Fratura de fêmur em criança Gesso de imediato 90/90* ALEJANDRO ENZO CASSONE 1, JAIR ORTIZ 2 RESUMO Os autores realizaram um estudo prospectivo, avaliando 38 pacientes com fraturas diafisárias do fêmur, com idade até dez anos, tratados com aparelho gessado de imediato, na posição 90/90. No protocolo, foram aceitos desvios angulares de até 15 no plano frontal e 20 no plano sagital, sem desvios rotacionais, e encurtamentos de até 2cm, que estavam praticamente corrigidos após 12 meses do trauma. As complicações foram desprezíveis, tendo sido necessária remanipulação em dois casos, sem nenhuma seqüela ortopédica importante. A média de internação foi de quatro dias, com seis casos tratados na urgência sem anestesia e alta após curto período de observação; a do tempo de consolidação foi de 45 dias. O baixo custo do método proposto e os benefícios sociais do aparelho gessado na posição 90/90, comparado com os métodos tradicionais, são discutidos. SUMMARY Child femur fracture immediate cast 90/90 The authors made a prospective study of 38 patients below 10 years of age with diaphyseal fractures of the femur who were treated with a 90/90 degree spica cast applied as soon as possible after the fracture. The protocol accepted angular deviations of as much as 15 in the frontal plane and 20 in the sagittal plane, without rotational deviations, and with shortening up to 2 cm, which were almost completely corrected by the 12th follow-up month. All complications were minor, with 2 remanipulations and no major orthopedic sequel. Mean hospitalization time was 4 days, six cases being treated * Trab. realiz. nos Serv. de Ortop. e Traumatol. do Inst. Affonso Ferreira, Centro Médico de Campinas e Pontif. Univ. Catól. de Campinas. 1. Residente R3. 2. Prof. Assist. dos.serviços. 422 in the emergency ward immediately post-fracture and without anesthesia and discharged after a short observation period. Mean time of fracture healing was 45 days. The authors discuss and compare the low cost of treatment and the social benefits of the 90/90 position in the spica cast to the traditional treatment. INTRODUÇÃO No século X1X, as crianças eram consideradas diferentes dos adultos com relação ao tratamento das fraturas diafisárias do fêmur (17,21).Inicialmente, preconizavase o repouso no leito até a consolidação (18,21). Buck, em 1861, preconizou a tração horizontal cutânea para melhor controle dos desvios, até a consolidação (1,17,21,28). Bryant, em 1872, introduziu a tração vertical, até três anos de idade, reportando resultados satisfatórios, apesar de complicações cutâneas e vasculares, como a síndrome de Volkmann (13,17,18,21,28). Cushing, em 1898, preconizava o uso do aparelho gessado após redução incruenta (21). Devido ao difícil controle dos desvios angulares, no início do século XX, preconizou-se um período de tração cutânea até a ocorrência de calo fibroso, seguida de aparelho gessado (21), sendo que para as crianças mais velhas a tração era esquelética na posição 90/90 (1,7,9,10,14,,20). Nessa época, na Europa, falava-se até em tratamento cirúrgico das fraturas diafisárias do fêmur em crianças, pois os encurtamentos decorrentes dos tratamentos gessados não eram aceitos, apesar de Keating já ter reconhecido, em 1890, O hipercrescimento corrigindo encurtamentos residuais (21). Vários autores reavaliaram o aspecto do hipercrescimento decorrente de uma fratura de ossos longos em crianças, recomendando um certo grau de encurtamento na época da redução, variando de 0,5 a 3cm (2,4,8,19, 22,25,26). Visando um período menor de internação e rápido retorno ao convívio do lar, Dameron & Thompson, em Rev Bras Ortop Vol. 28, Nº 6 Junho, 1993
FRATURA DE FÊMUR EM CRIANÇA GESSO DE IMEDIATO 90/90 1959 (6), seguidos de vários autores (3,12,13,15,23,24,27), preconizaram o uso de aparelho gessado em extensão de imediato ao trauma, chegando Irani, em 1976, a sugerir gesso de imediato na sala de emergência, sem anestesia, desde que as condições clínicas permitissem (13). Desde janeiro de 1990, temos utilizado o aparelho gessado de imediato na posição 90/90, em crianças até dez anos de idade com fraturas diafisárias do fêmur, razão do presente estudo. No momento da aplicação do aparelho gessado, foi aceito encurtamento máximo de dois centímetros e angulação no plano sagital de até 20 e 15 no plano frontal, sem aceitação de desvios rotacionais. LOCALIZAÇÃO TIPOS MATERIAL E MÉTODO Trinta e oito crianças até dez anos de idade, com 38 fraturas diafisárias do fêmur, tratadas de janeiro de 1990 até agosto de 1992, forarn avaliadas prospectivamente. Vinte e oito pacientes eram do sexo masculino (73,7%) e dez do feminino (26,3%), com distribuição etária conforme a tabela 1. As fraturas foram causadas por acidentes automobilísticos em 22 casos (57,8%), quedas de altura em 12 (31,5%) e maus tratos em quatro casos (10,7%). As características das fraturas estão demonstradas na fig. 1. Dezenove pacientes (50%) apresentaram lesões associadas, sendo que em quatro casos foram graves, a ponto de interferirem na colocação do gesso nas primeiras 48 horas. Os pacientes foram avaliados e tratados seguindo um protocolo (fig. 2), com aplicação de aparelho gessado pelvipodálico na posição 90/90 de imediato ao trauma, dependendo das condições clínicas, sempre que possível na urgência, sem anestesia, exceto nos casos com lesões associadas graves, quando eram mantidos em tração cutânea na posição horizontal, até a melhora do quadro clínico. Idade TABELA 1 Distribuição etárias Até 3 anos 15 39,5 4 anos 4 10,5 5 anos 3 7,9 6 anos 4 10,5 7 anos 2 5,3 8 anos 4 10,5 9 anos 3 2,9 10 anos 3 7,9 Rev Bras Ortop - Vol. 28 N 6 Junho, 1993 Casos % 20 Esq 18 Dir O Bil 24 13 01 Fig. 1 Localização e tipos de fraturas Nome: Idade: Sexo: Admissão: Alta: Tempo de Internação: Dias. Fratura do Fêmur - Tipo - Use o desenho: ESquerdo Lado: Direito Bilateral Aberta Fechada Proximal Médio Distal Transversa Oblíqua Cominutiva Lesões Associadas: Descrição: Causa do Trauma: Tempo de Consolidação: dias. Tratamento: Gesso dias após o trauma. Remanipulação Complicações do Tratamento: Quebra do gesso Abandono do tratamento Encurtamento do Membro Afetado: dia do trauma pós-redução consolidação 6 meses 12 meses 24 meses Fig. 2 Ficha protocolar 423
A.E. CASSONE & J. ORTIZ Controles radiográficos foram realizados periodicamente, com cunhas gessadas nos casos de desvios angulares ou secção transversa do gesso, distração manual e reparo do gesso nos casos de encurtamento além daqueles aceitos no protocolo inicial. Escanografia foi realizada com seis, 12 e 24 meses pós-fratura, para avaliar a simetria de comprimento dos membros inferiores. Após a retirada do aparelho gessado, nenhum método fisioterápico foi utilizado. TABELA 2 Graus de encurtamento no seguimento Variação (mm) Média Dia do trauma 0-35 17 Pós-redução 5-20 11 Consolidação 5-25 14 6 meses 3-18 10 12 meses 0-13 6 24 meses (+6)-10 2 RESULTADO Trinta casos (78%) tiveram a aplicação do aparelho gessado nas primeiras 24 horas pós-trauma, sendo que seis tiveram o mesmo aplicado de imediato, sem anestesia, na urgência. O tempo de internação variou de um a 19 dias, com média de quatro dias. O tempo de consolidação variou de 23 a 81 dias, com média de 45 dias. O seguimento variou de dois a 34 meses, com média de 15 meses. O grau de encurtamento de imediato ao aparelho gessado e no seguimento até 24 meses está demonstrado na tabela 2. Observe-se que a maior proporção do ganho de comprimento ocorreu nos primeiros 12 meses. Como complicações imediatas, tivemos remanipulação da fratura em dois casos (5,2%), quebra do aparelho gessado em três (7,8%) e retirada do gesso com três semanas pela mãe em um caso, mas com resultado final satisfatório. Todos consolidaram sem desvio além dos aceitos no protocolo (figs. 3 A, B, C e D). Todos os pacientes evoluíram sem limitação das funções do membro acometido, com recuperação para o normal após quatro a seis semanas da retirada do gesso. A satisfação social e a facilidade de transporte do paciente com o gesso na posição 90/90 foram notavelmente superiores aos comparados com outros pacientes, não inclusos nesta série, tratados com gesso de imediato na posição horizontal (fig. 4). DlSCUSSÃO Apesar de vários autores preferirem um período de tração prévia antes da colocação do aparelho gessado no tratamento das fraturas diafisárias do fêmur em crianças abaixo dos dez anos (5,7,9,10,14,17,18,28), nossos resultados demonstraram que a aplicação de aparelho gessado, muitas vezes sem anestesia, de imediato ao trauma, levou a 424 Fig. 3 Evolução de um caso. A) Dia do trauma; B) No gesso; C) Um ano pós-fratura; D) Dois anos pós-trauma; escanometria sem assimetria. Rev Bras Ortop Vol. 28, N 6 Junho, 1993
FRATURA DE FÊMUR EM CRIANÇAS GESSO DE IMEDIATO 90/90 Fig. 4 Gesso Pelvipodálico 90/90; observar o conforto do paciente resultados extremamente satisfatórios, sem complicações importantes. A incidência dos traumatismos, com maus tratos mais freqüentes até os três anos, quedas de altura até os seis anos e acidentes automobilísticos em crianças mais velhas, coincide com os achados da literatura (11). Embora nosso seguimento tenha sido curto, os graus de encurtamento e os desvios aceitos na aplicação do gesso se corrigiram na sua maioria nos primeiros 12 meses da fratura, não modificando sobremaneira após este período, seguindo o preconizado por Stephens & col. (26) (fig. 5). Existem várias teorias para explicar o hipercrescimento, sendo as mais aceitas a hiperemia reacional à fratura (4) e a rotura do periósteo (26), que é maior no lado do membro não-dominante (4), fato que não foi por nós avaliado. Nenhum caso terminou o tratamento com desvio angular ou rotacional que justificasse tratamento sucessivo, embora seja importante lembrar a necessidade de seguimentos clínico-radiográficos periódicos e cunhas gessadas, principalmente nas primeiras duas semanas do trauma, pois pela faixa etária envolvida a velocidade de consolidação é relativamente rápida. Rev Bras Ortop Vol. 28, Nºs 6 Junho, 1993 Fig. 5 Correção do encurtamento segundo Stephens & col. O tempo de internação com a aplicação imediata do aparelho gessado e os custos socioeconômicos são fatores de avaliação muito importantes, já que na maioria dos nossos casos o tempo de hospitalização foi de, no máximo, 48 horas, ficando os períodos maiores de internação à custa das lesões associadas e nos casos de maus tratos, nos quais, por razões legais, os pacientes permaneciam mais tempo internados. A posição de imobilização é outro aspecto interessante de discussão, já que vários autores sugerem a posição 90/90 apenas para fraturas proximais e a posição (1,3,14-16) horizontal para fraturas mais distais. Nesta revi. são, não observamos fatores deletérios ao generalizarmos a posição 90/90 em todas as fraturas; muito pelo contrário, a satisfação social com relação às atividades diárias, como alimentar-se sentado em cadeira ou assistir televisão, foi muito gratificante. Embora alguns autores sugiram o uso de tração prévia ou fio de tração incluído no gesso, para manter a correção da redução (5,7,9,10,14,16-18,24,28), não sentimos necessidade de sua utilização, ainda mais considerando as possíveis complicações nesta faixa etária. CONCLUSÕES O tratamento das fraturas diafisárias do fêmur em criança abaixo dos dez anos de idade, tratadas com apa- 425
A.E. CASSONE & J. ORTIZ relho gessado 90/90 de imediato ao trauma, mostrou-se altamente eficiente, com índice de complicações desprezível, sendo socialmente mais aceito pelos pacientes, quando comparado ao gesso tradicional em extensão. Os graus aceitos de angulação (15 e 20 ) e o encurtamento de até 2cm remodelaram, em média, após os primeiros 12 meses, não tendo sido observada nenhuma seqüela ortopédica, apesar do seguimento curto (média de 15 meses). Devido ao curto período de internação (média de quatro dias), com aparelho gessado aplicado nas primeiras 24 horas em 30 casos (78%), sendo seis desses casos na urgência sem anestesia, o custo do tratamento é baixo. REFERÊNCIAS 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Aronson, D.D., Singer, R.M. & Higgins, R. F.: Skeletal traction for fractures of the femoral shaft in children. J Bone Joint Surg [Am] 69:1435-1439, 1987. Bathtield, C.A., Versfeld, G.A. & Schepers, A.: Overgrowth following femoral fractures in children. J Bone Joint Surg [Br] 64: 256, 1982. Celiker, O., Cetin, I,, Sahlan, S., Pestilci, F. & Altug, M.: Femoral shaft fractures in children: technique of immediate treatment with supracondylar Kirschner wires and one-and-a-half spica cast. J Pediatr Orthop 5:580-584, 1988. Clement, D.A. & Colton, C.L.: Overgrowth of the femur after fracture in childhood. J Bone Joint Surg [Br] 68:534-536, 1986. opera- Crenshaw, A.H.: Fractures of femoral shaft, in Campbell s tive orthopedics, 1987. Vol. 3, p. 1949-1950. Dameron, T.B. & Thompson, H.A.: Femoral-shaft fractures in children, J Bone Joint Surg [Am] 41: 1201-1212, 1959. Deubelle, A., Vanneuville, G. & Tanguy, A.: Fractures de la diaphyse fémorale chez l enfant. Rev Chir Orthop 69:513-519, 1983. Edvarsen, P. & Syversen, S.N.: Overgrowth of the after fracture of the shaft in childhood. J Bone Joint Surg [Br] 58: 339-342, 1976. 9. Griffin, P.P., Anderson, M. & Green, W.T.: Fractures of the shaft of the femur in children. Treatment and result. Orthop Clin North Am 3:213-224, 1972. 10. Hebert, S.K., Villegas, J.C., Vasquez, J.M., Ramirez, F.S. & Pozzi, M.I.: Fraturas de fêmur na criança. Rev Bras Ortop 5: 167-170, 1991. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. Hedlund, R. & Lindgren, U.: The incidence of femoral shaft Fractures in children and adolescents. J Pediatr Orthop 1:47-50, 1986. Henderson, O.L., Morrisy, T., Gerdes, M.H. & McCarthy, E.: Early casting of femoral shaft fractures in children. J Pediatr Orthop 4: 16-21. Irani, R., Nicholson, J.T. & Chung, S.M.K.: Long-term results in the treatment of femoral-shaft fractures in young children by immediate spica immobilization. J Bone Joint Surg [Am] 58: 945-951, 1976. Lazzareschi, M. & Harris, W. W.: Redução e gesso pelvipodálico 90/90/0 como método de tratamento de fraturas da diáfise do fêmur na criança. Rev Bras Ortop 2:72-77,1976. McCarthy, R.E.: A method for early spica cast application in treatment of pediatric femoral shaft fractures. J Pediatr Orthop 1:89-91, 1986. Miller, M.E., Bramlett, K.W., Kissel, E.U. & Niemann, K.M.W.: Improved treatment of femoral shaft fractures in children. Clin Orthop 219: 140-146, 1987. Nunes, J.S. & Barbosa, E.F.: Fratura diafisária do fêmur em criança: 66 casos Revisão e atualização. Rev Bras Ortop 1: 33-43, 1976. Rang, M.: Children s fractures, 1983, p. 264-277. Reynolds, D.A.: Growth changes in fratured long-bones. J Bone Joint Surg [Br] 63:83-88, 1981. Ryan, J.R.: 90-90 skeletal femoral traction for femoral shaft fractures in children. J Trauma 1:46-48, 1981. Rockwood, C. A.: Fractures in children, 1984. Vol. 3, p. 845-886. Shapiro, F.: Fractures of the femoral shaft in children.,acta Orthop Scand 52:649-655, 1981. Spinner, M. & Freundlich, B. D.: Double-spica technic for primary treatment of fractures of the shaft of the femur in children and adolescents. Clin Orthop 53: 109-114, 1967. Splain, S.H. & Denno, J. J.: Immediate double hip spica immobilization at the treatment for femoral shaft fractures in children. J Trauma 10:994-996, 1985. Staheli, L. T.: Femoral and tibial growth following femoral shaft fracture in childhood. Clin Orthop 55: 159-163, 1967. Stephens, M.M., Hsu, L.C. & Leong, J.C.: Leg length discrepancy after femoral shaft fractures in children. J Bone Joint Surg [Br] 71:615-618, 1989. Sugi, M. & Cole, W.: Early plaster treatment for fractures of the femoral shaft in childhood. J Bone Joint Surg [Br] 69:743-745, 1987. Tachdjian, M. O.: Fractures of the femoral thopedics, 1972. Vol. 2, p. 1681-1704. shaft, in Pediatric Or- 426 Rev Bras Ortop Vol. 28, Nº 6 Junho, 1993