Delineamento para a construção de um projeto pedagógico do curso de Medicina: relato de experiência



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Transcrição:

Delineamento para a construção de um projeto pedagógico do curso de Medicina: relato de experiência Guidelines for elaborating a pedagogic project for the Medical School: a report of experience 84 Relato de Experiência Report of Experience Ariadne da Silva Fonseca* Cilene Costardi Ide** Fábio Luís Peterlini*** Resumo Este estudo tem como objetivo relatar a experiência da construção de um projeto pedagógico para o ensino em medicina. Trata-se de um relato de experiência desenvolvido por um grupo de profissionais no direcionamento dos princípios para a construção de um projeto pedagógico. A proposta em questão tem como princípio norteador a busca de uma aproximação de conteúdos e práticas que, superando dicotomias que fragmentam tanto o domínio teórico, quanto a intervenção assistencial, sustentem uma atuação médica qualificada e eficiente em diferentes contextos de ação. Palavras-chave: Educação Médica. Medicina. Ensino Superior. Abstract This study aims at describing the construction of an educational project for teaching in a medical school. This is a report of an experience developed by a group of professionals for elaborating guiding principles for the construction of an educational project. The proposal has as a guiding principle the search for an approach to content and practices that overcomes dichotomies that fragment both the theoretical domain and intervention assistance, that supports a qualified medical performance and efficient action in different contexts. Keywords: Education, Medical. Medicine. Education, Higher. * Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo. Mestre em Enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo. Especialista em Enfermagem Pediátrica e Pediatria Social pela Universidade de São Paulo. Diretora de educação da Associação Brasileira de Enfermagem ABEn-SP. E-mail: ariadne@saocamilo.com ** Enfermeira. Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da USP. Especialista em Medicina Comportamental pela UNIFESP. Professora Titular da Universidade de São Paulo. *** Médico Cirurgião Pediátrico. Doutor em Cirurgia Pediátrica pela UNIFESP-EPM. Mestre em Cirurgia Pediátrica pela UNIFESP-EPM. MBA em Gestão em Saúde IBMEC-SP/INSPER. Diretor de Práticas Assistenciais da Rede de Hospitais São Camilo. Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

INTRODUÇÃO O estudo em questão foi elaborado tendo por base um caráter inovador, apto a contribuir com dinâmicas de formação em transformação, capaz de formar médicos que privilegiem tanto a saúde, a qualidade de vida, o bem-estar de pessoas, grupos e comunidades reconhecidas em sua integralidade, como também uma intervenção sustentada em evidências no âmbito da prática curativa. Avançando para além do vigente, o delineamento deste estudo tem por meta a construção de saberes e de práticas assistenciais sintonizadas com as necessidades sociais, considerando a hierarquização das ações de saúde, organizadas para dar vida a uma dinâmica de profissionalização diferenciada. Sua primeira orientação diferencial diz respeito à atribuição de importância equivalente à articulação biológico-social, enfatizando, equitativamente, tanto conteúdos de aprendizagem que privilegiem as ações preventivas e de promoção da saúde quanto as abordagens no âmbito curativo, orientada ao indivíduo. Um atributo diferencial da proposta relaciona-se à organização de conteúdos de caráter multidisciplinar, somativo, com integração recíproca de conceitos e práticas que privilegiam a definição, o ajuste e a experimentação de projetos com base nos objetivos e princípios curriculares. Sua especificidade na dimensão filosófica relaciona-se ao respeito à pessoa, reconhecida na sua dimensão intra e interpessoal, apta a construir experiências significativas, esquemas de pensamento e de ação próprios, capazes de gerar comportamentos que funcionariam como precursores de expressões de saúde doença. Nesse sentido, uma perspectiva construtivista deve permear toda a proposição curricular, também colocando o aluno e sua experiência no centro de um processo de formação em mobilização. Vale esclarecer que, desde o início, a participação discente em projetos firma mais um diferencial da proposta, ou seja, a utilização e a participação do estudante em pesquisas enquanto elementos imprescindíveis ao desenvolvimento do conhecimento para uma atuação sustentada em evidências capazes, inclusive, de transformar a própria ação. Como elemento constitutivo, a abordagem ético-legal deve permear a proposta, tecendo as bases de uma postura reflexiva e ética, potencializada pela análise e participação nos problemas e nas questões inerentes à prática assistencial complexa nos diferentes âmbitos de atuação, sempre plenos de dilemas a serem enfrentados no sentido do respeito à cidadania e à humanização do atendimento. O objetivo do presente estudo foi relatar a experiência da construção de um projeto pedagógico para o ensino em medicina. MÉTODO Trata-se de um relato de experiência realizado por um grupo de profissionais de saúde na elaboração de um projeto pedagógico para o curso de medicina. DELINEAMENTO DO PROJETO PEDAGÓGICO O processo de integração recíproca de conceitos e práticas foi projetado no sentido de compor esquemas teórico-operacionais, tendo por base a articulação biológico-social a partir da qual ideias, teorias, explicações, projetos de ação e de investigação, códigos e premissas ético-legais são gradualmente acrescidos no sentido de sustentar e desenvolver competências para a prática assistencial. Assim, uma concepção ampliada, articulada e sustentada de práticas orientadas para os diferentes níveis de atuação em saúde, aliada a uma concepção sensível e comprometida de atitude profissional constituem os eixos integradores do projeto, configurando uma abordagem apta a garantir: uma concepção de desempenho profissional que, sintonizada com as mobilizações e diretrizes que norteiam os mundos da formação e do trabalho em saúde, privilegia sínteses tais como: preventivo-curativo, biológico-social, individual-coletivo, entre outras dicotomias a serem reconsideradas no sentido da integralidade; uma concepção de conhecimento que tem por base campos temáticos aptos a sustentarem uma representação de ser multidimensional, ao mes- 85

86 mo tempo biopsicossocial; o reconhecimento dos grupos enquanto organizações interpessoais específicas, com ênfase na abordagem à família como núcleo constitutivo de relações assistenciais a serem desenvolvidas no sentido de superar tanto a abordagem hospitalocêntrica quanto as relações interpessoais vigentes, centradas em relações de poder e de saber que desconsideram a realidade de cotidianos de vida até então pouco acessados pelos profissionais de saúde; a valorização da competência relacional enquanto elemento imprescindível ao desenvolvimento do vínculo e de relações interpessoais saudáveis. Como síntese, este projeto fundamenta sua especificidade em investimentos complementares e inovadores relativos à formação de um médico efetivamente apto a atuar: 1) no âmbito da saúde e da doença; 2) na esfera individual e coletiva, reconhecendo no grupo e na comunidade cenários de práticas específicas; 3) em equipe, articulando competências para uma abordagem integralizadora em saúde; 4) aliando competência clínica e relacional, ambas reconhecidas como necessárias a uma atuação eficiente; e 5) em consonância com os preceitos ético-legais que norteiam a inserção médica no contexto assistencial. A proposta pedagógica é baseada nas melhores práticas do mundo, partindo de uma organização curricular interdisciplinar, inovadora e eficiente, assegurando o desenvolvimento das competências específicas do profissional. O desenvolvimento dos atributos ou capacidades necessárias para a realização dos desempenhos relativos à prática médica fundamenta-se em experiências concretas e reais vivenciadas pelos estudantes nos serviços de saúde junto à comunidade e na análise de situações de saúde- -doença que simulam problemas a serem enfrentados pelos futuros profissionais. Dessa forma, o projeto pedagógico da Faculdade de Medicina busca a integração da teoria / prática, visando ao desenvolvimento de diferentes competências. Entre os diferentes conceitos, podemos considerar como competência a capacidade de mobilizar diferentes recursos para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações da prática profissional 1. Os recursos são as capacidades cognitivas, psicomotoras e afetivas que, combinadas, conformam distintas maneiras de realizar, com sucesso, tarefas essenciais que caracterizam uma determinada prática profissional. A forma de pensar a formação e a futura atuação do estudante de medicina, considerando os pressupostos que norteiam a proposta, privilegia competências profissionais construídas tendo por base uma prática reflexiva e engajada, pautada pelo envolvimento crítico e questionamento ético. Assim, a competência clínica requerida pelo curso tem por base investimentos, tanto na construção de problemas relativos às diferentes experiências teórico-práticas, como também na sua resolução e proposição de alternativas, pautadas pela reflexão, observação, consistência teórica, delineamento de hipóteses considerando o contexto e os sujeitos, experimentação virtual e real, elaboração de novos esquemas de pensamento e ação para e na situação estudada. Na perspectiva clínica, a teoria é desenvolvida a partir de ação em função de uma espiral: uma primeira construção conceitual fornece uma grade de leitura do que ocorre ou ocorreu ao mesmo tempo em que a realidade enriquece e diferencia o modelo. Um procedimento clínico não substitui saberes eruditos por intuições inconsistentes e não dispensa a pesquisa fundamental e aplicada. Trata-se de um procedimento de formação, de apropriação ativa dos saberes confrontados com a realidade (p. 73) 2. Essa formação clínica pretendida pressupõe tanto a construção de conceitos, criando ou transformando sistemas teóricos, vivenciados em situações de aprendizagem priorizadas, como também a integração e mobilização de recursos, ampliando competências 3. Considera-se, portanto, o procedimento clínico como um treinamento intensivo em prática reflexiva em diversos níveis, aliando formação teórica e experiência prática a partir de estratégias que agregem 4 : ensinos planejados conforme estrutura curricular, pautados por conteúdos permeáveis à reflexão, ao questionamento; uma abordagem pautada por situações-problema cuja resolução supere intervenções baseadas exclusivamente em saberes já definidos; trabalhos em

grupos voltados à análise das práticas, potencializando convívio e postura reflexiva na análise das experiências de aprendizagem; ajuste de projetos com base na recomposição das bases teórico- -práticas decorrentes da produção do conhecimento. Isso significa que os docentes devem aliar formação teórica e experiência prática na criação de problemas e situações que privilegiem ações preventivas, de promoção e recuperação de saúde; sensibilização para uma prática da alteridade, abordando os problemas relacionais, a intersubjetividade e a subjetividade, induzindo à elaboração de mecanismos próprios à conduta clínica; relatos de experiência por meio dos quais o estudante experimente as situações de aprendizagem e depois fale delas, compartilhe-as, observe-as em seguida, para que ele compreenda sua incompreensão, coloque suas questões, não tema suas incompetências, aceite seus limites de hoje para construir o saber de amanhã. Em síntese, estratégias de aprendizagem que promovam esquemas evolutivos de complexidade, em suas múltiplas expressões e cenários, mesclando o cognitivo, o afetivo, o biológico, o psicossocial, os fatos, as normas, as práticas, as representações, as consequências, explicitando a complexidade e a multidimensionalidade do real. Para dar vida a essa concepção, a estrutura curricular proposta organiza conteúdos e práticas em áreas temáticas com interações interdisciplinares necessárias à sua fundamentação. A interdisciplinaridade é concretizada pelas unidades temáticas que compõem a grade curricular do curso; pelas atividades realizadas junto à comunidade, sob a ótica dos profissionais que integram o Curso; por meio de discussões e apresentações de estudos de caso; nos estágios curriculares; nos seminários integrativos; no desenvolvimento da pesquisa realizada nas diferentes áreas. A tecnologia educacional, que inclui estudos em pequenos grupos, tutorias, simulação, realidade virtual, atividades práticas desde o primeiro semestre e internato sob supervisão, está presente em toda a estrutura curricular. Todo o processo de integração foi projetado no sentido de compor situações de aprendizagem de complexidade crescente, tendo a relação terapêutica como referência a partir da qual ideias, teorias, explicações, projetos de ação e de intervenção, códigos e premissas legais serão gradual e sistematicamente inseridos no sentido de sustentar e desenvolver competências para uma clínica integralizadora. A estrutura curricular preserva sua articulação e confere flexibilidade, o que permite ao estudante desenvolver e trabalhar vocações, interesses e potenciais individuais específicos. A organização curricular é fruto da necessidade de melhoria da formação dos profissionais médicos e da intenção de contribuir para o processo de aprimoramento do cuidado à saúde das pessoas e comunidades. As concepções filosóficas, ideológicas e pedagógicas que orientam o desenvolvimento curricular estão baseadas no esforço de aproximar o processo ensino-aprendizagem do mundo do trabalho e de garantir uma postura ética, ativa, crítica e reflexiva dos novos profissionais, além de desenvolver o trabalho em equipe de forma interdisciplinar. O curso de medicina está estruturado considerando uma versão ampliada de promoção, prevenção e intervenção na saúde como elemento síntese das ações assistenciais e de gestão. Nesse sentido, o objetivo relaciona-se à valorização da vida, da consciência para promover a saúde e o bem-estar possível, considerando os distintos contextos de vida. Uma capacitação compatível com essa concepção formará profissionais sensibilizados e instrumentalizados para ensinar pessoas, grupos e comunidades a cuidarem melhor de si mesmos, colaborando no processo de mobilização de comportamentos, visando a respostas funcionais, ou seja, a melhor saúde possível à população. Diferentes operações vêm sendo desenvolvidas, tendo por finalidade o engajamento acadêmico e assistencial no processo de mudança, incluindo: envolvimento discente no processo ensino-aprendizagem; inserção de novos conteúdos e práticas relativas à saúde e bem-estar; e ampliação das parcerias, expandindo as atividades práticas para além da sala de aula, unidades básicas de saúde e hospitais. O exercício da medicina requer conhecimento, habilidade e atitude, que devem ser desenvolvidos durante os seis anos do curso e serem 87

88 aperfeiçoados em cursos de pós-graduação. As habilidades compreendem não só a destreza e a comunicação, mas também a capacidade de raciocinar criticamente, buscar e selecionar informações, e também a habilidade para desenvolver um método próprio que possibilite o processo ensino-aprendizagem. As atitudes compreendem a postura e os valores que os profissionais de saúde assumem no contato com os clientes, famílias, comunidade e outros profissionais. Tendo, agora, como foco o eixo Cenário de Prática, é possível caracterizar os Cursos de Medicina como uma construção centrada no processo ensino-aprendizagem focada na prática desde o primeiro semestre do curso. Para isso, conta-se com os laboratórios: Morfofuncionais, Biomédicos (bioquímica, imunologia, microbiologia, parasitologia, biologia), que estão equipados com os mais modernos materiais nacionais e importados, como modelos anatômicos, softwares e microscópios, entre outros; e os Laboratórios de Simulação, onde, com base em situações próximas ao real, os alunos desenvolvem conhecimentos, habilidades e atitudes, de forma quantitativa e qualitativa. Esses laboratórios promovem cenários extremamente realistas, utilizando softwares, bonecos e demais materiais necessários para atender às necessidades educacionais dos alunos e do trabalho em equipe multidisciplinar, tais como atendimento crítico, emergência e centro cirúrgico, entre outros. Há, também, laboratórios destinados à realização de práticas, possibilitando a realização REFERÊNCIAS de ações entre aluno-aluno, aluno-professor, com interação de todo o grupo. Esse espaço foi elaborado para que os alunos tenham a possibilidade de treinar até adquirir segurança para atuar junto ao paciente. Gradativamente, o processo ensino-aprendizagem vem evoluindo no sentido de ampliar referenciais teóricos com ênfase na promoção à Saúde e de desenvolver situações de aprendizagem que articulam prática-teoria-prática, tendo por base uma postura reflexiva e propositiva acerca de questões assistenciais e de gestão vivenciadas em diferentes contextos. Após o treinamento nos laboratórios, os alunos vão aplicar esse aprendizado junto ao cliente, família e comunidade considerando as fases do ciclo vital (promoção, preveção, tratamento, reabilitação), a gestão do trabalho e a atitude profissional. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente Projeto Pedagógico apresentou e comentou as informações que explicitam o âmbito de atuação do curso, sua conformação e detalhamento, no nível de seus atores, insumos e recursos organizados para a consecução de seus propósitos. Sua formulação é oriunda das negociações estabelecidas entre os corpos docente, discente e administrativo da Faculdade, e seu formato final foi submetido à apreciação dos envolvidos e aprovação dos órgãos competentes. 1. Hernández F. Como os docentes aprendem. Pátio; 1998. 2. Perrenoud P. Avaliação: a excelência à regulação das aprendizagens. Porto Alegre: Artes Médicas; 1999. 3. Perrenoud P. Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artes Médicas; 2000. 4. Perrenoud P. A prática reflexiva no ofíciodo professor: profissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed Editora; 2002. Recebido em: 27 de fevereiro de 2013. Aprovado em: 14 de março de 2013.