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Transcrição:

AS CINCO FASES DA MORTE DE UM PALHAÇO O pancake completou a metade do rosto. O ator costumava maquiar meio rosto antes de finalizar a maquiagem. Era como ver surgindo aos poucos um novo ser, cujo semblante pertencia ao velho Bip. Mal deu a última pincelada e o reflexo pareceu reclamar da demora: - Por que demora tanto? - É difícil para mim, sabia? Quando você nasce, eu morro. O reflexo discordou: - Você não morre. Morrer é diferente disto. - Passo pelas cinco fases da morte quando você surge. - Em qual dela está? - Na barganha, não percebe? - Em que momento passou pelas duas primeiras? - A negação acontece quando saio de casa. Bate uma vontade louca de não vir. - Mas você sempre vem. - Responsabilidade... O velho ator rememorou rapidamente as horas anteriores. A hesitação da roupa que vestiria. Com qual meia? Qual sapato? Da gravata não abria mão, mas qual delas? Listrada ou lisa? Cor forte ou tons de cinza? No íntimo, sabia que todas essas dúvidas refletiam as angústias interiores. Nenhuma novidade naqueles cinquenta anos de carreira. De repente, com uma raiva surda de si mesmo, colocava qualquer coisa e saía abruptamente, batendo a porta.

Sempre atravessava a porta de casa pisando forte, mal humorado, para o teatro. Engraçado perceber que em todos os outros momentos era visto sempre sorridente. O azedume só passava quando iniciava a maquiagem. No camarim tirava mecanicamente as roupas e, de cuecas, iniciava a maquiagem. Só aí a raiva passava. O reflexo no espelho parecia pedir uma lágrima negra abaixo do olho: - Você está triste? Indagou. - Me deprimiu saber que você se sente morrendo quando eu surjo. Não soube o que dizer. - Desculpe. A imagem no espelho deu impressão de querer confortá-lo: - Pense nas coisas boas que vêm da minha presença: os sorrisos, as gargalhadas, os elogios, as críticas dos jornais e por que não? o dinheiro. Fazia sentido: - É... o dinheiro é bom. - Eu é que deveria ficar deprimido. - Por quê? - Porque eu trabalho e quem ganha os louros é você. Já lhe ocorreu que eu nunca entrei em um restaurante? Nunca segurei a mão de uma mulher, exceto durante o espetáculo. Era verdade e o ator sabia. Nunca entrara em um restaurante com seu personagem. O palhaço que levava alegria a multidões jamais aproveitara um segundo sequer da própria notoriedade. Decidiu ser cordial:

- Depois da apresentação, em vez de tirar a maquiagem, você poderia atravessar a rua e ir para o restaurante em frente. Tomar um vinho, comer alguma coisa... A ideia pareceu agradar: - E o que eu comeria? - Sugiro uma boa picanha, acompanhada de fritas. - E uma salada? - Depois de cinquenta anos, vai finalmente fazer sua primeira refeição e você quer uma salada?! - Por que não? Eu queria comer rúcula! O velho ator sorriu: - Não combina com vinho. Ao menos a picanha combinava. - Está bem: um bife com fritas e salada de rúcula. Agora o vinho combina? - Combina. O personagem parecia uma criança em uma loja de doces. Lembrava um pouco seu filho caçula. - Um vinho francês? Indagou. - Depende. Que ficar bêbado? - Não. - Por que não? Vai ser sua primeira experiência, deveria extrapolar. O reflexo pareceu saborear a ideia. De repente, com um safanão de cabeça decidiu: - Melhor não. Você odiaria a ressaca no dia seguinte. - Então, que tal um vinho português? Um porto. Sugiro o Ferreirinha. - Anotado. - Mas não tome uma garrafa. Advertiu.

- Por quê? - Você disse que não queria ficar bêbado. - Acho que vou beber um italiano. Como um estalar de dedos, a dúvida sobressaltou o ator: - Por que rúcula? Já comeu antes? - Uma vez. Em cena. - Não lembro... Realmente não lembrava. Quando foi que houve rúcula em cena? - Gostou? - Da rúcula? Tem tanto tempo que não lembro o gosto. Além disso, foi a única peça em que beijei alguém. - Que peça? - Romeu e Julieta. Eu comia rúcula e beijava a mocinha. Era mesmo! Romeu e Julieta foi uma das poucas peças que encenara com falas. Normalmente o palhaço comunicava-se exclusivamente por mímica. - Encenamos centenas de vezes. Não foi apenas uma vez que você comeu rúcula e beijou alguém. - Esta é a diferença entre nós. Para mim, todas as vezes foram a primeira. A metade do rosto não maquiada pareceu ainda mais envelhecida no espelho. Sentiu necessidade de desenhar uma lágrima naquela parte limpa, logo abaixo do olho. O seu eu que morria também sentia inveja do personagem. Jamais experimentara rúcula ou beijara a mocinha em cena. Como a adivinhar seus pensamentos, o reflexo ponderou: - Não! Você a beijou fora do palco. Levou-a para jantar, foram ao cinema e casaram.

- Não era a mocinha. Era a atriz e ela jamais me amou como Julieta amou você. Batidas secas na porta interromperam seus pensamentos. A voz grave do outro lado anunciou cinco minutos para entrar em cena. - Acho melhor você terminar a maquiagem. - Também acho. Não seria bom entrarmos os dois em cena. Terminou a maquiagem rapidamente. - A gente podia experimentar isso um dia. Uma peça em que pudéssemos ser nós dois no palco. - Gostei. A estória poderia ser um jardineiro tratando do jardim e rememorando seu passado. - Passando a limpo questões mal resolvidas... - Como que podando ervas daninhas... Novas batidas na porta: - Marcel, um minuto. Marcel Marceau terminou de cobrir o último ponto do rosto ainda sem maquiagem e Bip, o palhaço, seu mais famoso personagem, ergueu-se e terminou de se vestir. Abriu a porta do camarim e a atravessou com vontade, como um bebê chegando ao mundo.