para 100 mil pessoas por ano, disse Sarkozy. O presidente francês já havia provocado polêmica ao sugerir que os açougues etiquetassem as carnes de forma a deixar claro quando elas tivessem sido obtidas a partir de cortes religiosos kosher (judeu) e halal (muçulmano). Conseguiu a façanha de atrair contra si o repúdio simultâneo das comunidades judaica e islâmica. No início do ano, o governo havia comemorado o fato Alemanha de Angela Merkel, na melhor. Os números são implacáveis e exprimem a herança do governo de Sarkozy: a dívida pública da França subiu de 60% do PIB para 85,5% em cinco anos e o país passou pelo vexame inédito de ter os títulos de sua dívida rebaixados. Com essa herança maldita nas costas, o presidente que no exterior é conhecido como um dos grandes pilares da defesa da Zona do Euro desde a crise de 2008 mudou de discurso na campanha eleitoral e passou a criticar alguns aspectos da União Europeia. Recentemente, atacou o Tratado de Schengen, acordo que permite a livre circulação de cidadãos em 26 países europeus. Ele disse que, da forma como está, o tratado não permite o controle das fronteiras, ameaçando inclusive retirar a França do acordo. O presidente francês também ensaia uma velada defesa do protecionismo e ameaça congelar a contribuição da França para a burocracia de Bruxelas (sede da União Europeia). Já o candidato do Partido Socialista, François Hollanfrança as eleições francesas Crise do Euro ameaça o reinado do presidente Sarkozy, que apela à xenofobia. À esquerda, o socialista Hollande promete renegociar o pacto fiscal europeu, enquanto Mélenchon, candidato radical, fala em romper com a UE de ter batido o recorde de expulsões de estrangeiros em 2011 32.922 imigrantes deportados. E o Ministério do Interior jogou mais lenha na fogueira ao dizer que a meta do governo é atingir a cifra de 35 mil deportados em 2012 e que taxa de criminalidade entre os estrangeiros é de duas a três vezes superior ao índice médio geral. Com diferenças de grau, os candidatos da direita Sarkozy e Le Pen têm manipulado a questão da imigração como tática diversionista para eludir o problema maior da crise do euro, que ameaça lançar a França na vala comum dos países inadimplentes, na pior das hipóteses, ou na condição de mera caudatária da política econômica da Jean-Marc Ayrault de, iniciou a campanha prometendo aumentar a taxação de grandes fortunas e lutar por um novo pacto europeu para enfrentar a crise que inclua não apenas medidas de austeridade e corte de gastos, mas que busque garantir o crescimento econômico. Hollande também propôs que a Europa passasse a emitir eurobonds, títulos da dívida compartilhados por todos os países da Zona do Euro proposta enfaticamente rejeitada por Angela Merkel. Os mercados europeus ficaram alarmados e Hollanda foi a Londres tranquilizá-los, lembrando que ninguém privatizou mais na França do que os socialistas. Também deu uma entrevista à revista alemã Der Spiegel tentando minimizar o impacto de suas propostas. No que diz respeito ao euro, à dívida soberana e aos déficits orçamentários, Hollande que afirma agora querer renegociar o Pacto Fiscal segue a mesma linha de outros dirigentes social-democratas, como Yorgos Papandreu (Grécia), José Sócrates (Portugal) e José Luís Zapatero (Espanha), que depois de terem renegado seus princípios e aceitado a forca de Bruxelas, foram eleitoralmente expulsos do poder, analisa o jornalista Ignacio Ramonet. Mas a grande novidade dessas eleições atende pelo nome de Jean-Luc Mélenchon, candidato da Frente de Esquerda coligação de partidos de extrema-esquerda que inclui trotskistas como o próprio Mélenchon e o velho, quase extinto, Partido Comunista Francês. Mélenchon atingiu 15% das intenções de voto, roubando o terceiro lugar e a bandeira de candidato antissistema da direitista Le Pen. Dissidente do Partido Socialista, o ex-ministro do governo de Lionel Jospin tem galvanizado parte da opinião pública, reunindo multidões em seus comícios. Em 18 de março, ele levou nada menos que 120 mil pessoas à Praça da Bastilha para comemorar os 141 anos da Comuna de Paris de 1871. Com um programa radical que promete aumentar o salário mínimo para 1,7 mil euros, lançar um pacote de choque contra o desemprego (9,9%, o maior em 12 anos) e fazer os bancos pagarem a fatura da crise, Mélenchon conseguiu a proeza de recuperar para a esquerda parte de um eleitorado que há duas décadas havia sido perdido para a extrema-direita da Frente Nacional. Segundo o Instituto Infop, o candidato esquerdista conquistou o apoio dos trabalhadores de baixa renda, entre eles operários não qualificados e funcionários públicos de nível básico. Sob o impacto da crise econômica, todos os candidatos presidenciais deixaram a Europa um pouco de lado e adotaram uma postura mais ou menos nacionalista. Parecem ecoar o líder socialista Jean Jaurès (1859-1914), que dizia: um pouco de internacionalização afasta-nos da pátria; muito, reconduz-nos a ela. Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo 2012 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A

Obama corteja eleitorado latino, que O Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores s republicanos encampam o medo da classe média branca de perder a maioria e não mais liderar a América, diz Clyde Wilcox, cientista político da Universidade Georgetown. Mas terão de aprender a dialogar com a América multicultural em eleições presidenciais. Wilcox sustenta que eles estão do lado errado da história, neste momento, e serão obrigados a se adaptar aos novos tempos. Acha, como arremate, que os latinos são hoje capazes de definir eleições presidencial nos Estados Unidos. Embora não esteja contente com Obama, que não cumpriu a promessa de reformar a lei de imigração, e de ser o presidente recordista em índices de desemprego na história recente, é mesmo com Obama que está a maioria dos latinos. Wilcox já estaria a ponto de acertar. O voto hispânico será decisivo nas eleições presidenciais de novembro, como suporte da conquista, por parte de Obama, de um segundo mandato, para assombro da América branca, assegura a revista Time. As pesquisas dão grande vantagem a Obama nos 21 estados onde se concentra a maioria dos votos latinos. Foram feitas tomando Mitt Romney como o mais provável, a essa altura praticamente certo, candidato republicano. Romney teria apoio menor dos hispânicos do que o dado a John McCain, candidato da mesma legenda nas eleições anteriores, em 2008. Resta ainda saber se os latinos votarão em massa, feito manada, como falou um pesquisador, nos estados onde são mais numerosos, como Arizona, Novo México e Nevada. Obama seria o mais prejudicado se for grande a abstenção de latinos. É um interrogante que perturba a campanha do presidente. Tudo indica que, qualquer que fosse o candidato republicano, Obama teria entre os latinos apoio amplo e extenso, talvez capaz de conduzi-lo ao triunfo. O presidente lidera as pesquisas com vantagem de até 67% a 24%. Isso em que pesem as estatísticas que evidenciam um milhão de ESTADOS UNIDOS pode definir a eleição A maior minoria Hispânicos, que formam a mais numerosa minoria no país, tendem a votar em massa no presidente. É menos uma resposta às suas políticas e mais uma rejeição à América branca dos republicanos crianças hispânicas vivendo na pobreza, entre outros fatores negativos. Este cenário permite concluir que os votos hispânicos pró-obama significarão muito mais votos contra a América branca e de fortalecimento da América multicultural. Seu conduto não poderia ser mais apropriado: o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, uma figura que enfatiza sempre suas origens miscigenadas. Há, neste contexto, para assombro ainda maior da América branca, um presidente negro nomeando quantidade substancial de latinos para altos cargos no governo. Não deveria ser surpresa para ninguem, escreveu o jornal Washington Post, como se endossasse as previsões de Wilcox. Os latinos já representam mais de 15% da população americana, configurando a principal minoria do país (veja o box). Dois terços deles votaram em Obama em 2008 e podem lhe dar a reeleição em novembro. A minoria latina estaria ganhando retribuições por seu apoio ao presidente? É outro componente do assombro da América branca, que fala de uma terceirização da política externa americana para um grupo étnico de Em Washington, protestos em defesa dos direitos dos imigrantes explicitam um quadro de tensão social que percorre os Estados Unidos Segundo as categorias censitárias utilizadas nos Estados Unidos, os brancos formam cerca de 64% da população total. O censo de 2010 registrou a presença de 16,3% de hispânicos, 13,6% de negros e 4,8% de asiáticos. A categoria hispânicos agrupa todas as pessoas que se originam da América Latina, inclusive do Brasil. Sua existência revela que, do ponto de vista do Estado norte-americano, os imigrantes latino-americanos aparecem como um grupo mais ou menos homogêneo e claramente distinto daquele constituído pelos antigos imigrantes europeus, que aparecem no rótulo geral dos brancos. A distribuição espacial dos grupos censitários da população evidencia importantes diferenças. A população de origem europeia é majoritária no norte e no centro do país. Os negros constituem a maioria nos estados do Deep South ( Sul Profundo ), ou seja, nas antigas áreas de plantations escravistas do sudeste. Os mexicanos e seus descendentes, principal subgrupo entre os hispânicos, predominam na extensa faixa do sudoeste, entre o Texas e a Califórnia. A população de origem mexicana nos Estados Unidos, que abrange os imigrantes e seus descendentes, soma cerca de 25 milhões, dos quais 10 milhões residem na Califórnia. Nos estados meridionais, a população de origem mexicana gira em torno de um quinto do total. Nessa faixa de fronteira cultural, o espanhol funciona, tanto quanto o inglês, como língua franca. Eric Purcell eleitores potenciais. Pela primeira vez na história dos Estados Unidos os hispânicos tem representante numa subsecretaria do Departamento de Estado: Maria Otero, com raízes na Bolívia, é subsecretária para Democracia e Assuntos Globais um cargo com responsabilidades não limitadas à América Latina. E não é só isso: o diplomata a cargo da América Latina é Arturo Valenzuela, o primeiro latino nomeado subsecretário de Estado com responsabilidades envolvendo questões no continente. A confirmação de Valenzuela no cargo, por parte do Senado norte-americano, foi difícil e demorada. Sofreu bloqueio de conservadores republicanos, mas Obama não desistiu; manteve a nomeação e conseguiu que fosse, afinal, consagrada. Valenzuela, de origem chilena, é tido como um dos mais bem informados altos funcionários do Departamento do Estado quando o assunto é América Latina, há 40 anos objeto de seus estudos. Além disso, Obama nomeou latinos para embaixadores no México e Argentina, e também para El Salvador e República Dominicana. Não poderia faltar Cuba. Obama sugeriu que a política para Cuba iria potencialmente em nova direção. Julissa Reynoso, uma advogada de 35 anos e de origem dominicana, foi nomeada subsecretária-assistente para a América Central, Cuba e Caribe. Embora tida como segura e talentosa, uma ativista vinculada a boas causas, ela se vê obrigada a enfrentar alguns dos personagens mais duros da política externa americana. Dois altos funcionários da equipe diplomática de Bush para a América Latina, Otto Reich e Roger Noriega, deixaram com o herança uma obsessão anticastrista tida como ideológica e arrogante. Reynoso caminha numa corda bamba, distinguindo-se de Reich e Noriega, mas evitando parecer excessivamente conciliadora com Cuba. É dela a ressalva de que as autoridades cubanas não têm interesse em melhorar a relação com os Estados Unidos, feita com o objetivo de preservar o voto hispânico diante das incertezas de nova Cúpula das Américas. Obama, por meio do Departamento de Estado, manifestou-se com dureza contra a participação de Cuba na Cúpula das Américas. Assim, não deu nova carga de munição aos republicanos que o acusam de transigência com Hugo Chávez e sua revolução bolivariana. Os aliados diretos de Chávez, mas também o Brasil e a Argentina, queriam a presença de Cuba no evento, forçando o presidente da Colômbia, país-sede da cúpula, a ir a Havana e convencer Raúl Castro de que não havia clima para convidá-lo. Obama não chegou a definir claramente uma política para a América Latina, mas presta atenção crescente aos humores do heterogêneo eleitorado latino dos Estados Unidos. Ele sabe que, desse componente da população americana, pode depender seu futuro político. MAIO 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

o país dos mandarins N ão importa a cor do gato. O que importa é que ele cace os ratos. O maoísmo foi abolido na China com esse lema, de Deng Xiao-Ping, lançado em 1979. Ao longo de três décadas, a introdução da economia socialista de mercado na verdade, um sistema de capitalismo de Estado transformou o antigo Império do Centro num dos polos da economia globalizada. Atraindo investimentos estrangeiros, absorvendo tecnologias, matérias-primas e combustíveis do mundo inteiro e produzindo manufaturas baratas para o mercado mundial, a China tornouse quase um sinônimo de globalização. Contudo, desde a queda do banco Lehman Brothers, em 2008, evento deflagrador da crise financeira global, multiplicam-se os indícios de que uma etapa chegou ao fim: a China precisa encarar novos desafios e mudar seu modelo de crescimento. A expansão chinesa integrou fortemente o país aos fluxos mundiais de mercadorias e capitais. A participação do país no comércio mundial passou de menos de 1% em 1973 para cerca de 9,5% em 2010. Atualmente, a China ocupa o primeiro lugar no ranking dos maiores exportadores mundiais, à frente de Estados Unidos e Alemanha, e o segundo no ranking dos importadores, atrás apenas dos Estados Unidos. A China mantém enormes saldos comerciais positivos com os Estados Unidos e a União Europeia, mas registra saldos negativos nos intercâmbios com o Japão e os Tigres Asiáticos. Isso significa que ela funciona como um nexo produtivo entre a Ásia e o Ocidente. Na pauta de exportações chinesas, os bens de alta tecnologia ocupam lugar de destaque. O país é, hoje, o maior exportador global de produtos ligados à tecnologia da informação, como equipamentos de telecomunicações, computadores, componentes eletrônicos e audiovisuais. Entretanto, a China não controla as tecnologias mais importantes dos produtos que fabrica. Calcula-se que as empresas chinesas obtenham apenas 15% do valor dos produtos de tecnologia da informação exportados pelo país. Isso porque essas empresas realizam a montagem final de bens cujos componentes mais valiosos são fabricados no exterior. Na última década, as manufaturas chinesas encontraram mercados insaciáveis, movidos a crédito e dívida, nos Estados Unidos e na União Europeia. A torrente de bens fabricados na China a AFP custos irrisórios assegurou um crescimento acelerado do consumo, em ambiente de juros baixos e inflação quase inexistente. A festa acabou. A crise global exige que as economias desenvolvidas reduzam seus déficits comerciais, importando menos da China. É nesse contexto que ganha terreno, entre europeus e norte-americanos, o protecionismo social e ambiental (veja a matéria na pág. 8). O modelo chinês não encontra apenas limites internacionais, mas também limites internos. O PIB per capita da China, calculado pela paridade do poder de compra, saltou de US$ 436 em 1984 para quase US$ 8,4 mil em 2011 (veja o gráfico 1). O país ingressou na faixa das economias de renda média, como o Brasil e a Rússia. Nesse passo, seus custos de produção começam a crescer, algo que se tornará mais evidente nos próximos anos. A dinâmica demográfica tem seu peso no aumento dos custos de produção. A China tem cerca de 1,35 bilhão de habitantes, mas o programa oficial de controle da natalidade, aplicado rigidamente desde a década de 1970, pode ter reduzido o incremento demográfico em até 300 milhões de pessoas. China encara os des A nova liderança não terá uma trajetória tão fácil na economia, que cresceu à média anual de 10% desde 2002, apesar do trauma da crise financeira global. A vantagem demográfica da China um suprimento abundante de trabalho no meio rural começa a evaporar. (...) Sem mudanças de vulto, politicamente perigosas, se tornará cada vez mais difícil manter o ritmo acelerado de urbanização que tem sido um dos principais motores do crescimento. Olhando para o horizonte de 2020, muitos economistas chineses temem uma queda na armadilha da renda média : a perda de competitividade nas indústrias de trabalho intensivo sem a criação de novas fontes de crescimento baseadas na inovação. (James Miles, Special Report: China, The Economist, 23 de junho de 2011) Dezembro de 2011: moradores da vila de Wukan desafiam a polícia e o exército, em protestos contra a corrupção e a especulação imobiliária; pela primeira vez desde 1989, aparecem cartazes exigindo a fim da ditadura na China Os efeito disso se fazem sentir na estrutura etária. A idade média dos chineses aproxima-se de 35 anos. A proporção de idosos, com mais de 60 anos, saltará de 12,5% em 2010 para 20% em 2020. A população na faixa etária de 15 a 59 anos já atingiu seu ápice e começa a declinar, em contraste com o que ocorre na Índia, no Brasil ou no México (veja o gráfico 2). O declínio da população ativa, em números absolutos, já se iniciou e tende a se acelerar. Junto com a redução do ritmo do êxodo rural e o desenvolvimento tecnológico do setor industrial, esse declínio exerce pressão sobre os custos da mão de obra. Diversas indústrias já começam a se transferir das províncias litorâneas para o interior, em busca de trabalho mais barato. A economia socialista de mercado foi implantada sob ditadura de partido único. A concessão de uma série de direitos econômicos não foi acompanhada pelo reconhecimento de liberdades políticas ou direitos sindicais. Durante algum tempo, antes e depois da explosão das manifestações por democracia na Praça da Paz Celestial, em 1989, o crescimento econômico assegurou uma relativa estabilidade Gráfico 1 Evolução do PIB per capita da China (1984-2011) social. Mas o controle do Partido-Estado sobre a população conhece fissuras cada vez mais profundas. Os efeitos da crise global acendem milhares de fogueiras de insatisfação nas províncias chinesas (veja a matéria na pág. 7). Nenhum país do mundo com PIB ainda relativamente baixo enfrentou envelhecimento tão rápido de sua população. Na China, a idade oficial de aposentadoria, de 60 anos para os homens e 50 para as mulheres, não mudou desde 1951, quando a expectativa de vida era de 46 anos, em contraste com os 73 atuais. Dois anos atrás, circularam rumores de que o governo preparava uma reforma, com aumento na idade de aposentadoria. Logo em seguida, porém, os trabalhadores franceses fizeram greve contra o projeto do governo de Nicolas Sarkozy de aumento da idade de aposentadoria. Então, apressadamente, as autoridades chinesas negaram a existência de qualquer projeto desse tipo. Num país sem direitos políticos ou sociais, a insatisfação popular não é conduzida para os trilhos das instituições democráticas, mas emerge como desafio direto ao regime. 2012 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A US$ milhares (ppc) 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 % 70 65 60 55 50 45 FONTE: Fundo Monetário Internacional (FMI), World Economic Outlook Database, 2011 Gráfico 2 População entre 15 e 59 anos de idade China Índia Brasil FONTE: ONU, United Nations Population Prospects, 2010 México 1970 1980 1990 2000 2010 2020 2030

afios de país de renda média Um milhão de motins N o final de dezembro de 2011, o exército chinês promoveu um cerco à pequena cidade de Wukan, de 20 mil habitantes, situada na riquíssima região de Guangdong. Os militares impediram a entrada de alimentos, restringiram o acesso de pessoas e informações e, além disso, impuseram, aos domingos, a proibição de circulação de pessoas para fora dos limites da cidade. Centenas de policiais secretos foram enviados para a região, transformada em praça de guerra. A mobilização ostensiva do exército não foi suficiente para impedir contínuas manifestações e atos de protesto organizados pela população local, em sua maioria integrada por pescadores, camponeses e trabalhadores industriais. O processo que desembocou Adam Dean/World Economic Forum nesse cenário oferece uma radiografia das ameaças que rondam a economia chinesa e, por extensão, o equilíbrio das finanças mundiais. As revoltas populares começaram em setembro do ano passado, contra expropriações forçadas de terra executadas pelo governo para favorecer empresas imobiliárias privadas. Em semanas, e com preços irrisórios, mais da metade do território do município foi subtraído dos habitantes e transformado em área urbana apta à construção de edifícios. O governo reprimiu os protestos com violência, mobilizando soldados das tropas de choque, utilizando bombas de gás lacrimogênio e canhões de água. Dezenas foram feridos, incluindo mulheres e crianças, ao passo que 13 homens foram presos sob acusação de liderar as revoltas. O apito da panela de pressão foi o assassinato, na cadeia, de Xue Jinbo, reconhecido como o seu líder mais importante. A polícia anunciou que a morte deveu-se a um ataque cardíaco, mas o corpo não foi entregue aos familiares, que denunciam indícios de espancamento, queimaduras e maus tratos. Pela primeira vez desde o massacre da Praça da Paz Celestial, praticado pelo exército em 4 de junho de 1989, resultando na morte de pelo menos 2 mil pessoas, manifestantes chineses levaram às ruas cartazes que pedem o fim da ditadura e a morte dos funcionários corruptos do Partido Comunista Chinês. As manifestações de Wukan foram, nesse sentido, mais radicalizadas politicamente do que as de Xinjiang, no verão de 2009, quando foram mortos pelo menos 200 integrantes da etnia uigur, de maioria islâmica, que denunciavam o governo por prática de opressão e discriminação religiosa com objetivos econômicos. Wukan é a ponta de um imenso iceberg que ameaça levar ao naufrágio o Titanic da economia chinesa. Os fatos falam por si: em julho de 2009, trabalhadores da estatal Siderurgia Tonghua, em Jilin, organizaram greve geral e manifestações de massas vitoriosas contra a sua privatização. No primeiro semestre de 2010, uma vaga de greves percorreu as indústrias eletrônicas, têxteis e automobilísticas situadas nas províncias costeiras da China. Em 2011, pipocaram greves e manifestações em todo o país. São sinais claros de que a crise econômica mundial mostra, finalmente, seus efeitos na China: nos últimos dois anos, milhões de operários perderam seus postos de trabalho, e milhares de empresas, minadas pela queda das exportações, fecharam as suas portas. O modelo baseado na produção de baixo custo destinada ao exterior mostra os seus limites: O primeiro-ministro chinês Wen Jiabao (foto maior) e o ex-presidente Jiang Zemin, ambos do Partido Comunista Chinês, acumulam fortunas pessoais avaliadas em bilhões de dólares, graças a um sistema que combina uma feroz ditadura com a mais desenfreada corrupção Gabinete de Coordenação da Cerimônia de Transferência de Macau quando os países importadores deixam de comprar, o crescimento chinês desacelera e as tensões sociais emergem sob a forma de milhões de motins. Há uma situação latente de revolta e pânico entre a população, que nem toda a censura do mundo consegue esconder. Em Wukan, por exemplo, o bloqueio total de notícias não impede a circulação de pedidos de ajuda feitos por habitantes via telefone, nem os boatos de que autoridades locais, funcionários do partido e empresários tiveram que abandonar a cidade, num cenário de anarquia. As dimensões potenciais dos problemas se revelam quando se considera que existem, na China, mais de 200 milhões de pobres (pessoas que vivem com menos de um dólar por dia), segundo estatísticas do Banco Mundial. E mesmo os trabalhadores empregados não têm muito o que comemorar: o salário médio corresponde a cerca de 5% do praticado nos Estados Unidos, 6% da Coreia do Sul e 40% do mexicano. O desaquecimento econômico mudial tende a agravar esse quadro, que se combina com um extenso desastre ambiental: rios poluídos e áreas desertificadas e submetidas a processos de erosão expulsam do campo milhões de famílias que já não conseguem mais se sustentar com o resultado de seu trabalho. De acordo com o World Wealth Report (publicação de um grupo de consultoria privada com negócios em todo o mundo), as famílias mais ricas, que representam 0,4% da população, controlam 70% da riqueza nacional da China. O detalhe é que as maiores fortunas da China estão nas mãos das famílias ligadas ao Partido Comunista Chinês. Calcula-se que o premiê chinês Wen Jiabao é um dos primeiros-ministros mais ricos do mundo, com fortuna familiar estimada em US$ 4,3 bilhões. Jiang Zemin, ex-presidente e secretário-geral do PCC acumula US$ 1 bilhão e o ex-primeiro-ministro Zhu Rongji, algo semelhante. Como resultado da rede que interliga os altos funcionários do Partido Comunista Chinês, os governantes do Estado e o próprio capital, a crise econômica acaba sendo também uma crise de governo e uma crise do partido, percebido pela população como um antro gigantesco da mais desenfreada corrupção. Há uma guerra sem quartel entre os membros da elite governante e empresarial, em que nomes prestigiados caem repentinamente por terra, ao passo que outros desconhecidos passam a tomar conta das manchetes. No final de março, caiu em desgraça um alto funcionário do partido, Bo Xilai, cujo pai tinha sido amigo de Mao Tsé-Tung, líder da revolução chinesa. Bo, que fazia um discurso populista contra a corrupção, foi afastado de seu posto de dirigente do partido no centro industrial de Chongqing por inimigos que, nos bastidores, tramam a sucessão ao cargo de secretário-geral do PCC, o mais importante posto político do país. As tensões se acumulam na China com uma velocidade e configuração que causam imensa preocupação em todo o mundo. O Brasil, em particular, teria muito a perder com a eventual explosão da crise chinesa, já que o país se tornou o seu principal parceiro comercial. MAIO 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

o país dos mandarins Crescimento da China bate em três muralhas O Gilson Schwartz Especial para Mundo mesmo fantasma assola as grandes economias que nesses últimos anos passaram à categoria de emergentes, principalmente China e Brasil. É a ilusão de que não apenas sobreviveriam como seriam o próximo núcleo de desenvolvimento global a despeito da crise e da recessão que assolam as economias ocidentais mais desenvolvidas, o Primeiro Mundo, desde o estouro da crise em Wall Street, em 2008. A expansão (no caso da China) e a estabilidade de preços (caso brasileiro) foram vendidos pelos economistas como vitórias do mérito estratégico chinês ou da adesão inédita do Estado brasileiro à desestatização, privatização e ao ajuste fiscal em nome da estabilidade de preços. Ou seja, as elites da periferia mundial (fornecedores de matérias-primas, no Brasil, e de mão de obra barata, na China) nas últimas duas ou três décadas surfaram na onda de alta das economias ocidentais nos anos 1988-2008. Venderam para seus públicos internos e para consumo internacional uma narrativa de sucesso no desenvolvimento, enquanto bancos de investimento inventaram o ícone BRICS (veja a matéria na pág. 9). Tudo isso serviu para reforçar a hipótese maluca de que, no mesmo processo que leva à globalização, estaria ocorrendo uma espécie de blindagem das economias emergentes em caso de crise no núcleo do sistema. Enquanto a música financeira (e militar) da banda hegemônica na economia global tocou alta e animada, essa narrativa colou. Menos de três anos depois do colapso do sistema financeiro ocidental, já há sinais evidentes de corrosão da confiança (desde sempre irracional) numa força da Periferia capaz de compensar a crise do Centro (paradoxalmente efeito da globalização que, a rigor, teria tornado todos os sistemas produtivos e financeiros do planeta interdependentes). A globalização não acabou com a polaridade Centro-Periferia, e quando as massas consumistas do Norte rico e hegemônico caem na depressão, o efeito sobre os produtores de matérias-primas ou de componentes e linhas de montagem com mão de obra hiperexplorada pegam bem mais que uma pneumonia. Além da inconsistência das hipóteses de que as engrenagens produtivas da China (ou do Brasil) possam escapar imunes à recessão global, a progressão da consciência ambiental e a maior sensibilidade do eleitor médio norteamericano ou europeu ao espetáculo deprimente das sweatshops (as fábricas apoiadas em trabalho barato) chinesas, vietnamitas ou tailandesas tornam evidentes os limites do modelo chinês (basicamente, hiperexploração de mão de obra qualificada para atender aos fluxos comerciais das plataformas de exportação). O eleitor olha para o iphone novinho em folha e já começa a se perguntar quantos empregos o consumo do aparelhinho está, no final das contas. gerando nos Estados Unidos ou na União Europeia. Roberto Stuckert Filho/PR Crise do Ocidente, impacto ambiental e inovação desafiam a nova liderança comunista Assim como o fim da escravidão, o horror contemporâneo à poluição e à hiperexploração do trabalho reflete em parte uma agenda negativa, ou seja, é preciso crescer mais, porém consumindo menos, de modo mais inteligente e respeitando direitos trabalhistas, direitos democráticos e uma justiça mínima na distribuição da renda. O protecionismo ambiental e social tende a desarticular plataformas exportadoras de matérias-primas ou de linhas de montagem disciplinadas e baratas na China (ou no Brasil) tanto quanto o combate à escravidão representou um limite à expansão das plantations nas colônias do capitalismo comercial. A terceira grande muralha que evidencia os limites do modelo chinês de crescimento acelerado é menos material que a crise ou os recursos ambientais e humanos, embora seja cada vez mais a condição imaterial para que os países conquistem posições e ocupem espaços na evolução econômica global: a inovação. Inovação, criatividade e invenção tornaram-se o mantra do capitalismo do conhecimento global que marca a grande transição dos sistemas industriais herdados do século XIX para a emergência de sociedades de informação em rede, marcadas por novas formas de inteligência coletiva, organização social e expressão cultural. A liberdade, nesse mundo que apenas aparentemente é apenas digital, é o ativo mais elementar, estratégico e indispensável da produção de riqueza, justiça, saúde pública e ambiental, assim como diversidade cultural. Não é preciso ser especialista em China para desconfiar da sustentabilidade do crescimento econômico e do desenvolvimento humano numa sociedade em que o Estado censura a internet e ainda prende artistas performáticos. Nesse campo, o país deixa muito a desejar para uma potência que seria a fronteira do capitalismo do futuro. A China (e o Brasil) já começam a sentir o efeito bumerangue da crise no consumismo ocidental, reflexo de uma crise Um mundo em crise volta os olhares para a China, cuja economia funciona como o motor da economia global e principal sustentáculo dos BRICS, cujos chefes de Estado realizaram a 4 a reunião de cúpula em março, em Nova Délhi (Índia) mais profunda, que promete ser duradoura nas maiores economias do planeta. A economia chinesa apresenta, no início de 2012, o pior resultado em três anos. As autoridades chinesas já dão o braço a torcer. Segundo Sheng Laiyun, porta-voz do Escritório Nacional de Estatística, é preciso mudar a prática anterior de depender do uso de recursos e do trabalho barato para fomentar a economia. O anterior refere-se aos últimos 30 anos, quando a usina asiática cresceu 10%, em média, ao ano. A China pode estar vivendo o pior de dois mundos: pressão de custos em áreas onde ainda há crescimento (como eletrônicos), porém um efeito mais amplo da queda nas exportações para os mercados de consumo ocidentais. Talvez não seja por acaso que, no início de 2012, os principais jornais norte-americanos deram enorme evidência às condições de trabalho em fábricas de iphones e ipads na China. O preço de imóveis e terras também subiu na China, depois de pelo menos duas décadas de ocupação do território com as fábricas que abastecem o mundo ocidental. Muitas empresas que transferiram operações de manufatura e montagem para a China estão voltando aos seus países de origem. A produtividade nos Estados Unidos continua muito maior que na China. O governo chinês investe nessa área também, robotizando e automatizando para tentar seguir o processo histórico de outras economias asiáticas que começaram como entrepostos (Japão, Coreia do Sul), cresceram com plataformas exportadoras, mas acabaram alcançando posições em áreas de inovação e tecnologia. Em 2012 celebramos o Ano do Dragão. O mundo torce para que a fera chinesa tenha asas para fazer um pouso suave, mas continuam grandes as chances do monstro acabar soprando chamas em que pode muito seriamente se queimar. Gilson Schwartz é professor de economia na USP e lidera o grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento (www.cidade.usp.br) 2012 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A

o país dos mandarins Peso geopolítico dos BRICS concentra-se na letra C N o final de março, os chefes de governo do Brasil, Rússia Índia, China e África do Sul realizaram, em Nova Déli (Índia), a 4ª reunião de cúpula dos BRICS. A pauta incluía a possível criação de um banco comum de desenvolvimento, a substituição gradual do dólar no comércio entre os cinco países, programas de segurança energética e a criação de uma coordenação das bolsas de valores dos países-membros. No campo propriamente político, a situação do Oriente Médio foi o tema de destaque, principalmente a crise na Síria e um eventual ataque ao Irã. Se, num passado ainda recente, os Estados Unidos e os países da Zona do Euro podiam ignorar solenemente a realização de encontros entre países periféricos, no mundo contemporâneo a realidade é bem distinta: os BRICS fazem a diferença, especialmente porque entre eles está a China, de cujo desempenho econômico dependem os rumos da economia mundial. O acrônimo BRIC foi criado pelo economista Jim O Neil e usado pela primeira vez em um estudo encomendado em 2001 pelo banco de investimentos Goldman Sachs. O Neil chamava a atenção para um dado novo da economia mundial: o surgimento de potências emergentes que ganhavam importância cada vez maior num mundo ainda polarizado pelos Estados Unidos e pela Zona do Euro. O S foi adicionado depois, para incluir a África do Sul. Os BRICS reúnem 45% da população mundial e um quarto do PIB planetário, além de uma parte importante do arsenal nuclear (veja o gráfico 1). Com base em projeções demográficas, modelos de acumulação de capital e crescimento de produtividade, o Goldman Sachs previu que, em menos de 40 anos, as economias dos BRICS seriam maiores do que o atual G-6 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Grã-Bretanha, França e Itália), e que, do atual G-6, apenas os Estados Unidos e o Japão estarão entre as seis maiores economias do mundo em 2050. Pela ordem, elas seriam: China, Estados Unidos, Índia, Japão, Brasil e Rússia. Mas os BRICS formam um conjunto muito heterogêneo. Hoje, o PIB chinês é da ordem de US$ 7 trilhões, quase três vezes o brasileiro, quatro vezes o russo ou o indiano e 16 vezes o da África do Sul. Apenas para efeito de comparação: o dos Estados Unidos é da ordem de US$ 15 trilhões, pouco menor que o da União Europeia (veja o gráfico 2). A catástrofe anunciada em 2008 aumentou a importância relativa dos BRICS: suas economias mantiveram taxas razoáveis de crescimento, ajudando a atenuar os efeitos da recessão nos países centrais do sistema capitalista, graças às suas importações e demandas de produtos, e aos seus investimentos, tanto os diretos quanto nos mercados de capitais das principais bolsas de valores. Não por acaso, o presidente Barack Obama pressiona a China para valorizar sua moeda nacional o yuan e promover o crescimento do mercado interno, em detrimento das exportações. Washington, em síntese, quer que os chineses consumam cada vez mais produtos A China emerge como potência global, capaz de exercer influência decisiva sobre as finanças internacionais. Retire o C dos BRICS e o poder do grupo se reduz a uma fração do poder chinês fabricados nos Estados Unidos. Analistas de todo o mundo concordam com a ideia de que a recuperação econômica mundial passa pela reativação da economia americana (o que significa criação de empregos e aumento da poupança doméstica) e crescimento do consumo interno chinês. Mas, ao contrário do que costuma parecer à primeira vista, isso já vem acontecendo desde o início do milênio. milhões US$ bilhões (ppc) US$ bilhões (ppc) Gráfico 1 3500 3000 Os BRICS e os polos nucleares do sistema mundial População 2500 2000 1500 1000 500 0 Estados Unidos União Europeia 20000 15000 10000 5000 0 Gráfico 2 8000 7000 6000 5000 4000 3000 2000 1000 0 PIB Estados Unidos União Europeia FONTE: CIA World Factbook, 2012 China Brasil Índia FONTE: CIA World Factbook, 2012 MAIO 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O Rússia BRICS BRICS BRICS, um conjunto heterogêneo PIB África do Sul É equivocada a percepção segundo a qual o crescimento econômico da China ocorre quase que unicamente como consequência das exportações de produtos baratos. Entre 2000 e 2010, a taxa de crescimento anual do mercado de consumo chinês foi de 8%, em termos reais: a maior em todo o mundo. A indústria automobilística, em especial, e o mercado imobiliário foram fundamentais para sustentar essa taxa de crescimento, pelo grande número de indústrias e de serviços mobilizados. O problema é que a crise global começou a produzir seus efeitos até mesmo na China, fazendo soar todos os sinais de alarme. O governo chinês anunciou, no início do ano, que o crescimento do PIB do país cairá dos atuais 10% para 7,5% ao ano. Os efeitos serão dramáticos para a economia mundial. Em outros termos, os BRICS poderiam funcionar bem se qualquer outra de suas economias apresentar sinais de desaquecimento. Mas se o C falhar, o bloco perde sua força e, com ela, a capacidade de negociar com as grandes potências. E nunca essa força foi tão necessária como agora. Uma das ameaças aos emergentes vem da emissão de moeda por parte dos Estados Unidos e, principalmente, da Zona do Euro. Nos últimos quatro meses, o Banco Central Europeu (BCE) e o Federal Reserve (banco central dos Estados Unidos) emitiram cerca de US$ 3 trilhões, que foram emprestados aos grandes bancos, como forma de injetar dinheiro nas economias, estimular o crédito e o consumo para gerar empregos e fazer a economia funcionar. Só que, com isso, desvalorizam o euro e o dólar, o que torna os produtos fabricados na Europa e nos Estados Unidos mais baratos. Parte significativa da cascata de dólares e euros flui para as economias emergentes, provocando a valorização de suas moedas e prejudicando a capacidade de exportação dos BRICS, que perdem competitividade no mercado mundial. É o tal do tsunami monetário a que Dilma Rousseff se referiu em seus recentes encontros com a chanceler alemã Angela Merkel e com Obama. O quadro que resulta dessa situação é curioso: enquanto países com as economias afogadas em dívidas imensas têm o poder de emitir moedas internacionalmente aceitas (o dólar e o euro), os BRICS, em situação econômica menos instável, se veem na condição de reféns do BCE e do Federal Reserve. A China, cujas reservas internacionais somam cerca de US$ 3 trilhões (um montante similar ao das emissões monetárias europeias e norte-americanas somadas) poderia, tecnicamente, bancar a criação de uma moeda que servisse para a troca comercial entre os BRICS. Isso, no entanto, equivaleria a quase uma declaração de guerra econômica aos americanos e europeus e à desconstrução do edifício das finanças internacionais. Com a sua economia dando sinais de desaquecimento, Pequim prefere a cautela.

aziz ab'sáber (1924-2012) Geomorfologia brasileira é obra de múltiplas mãos Aziz Ab Sáber, falecido em março, formulou a linha de interpretação da geomorfologia climática. A sua contribuição está entre as fontes inspiradoras da nova classificação do relevo do Brasil D Jurandyr Luciano Sanches Ross Especial para Mundo e longe e muito à frente, Aziz Ab Sáber foi o mais atuante, o mais produtivo, o mais polêmico e o mais crítico pesquisador da geomorfologia brasileira. Também foi o que por mais tempo permaneu em evidência, como especialista em geomorfologia e como cidadão político engajado na causa ambiental. Na sua trajetória profissional, Ab Sáber destacou-se como pesquisador em 1949, quando publicou, no primeiro número do Boletim Paulista de Geografia, artigo cuja ênfase estava na explicação da evolução morfogenética das depressões periféricas que circundam as bordas das grandes bacias sedimentares brasileiras. Essa linha de pesquisa desenvolveu-se ao longo das três décadas seguintes, aprofundando-se na direção da geomorfologia climática. Então, a base geológica passava a configurar uma mera ossatura sobre as qual as fases de climas áridos e semiáridos, alternadas por fases de climas quentes e úmidos, seriam responsáveis pela esculturação e rebaixamento do relevo brasileiro. Desde o início, e no mesmo boletim, surgiram outras interpretações, a partir do trabalho do pesquisador Fernando Flávio Marques de Almeida, que publicou um artigo sobre o relevo de cuestas da bacia sedimentar do Paraná, valorizando o papel da atividade tectônica jura-cretácea e dos arranjos estruturais das litologias no processo de geração das formas do relevo. Desde aquele momento, estavam estabelecidas as duas linhas diferenciadas de interpretação do relevo brasileiro: a morfoclimática, de Ab Sáber, e a morfoestrutural, de Almeida. Em trabalhos de maior detalhe, Ab Sáber apresentou sua tese de doutorado, em 1954, com o tema Geomorfologia do Sítio Urbano de São Paulo, quando São Paulo completava seus 400 anos. Este trabalho que até os dias atuais é importante referência, combina na interpretação morfogenética os processos morfoclimáticos e morfotectônicos do Terciário-Quaternário. Em 1956, Ab Sáber publicou artigo sobre a divisão do relevo paulista, onde consta um mapa das unidades do relevo do estado de São Paulo cuja interpretação enfatiza os processos morfoclimáticos terciários-quaternários atuantes sobre base geológica conhecida. Em contraponto a essa interpretação, Almeida publicou em 1964 um consistente trabalho sobre os fundamentos geológicos do relevo paulista, no qual apresentou um mapa com maior detalhamento das unidades do relevo do estado de São Paulo, que denominou de províncias geomorfológicas. O trabalho de Almeida era fortemente marcado pela interpretação de que as influências geológicas são determinantes no processo da geração das formas do relevo e que José Aparecido dos Santos/Pref. de Jundiaí Divisões do relevo brasileiro segundo Aroldo de Azevedo 0º PLANALTO DAS GUIANAS EQUADOR OCEANO PACÍFICO PLANÍCIE AMAZÔNICA Planaltos cristalinos P.S.A. CHAPADAS SEDIMENTARES P.S.A. Sul Amazônico P.S.G. Sul de Goiás P.N. Nordestino P.B. Baiano (Chap. Diamantina) P.S.M. Sul de Minas P.P. Pampa PANTANAL PLANALTO CENTRAL P.P. O C E A N O AT L Â N T I C O 0 600 km os eventos tectônicos são desencadeadores dos processos erosivos que esculpem os compartimentos individualizados. Mais tarde, em 1981, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) produziu o primeiro mapa do relevo do estado de São Paulo, incorporando na interpretação as informações de Ab Sáber e, principalmente, de Almeida, com aplicação da metodologia dos Sistemas de Terras dos australianos. Nessa linha evolutiva, em 1997, Ross & Moroz publicaram uma nova versão do Mapa Geomorfológico do Estado de São Paulo, em formato digital, construído a partir de imagens de radar produzidas pela NASA e de metodologia ancorada nos conceitos geomorfológicos dos alemães e russos. 50º 0 P.S.G. PLANALTO ARENITO BASALTICO PLANALTO MERIDIONAL P.S.M. P.B. SERRAS CRISTALINAS P.N. PLANALTO ATLÂNTICO PLANÍCIE COSTEIRA Trópico de Capricórnio FONTE: AZEVEDO, Aroldo de. O Planalto Brasileiro e o problema de classificação de suas formas de relevo, in Boletim da AGB, 1949 N No âmbito das divisões do relevo brasileiro, várias propostas foram publicadas desde o século XIX, tais como as de Aires de Casal (1817) e Orville Derby (1884). A classificação que teve maior penetração no ensino de Geografia foi a de Aroldo de Azevedo, que como professor do Departamento de Geografia da USP e autor de livros didáticos exerceu enorme influência na divulgação das informações geográficas do país. Baseando-se em classificação anterior de Delgado de Carvalho, de 1923, Azevedo formulou, em 1949, a classificação do relevo brasileiro em planaltos e planícies com designações geográficas (veja o mapa). Na rota de aperfeiçoar esta classificação, Ab Sáber propôs em 1958 uma redivisão desses planaltos, incluindo o Planalto Nordestino. Em 1962, Ab Sáber produziu de fato um mapa geomorfológico do Brasil em escala genérica, no qual apresenta sofisticada classificação dos planaltos, planícies e depressões periféricas que, à época, estavam parcialmente identificadas. A classificação foi publicada em uma coleção coordenada por Azevedo: Brasil a terra e o homem. É um vigoroso trabalho de muitos autores colaboradores, inclusive Almeida, para o capitulo que trata das bases geológicas do Brasil, e Ab Sáber, tratando do relevo brasileiro. Era o estado da arte do conhecimento geomorfológico da época, com validade até os dias atuais, embora com informações superadas graças aos avanços da produção do conhecimento e ao uso das tecnologias mais recentes. Os avanços se deram nos processos de mapeamento, nos instrumentos técnicos disponíveis e no aprimoramento teórico e metodológico. Nesta direção, elaborei em 1985-1986 um estudo de síntese do relevo brasileiro que culminou com uma nova proposta de classificação, apresentada no III Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada (Nova Friburgo, Rio de Janeiro, 1989). Nesta proposição, incorporaram-se parcialmente as contribuições de Ab Sáber e de Almeida, mas principalmente os produtos geomorfológicos do Projeto Radambrasil, sintetizados e repensados por nós sob a luz de abordagem teórica e metodológica de influência alemã e russa. A nova divisão do relevo brasileiro foi publicada no livro Geografia do Brasil e, mais tarde, em formato de mapa no livro Ecogeografia do Brasil. A proposição, elaborada com bases técnicas e científicas rigorosas e modernas, atingiu reconhecimento nacional. Não recebeu, entretanto, validação pelo emérito professor Ab Sáber. Segundo várias críticas proferidas em público, ele a considerava uma proposta insuficientemente discutida e pensada. Jurandyr Luciano Sanches Ross, professor titular no Departamento de Geografia da USP, é organizador de Geografia do Brasil (Edusp) e autor de Ecogeografia do Brasil (Oficina de Textos) 2012 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 10

Nelson Bacic Olic Da Redação de Mundo Com Aziz Ab Sáber, aprendi a gostar de Geografia Física H á pouco, em março, o Brasil perdeu um de seus grandes intelectuais. No editorial da edição de abril de Mundo, constatamos que o país fica mais pobre sem a presença do geógrafo, ambientalista e professor Aziz Nacib Ab Sáber. Meu primeiro contato com o professor Aziz aconteceu quando prestei vestibular, em 1966. Naquele ano, a USP fez um vestibular para vagas remanescentes, não preenchidas no primeiro vestibular. Os exames foram elaborados pelo próprio Departamento de Geografia, constando de duas provas escritas português e língua estrangeira e quatro provas orais, divididas em Geografia Geral, Geografia do Brasil, História do Brasil e História Geral. O procedimento das provas orais baseava-se num sorteio de temas. Num recipiente, papeizinhos numerados indicavam os temas sobre os quais incidiria a arguição dos candidatos por uma banca de professores. O professor Aziz, que até então eu não sabia quem era, fazia parte da banca de Geografia do Brasil. Foi para ele que respondi questões sobre Climatologia. Tive meu segundo contato com o mestre quando foram divulgados os resultados dos exames. Eu estava ansioso para saber o resultado e um pouco atrapalhado para achar meu nome na lista. Foi quando ele chegou e perguntou: Qual o seu nome, rapaz? Respondi e, rapidamente, ele encontrou meu nome na lista. Vá comemorar com seus pais; você entrou na USP, disse. Em 1967, fui aluno do professor Aziz no curso de Geomorfologia. Embora gostasse mais da Geografia Humana, logo me entusiasmei com as aulas que ele ministrava. Depois de formado iniciei a minha carreira no magistério e passei a ter contato com aquela que considero a maior entre as inúmeras contribuições do professor Aziz para o ensino de Geografia: a forma integrada, sintética, de interpretar o espaço físico através do célebre mapa dos Domínios Morfoclimáticos Brasileiros, Editora Beca Reprodução FONTE: Cópia do original da revista Orientação, do Instituto de Geografia da USP, pág. 46, n. 3, março de 1967 ainda hoje presença quase obrigatória nos livros didáticos de Geografia (veja o mapa). O fragmento de texto seguinte, de autoria de Aziz, foi retirado da revista Orientação, número 3, de 1967: As províncias ou domínios morfoclimáticos do Brasil, a despeito mesmo da aparente homogeneidade paisagística do território nacional, ascendem provavelmente a um número igual ou pouco superior a seis combinações regionais, acrescidas de uma infinidade de feições mistas, peculiares: as chamada faixas ou áreas de transição. Tais domínios ou conjuntos regionais de paisagens morfoclimáticas, ora de tipo zonal, ora de tipo de tipo azonal, não dependem somente da zonação climática atual, mas também dos efeitos acumulados de uma série de flutuações climáticas pretéridas, ainda mal conhecidas, que atuaram no território brasileiro, sobretudo a partir dos fins do Terciário. A imaginação fulgurante de Aziz estava firmemente ancorada na ciência e na pesquisa de campo Reprodução A passagem, genial, conduz a nossa imaginação aos climas do passado geológico. Aprendemos, ao olhar para o mapa sintético, tão simples, dos domínios morfoclimáticos que as paisagens do presente são frutos do entrelaçamento de processos geológicos, morfológicos e climáticos que se desenvolvem no tempo profundo. Entendemos, de uma vez, que a Geografia Física não é uma maratona de memorização, mas uma aventura de investigação e descoberta. Em 1991, ao publicar o meu segundo livro paradidático, Oriente Médio uma região de conflitos, fiz questão em dedicá-lo a quatro professores que influenciaram sobremaneira minha vida pessoal e profissional. Um deles foi o professor Aziz. Outro, o professor Pasquale Petrone, contemporâneo de Aziz, também do Departamento de Geografia da USP, um mestre nas múltiplas imbricações entre a Geografia e Reprodução a História e uma fonte de inspiração para diversas gerações de estudantes, falecido no final do ano passado. Há dois anos, fui convidado para proferir uma palestra sobre a Geografia do Mundo Árabe no Instituto de Cultura Árabe, do qual o professor Aziz era presidente de honra. Foi ele quem me precedeu, antes de eu ser apresentado aos participantes. Encontrei-o novamente, pela última vez, no ano passado, tentando obter uma entrevista para Mundo. A imaginação fulgurante de Aziz estava firmemente ancorada na ciência e na pesquisa de campo. Uma de suas mais notáveis contribuições acadêmicas foi a teoria dos refúgios, desenvolvida juntamente com o biólogo Paulo Vanzolini. A teoria diz que as glaciações dos últimos 100 mil anos provocaram fortes e periódicos impactos sobre as formações florestais tropicais. As mudanças climáticas causadas pelas glaciações resultaram em expansões e contrações cíclicas das florestas. Nos períodos mais frios (e, portanto, secos), as florestas teriam se fragmentado em pequenos núcleos mais ou menos isolados, em refúgios de umidade cercados por vastas áreas de cerrados e caatingas. Nos períodos de longa contração, nesses refúgios ilhados, ocorreram processos de diferenciação genética de espécies e subespécies. Tais processos seriam uma das causas principais da elevada biodiversidade atual dos domínios da Amazônia e da Mata Atlântica. Os padrões de distribuição de algumas espécies de animais e plantas funcionam como pistas para a localização geográfica provável de áreas de refúgios, quase sempre marcadas por altos níveis de endemismo. A teoria pode estar certa ou errada e não são poucos os que a contestam. Mas sua força é inegável: ela aponta as trilhas para a continuidade das pesquisas sobre o passado e o leque de cenários futuros da maior floresta equatorial do planeta. 11 MAIO 2012 PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

N Jogos Olímpicos concluem a reinvenção da cidade mundial o réveillon do milênio, 31 de dezembro de 1999, o primeiro-ministro Tony Blair inaugurou a London Eye, uma gigantesca roda-gigante com altura de 135 metros e diâmetro de 120 metros, situada nos Jubilee Gardens, às margens do rio Tâmisa. De lá para cá, o novo ícone da capital britânica figura como ponto focal das celebrações de ano-novo. Da própria roda-gigante, são lançados os fogos de artifício que assinalam a passagem do ano. London Eye foi inaugurada como a maior roda-gigante do mundo, uma condição que perdeu para a Star of Nanchang, na China, em 2006, ela mesma ultrapassada pela Singapore Flyer, dois anos depois. O local da roda-gigante londrina abrigou a torre Skylon e o Dome of Discovery, edificações icônicas temporárias construídas em 1951 para o Festival da Grã-Bretanha, com a finalidade explícita de popularizar a arquitetura moderna e a pretensão implícita de elevar a auto estima britânica, abalada pelos sofrimentos da guerra mundial e pelas crises que anunciavam o desmantelamento do Império Britânico. A roda-gigante é, como seus dois predecessores, o símbolo de um programa de reinvenção da cidade e, com ela, da Grã-Bretanha. Os Atos de Navegação, assinados por Oliver Cromwell em 1651, assinalam a arrancada comercial inglesa, um processo de acumulação de capital que, no final do século seguinte, propiciaria a deflagração da Revolução Industrial e a projeção imperial britânica. Londres emergiu como metrópole e como cidade com influência mundial entre os séculos XVIII e XIX. Paris foi a maior cidade europeia do século XVII, mas Londres a superou no século seguinte. Em 1750, a capital inglesa aproximava-se de um milhão de habitantes, marca ultrapassada por volta de 1834, quando um grande incêndio destruiu quase todo o Palácio de Westminster, sede do Parlamento, também às margens do Tâmisa. A reconstrução do edifício começou em 1840 e se concluiu apenas trinta anos depois, no zênite do poder mundial britânico. Naquela época, Westminster figurava como ícone de Londres. A transferência desse papel para uma rodagigante tem vastos significados políticos e culturais. A Londres do grande incêndio e da reconstrução do edifício do Parlamento era o núcleo do império onde o sol nunca se esconde, espalhado pelos quatro cantos da Terra e guarnecido pela hegemonia naval da marinha britânica. O amontoado das casas, os estaleiros navais de ambos os lados, os inumeráveis navios alinhados ao longo das duas margens, estreitamente unidos uns aos outros, e que, no meio do rio, deixam apenas um estreito canal onde centenas de barcos a vapor se cruzam a toda velocidade, tudo isto é tão grandioso (...) que se fica estupefato com a grandeza da Inglaterra, escreveu Friedrich Engels, o par intelectual de Karl Marx, numa obra publicada em 1845, três anos antes do Manifesto Comunista. A imponência e o brilho da Grã-Bretanha logo se refletiriam no novo Palácio de Westminster, que simbolizava também o sistema de governo parlamentar ou seja, a limitação do poder da monarquia e a soberania do povo. Contudo, uma outra Laura M Bailey Andrão Zehetbauer londres O antigo símbolo da cidade-sede do Império Britânico era o Palácio de Westminster. O símbolo da capital das finanças globais é o London Eye, uma roda-gigante descomunal A bordo do London Eye, turistas observam Londres, com o rio Tâmisa, seus palácios e monumentos históricos, como a torre erigida em homenagem ao almirante Nelson, na praça Trafalgar, centro da capital cidade, formada por migrantes que buscavam empregos nas docas, no comércio, na construção civil e na indústria têxtil e de confecções, atravessada pela faca da miséria, ocultava-se nos meandros da metrópole. Engels viveu em Londres e descreveu os bairros pobres da cidade naquela mesma obra. Sobre Rockery St. Giles, encravado atrás das avenidas iluminadas do centro, ele anotou: não há um único vidro de janela intacto, os muros são leprosos, os batentes das portas e janelas estão quebrados, e as portas, quando existem, são feitas de pranchas pregadas. E completou: Aí moram os mais pobres dentre os pobres, os trabalhadores mal pagos misturados aos ladrões, aos escroques e às vítimas da prostituição. A metrópole do século XIX desapareceu lentamente, até evaporar no pós-guerra. O ápice demográfico, de 8,6 milhões de habitantes, foi atingido pouco antes, em 1939. Mas a cidade já começava a adquirir as feições de um extenso corredor urbano de baixas densidades pois, sob o impulso de uma rede de trens suburbanos, a classe média se deslocava para as franjas da aglomeração em busca de um estilo de vida rural. A Londres de hoje tem cerca de 7,6 milhões de habitantes. O Cinturão Verde Metropolitano a separa de diversas cidades que funcionam como satélites da metrópole. Todo o conjunto urbano, com quase 14 milhões de habitantes, forma o núcleo econômico da Grã-Bretanha. Londres recuperou-se de seu declínio de pós-guerra em virtude do crescimento da importância das finanças na economia global. A City of London, distrito financeiro da cidade, ou Square Mile, pois ocupa área de apenas pouco mais de uma milha quadrada (1,12 milha quadrada, ou 2,9 km 2 ), é o maior centro financeiro do mundo, mais importante que Wall Street, em Nova York. Diretamente, ela responde por cerca de 2,5% do PIB britânico. Indiretamente, gera o dinamismo responsável pela atração das sedes europeias da maioria das empresas transnacionais e pela multiplicação das empresas de consultoria financeira, contábil e jurídica de influência mundial. Uma cidade global não é definida pela demografia, mas pelas funções que cumpre no sistema mundial. As cidades globais são centros de tomada de decisões que afetam profundamente a vida das nações do mundo inteiro: elas são os polos de redes de alcance planetário. Londres e Nova York figuram como as mais destacadas cidades globais, pois sediam os dois principais centros financeiros do mundo. A Bolsa de Valores de Nova York é a maior do planeta e Londres tem os maiores mercados de câmbio e de empréstimos bancários internacionais. Quando o euro foi lançado, muitos temeram a decadência da City. Aconteceu, porém o contrário: o centro financeiro londrino reforçou sua posição de praça mundial de intercâmbios de moedas e de negociação de empréstimos bancários. A crise internacional aberta em 2008 atingiu a cidade com a força de uma bomba nuclear, mas a importância relativa da City não parece ter sido abalada. Em nome dos interesses da City, o governo britânico recusou assinar o novo Pacto Fiscal da União Europeia. No passado, quando o Parlamento a simbolizava, Londres era a cidade do Império, da navegação e do comércio. Hoje, o playground das finanças globais encontra seu ícone numa roda-gigante e celebra a si mesmo nos Jogos Olímpicos. Faz sentido. 2012 MAIO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 12