ANÁLISE DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL: IMPLÍCITOS E NÃO-DITOS

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Transcrição:

211 de 297 ANÁLISE DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL: IMPLÍCITOS E NÃO-DITOS Marília Flores Seixas de Oliveira (UESB) RESUMO Na vida moderna, uma profusão de signos invade a existência humana, repletos de conteúdos ideológicos, expressos nem sempre às claras, antes, de maneira subliminar, operando nos interstícios do texto, a partir de um jogo semântico que incorpora importantes elementos significativos veiculados indiretamente. Este trabalho analisa uma notícia veiculada em jornal, tomando por base os trabalhos de Oswald Ducrot (1977) e de Michel Pêcheux (1983) sobre implícitos e não-ditos, tentando compreender as mensagens subliminares presentes no texto e tornar mais claros os conteúdos ocultos, mas traduzíveis e passíveis de reconstituição pela análise discursiva dos elementos textuais. PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso. Implícitos. Não-ditos. Discurso jornalístico. INTRODUÇÃO Na contemporaneidade, imagens, notícias, símbolos e signos nos invadem a todo instante, estabelecendo uma existência contaminada pelo excesso de mensagens de conteúdo ideológico, que buscam conduzir as pessoas - de maneira nebulosa e ilusória - à condição precária de submissão inconsciente ao sistema e ao consumo, apertando-as, ajustando-as e formatando-as pelas mós dos moinhos satânicos do mercado (POLANYI, 2000). Tais mensagens operam nos planos conscientes e inconscientes, por elementos significativos explícitos e implícitos, com intenções nem sempre confessas e em textos nem sempre claros, com seus conteúdos ideológicos expressos de forma subliminar, nos interstícios e não-ditos. Este trabalho analisa uma Doutoranda em Política e Gestão Ambiental pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB), Mestre em Desenvolvimento Sustentável pelo CDS/UnB, Especialista em Leitura: Teoria e Prática e graduada em Letras com Inglês pela UESB. Professora de Cultura Brasileira do DFCH/UESB.

212 de 297 notícia veiculada em jornal, tomando por base o trabalho de Ducrot (1977) sobre implícitos e não-ditos, tentando compreender as mensagens subliminares presentes no texto. Quando se trata de textos jornalísticos, há um mito que confere à notícia certo grau infundado - de imparcialidade e de objetividade, a partir da ilusão de que a notícia jornalística é, a priori, verdade. Entretanto, há muitas mediações entre os fatos e a tradução jornalística dos mesmos: o lugar discursivo da empresa noticiadora, a agenda interna dos jornais e os pontos de vista dos jornalistas envolvidos, por exemplo, são elementos que comprometem os resultados textuais finais, impregnando as notícias veiculadas de conteúdo ideológico, de forma direta ou indireta, alterando até mesmo os fatos a partir desta transcrição discursiva. MATERIAL E MÉTODOS O texto selecionado para análise é uma matéria do Jornal Folha de S. Paulo, jornal de circulação nacional que goza de certo conceito de progressista, ou de pouco comprometido ideologicamente com as forças conservadoras. A partir da sistematização da notícia analisada, foi montado um quadro resumo das vozes presentes no texto, identificando as vozes presentes e os tipos, a partir de duas categorias - locutor ou enunciador - (segundo Ducrot), apontando-se os fragmentos textuais correspondentes. A análise buscou identificar também as condições de produção do texto. Na elaboração do Quadro Resumo das Vozes presentes no Texto (BAKHTIN, 1929), levamos em conta os fundamentos de DUCROT (1977) - na perspectiva da Semântica da Enunciação que contesta a idéia de unicidade do sujeito falante, trabalha com conceitos de locutor(es) (responsáveis pelo enunciado / ser do discurso ) e enunciador(es) (personagens da história) e propõe uma versão polifônica da enunciação. As condições de produção do texto estão ligadas à

213 de 297 redação do jornal, que noticia (6/02/98), em reportagem de Marina Avancini (da Folha Campinas), uma manifestação de pais e crianças do MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto) por vagas na rede escolar, ocorrida em 5/2/98 em Campinas. RESULTADOS E DISCUSSÃO A análise do texto começa pelo título: Sem-teto e sem-vaga invadem delegacia. O título não diz que a delegacia invadida é de ensino, deixando margem para a associação imediata com delegacias de polícia, filiação de sentido mais freqüente para a palavra delegacia, deixando-a, assim, se ligar a um campo semântico de contravenção, ilegalidade e perturbação da ordem. Sentido que é reforçado pela associação do verbo invadir, de forte conteúdo pejorativo, utilizado no título como forma de caracterizar implicitamente o sujeito (os sem-teto e sem-vaga) como invasores/transgressores. A utilização reiterada de invadir/invasão no texto evidencia a posição discursiva e ideológica dos locutores (jornal/jornalista) quando confrontada com vozes que se encontram em outro lugar discursivo, os sem-teto e sem-vaga, que utilizam como equivalente a expressão ocupação, sem a carga semântica negativa encontrada em invasão. Outras evidências desta posição discursiva oposta aos sem-teto são encontradas quando os locutores, ao se referirem às ações dos sem-teto e sem-vagas, utilizam expressões como protestaram, ameaçaram, reclamam de, que concordam com o campo semântico esboçado desde o título, dando idéia de contestação, transgressão e desordem. No entanto, ao se referir às ações dos representantes do governo, escolhem expressões cujo conteúdo semântico liga-se ao bom senso e ao equilíbrio. Entre as vozes presentes está a da Polícia Militar, em discurso de oposição ao dos manifestantes: enquanto o MTST contabilizou 500 participantes do movimento, a polícia contabilizou 200. Pode-se perceber de forma implícita a dicotomia ordem (polícia/delegados de ensino/políticos/governo) X

214 de 297 desordem (sem-teto e sem-vaga/invasão/ protesto/ameaça/causadores de problemas/fora da ordem). O fato de podermos inferir, além da clara dicotomia estabelecida pela própria luta de classes, a colocação implícita dos manifestantes como estando do lado oposto à ordem, nos leva a pensar que os responsáveis pela enunciação (locutores) se situam em posição discursiva contrária à dos sem-teto/sem-vaga/mtst. Outra questão é o fato de que a não concessão de vagas para as crianças semvagas estaria ligada à impossibilidade dos pais comprovarem a moradia, uma vez que são sem-tetos. Estando este problema colocado desde o início pelo próprio jornal (no texto acima do título) não é, contudo, abordado com clareza ao longo da reportagem, sequer é esclarecida a relação entre a não confirmação de residência e a impossibilidade de matrícula das crianças. Estes não-ditos também podem ser lidos, e nos fazem pensar nos motivos pelos quais os locutores omitem maiores explicações sobre as ocupações, as dificuldades encontradas pelos pais em sua relação com os processos burocráticos do sistema formal de ensino - que impedem o acesso das crianças do MTST à escola - e o ponto de vista dos sem-teto frente ao problema gerador da manifestação. CONCLUSÕES Ao noticiar a manifestação contra falta de vagas nas escolas públicas, a reportagem privilegiou as vozes oriundas do lugar discursivo ideologicamente comprometido com o poder, impregnando de sentidos pejorativos os conteúdos dos textos referentes aos manifestantes. Na análise, foi possível verificar como operam os conteúdos nos discursos e nos enunciados deste texto jornalístico. Tais conteúdos traduzem-se em ideologia que resulta na exposição dos leitores aos vazios (implícitos, pressupostos, subentendidos) e a seus teores não-ditos.

215 de 297 REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986. Edição original: 1929. DUCROT, O. Princípios de semântica lingüística (dizer e não dizer). São Paulo: Cultrix, 1977. PÊCHEUX, M. A análise do discurso: três épocas. In: GADET, F. e HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1983. POLANYI, K. A Grande transformação: as origens da nossa época. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.