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Transcrição:

CYNDI E EU CARLOS MOURÃO (TEXTO) KILMA COUTINHO (ILUSTRAÇÕES E ARGUMENTO)

Essa história retrata um capítulo da vida da artista plástica surda Kilma Coutinho, mais especificamente, a relação de amizade que desenvolveu na infância com sua boneca Cyndi, quando não conhecia a língua de sinais. Dedicamos esse trabalho a todas as crianças surdas do mundo. Carlos Mourão e Kilma Coutinho

O lápis é para mim um objeto mágico... mais até: ele e Cyndi foram meus primeiros amigos inseparáveis. Cyndi é minha boneca e foi a primeira coisa que eu lembro de ter desenhado. Nesse dia, queria dizer a minha mãe que não podia ficar na escola sem Cyndi, pois lá não tinha com quem conversar. Nasci surda e me tornei desenhista com a ajuda dela e dos lápis. Vivi com eles por toda a minha infância e hoje, sem querer, esbarrei nesses desenhos espremidos na estante, atrás do vaso, no quarto, no canto, caídos de tempo e surpresa, folha por folha, espalhados no chão. Minha vida me vendo após 20 anos. Tenho um largo sorriso de pernambucana, não sei bem se nascido comigo ou se incorporado dos sorrisos que me olhavam, balançavam a cabeça, mas não conversavam, nada diziam, nada falavam enquanto as perguntas que eu fazia pairavam em meus olhos, repetidas e cansadas, acumuladas até desaguar. E aí só mesmo Cyndi pra me entender, conversar comigo em nosso quarto até refazer meu sorriso, mexendo suas mãozinhas, apontava, dizia que estava com fome, fazíamos comida, escrevíamos cartas desenhadas, depois dormíamos mais amigas entre as almofadas.

Na minha casa todo mundo mexia a boca e às vezes gesticulava, eu olhava, repetia, com meus olhos abertos, falava, mexia uma boca cerrada, nada de voz ou palavra e terminava apontando para ser entendida o que meu desapontamento mostrava. Mas com Cyndi eu me entendia em nossa fala, o olhar atento dela tornava mínima a boca que apenas compunha a frase do rosto, do corpo e dos braços. Nela não havia dentes, língua ou lábios, nela havia uma barriguinha de pano, uns lacinhos no cabelo, um vestidinho de babados e uma ternura de gestos que me confortava.

Meus lápis e meus desenhos nesse tempo funcionaram como uma extensa corda, capaz de trazer de longe, do fundo de um poço uma abundância de coisas que eu tinha e Cyndi era o que eu mais tinha. Cyndi e eu, foram as coisas que mais retratei: ela era a minha companhia colorida enquanto vivi triste e sozinha entre uma multidão de pessoas pálidas, feitas de palavras que eu não lia, não ouvia e não entendia sua existência de fumaça. Sentia minha voz guardada, sufocada, e em desespero queria pegá-la nas mãos para mostrar a todos, até que alguém visse e acreditasse que eu podia dizer todas as falas, que o meu pensamento era uma luta incontornável, perdendo todos os dias para um mundo de dúvidas e em cada dúvida, eu duvidava. De tudo eu sabia um pouco pela metade e o que eu sabia, ninguém sabia inteiramente nenhuma parte. O nome de Cyndi, por exemplo, não sei por quê? O que quer dizer? Veio na caixa! Eu mesmo só a chamava por um sinal, os laços em sua cabeça eram sua marca, mas ninguém sabia, pra eles ela era Cyndi, pra mim, ela era imagem.

Cresci, meus desenhos mudaram, eram minhas janelas de dizer Um bolo, quero fazer! passeio, sorvete, praça, os meninos da escola nublados, ainda em branco e preto, nenhum que me sabia, ninguém que me falava, um gesto, um olhar esquisito, mais nada. Andei de um canto a outro por portas que não se destravavam. Faltava um trinco, um brinco, uma mágica. E dedinhos de condão tocaram de leve no meu ombro e na minha mágoa. Quando olhei, vi Laudiceia falando como Cyndi fazia, diferente, descamuflado, entendia e não sabia, perguntava se eu era surda. Surda como ela era, espelho na minha agonia.

Nova escola, novo tempo, todo mundo falava em Libras e eu, quase sem crer, na hora de minha chegada, buscando um canto, quieta, curva e acostumada fui encontrada por Laudiceia que sinalizou meu mundo e lhe deu cores. Com ela partilhei minha alma e todas as palavras nunca ditas ficaram à mostra nas nossas palmas. Descobri ser quem eu era, inventei minha mágica e depois fiquei feliz, muito feliz por não saber onde Cyndi estava. A confidente dos meus segredos quase todos segregados, sorria-me diferente nos desenhos dessas páginas.

Carlos Mourão é cearense, autor de Literatura Infantil e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Seu primeiro livro infantil, João: o menino do olhão foi agraciado com o prêmio Rachel de Queiroz de Literatura Infantil em 2012. Contato: carlos.mourao3@gmail.com Kilma Coutinho é pernambucana, artista plástica voltada à pintura e desenho em técnicas diversas, experiências que desenvolve desde infância. Hoje coordena um ateliê, promove exposições e mantém um trabalho de divulgação das artes plásticas junto ao público surdo. Contato: kilcou@gmail.com Recife/PE 2016