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Transcrição:

Introdução Introduzir um livro como o que segue é um trabalho que exige esforço intelectual. Trata-se de uma coletânea de textos onde autores que pesquisam e trabalham no campo psicológico reafirmando a posição de que a fenomenologia é uma abordagem adequada para se entender o humano o que implica afirmar que, na clínica, uma atitude fenomenológica seria de grande auxílio para o terapeuta. Isso já soa um tanto retrô, numa época onde outros -ismos andam ditando as regras. Mas ainda há outra complicação: os artigos que seguem são de natureza bastante diversificada entre si e os fenomenólogos escolhidos pelos autores para mediar ou fundamentar as discussões recobrem um espectro muito amplo dentro do próprio movimento fenomenológico (Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty etc.), para não falar de outras mediações, como semiótica (Carl Rogers, Martin Buber e Brentano), que fica na fronteira da fenomenologia. Isso poderia dificultar as coisas para o leitor que esperasse, porventura, deste livro, uma síntese acabada e concorde de ideias sobre a fenomenologia. Aqui tocamos no nervo: na verdade, esta complicação, a do pluralismo entre os textos, ajudará a introduzir não apenas a questão como aproximar-me de um livro como este?, mas descortina, ao nosso olhar, o espectro de um problema mais amplo, o de nosso acesso à realidade. A nossa verdadeira pergunta, que este livro vai ajudar-nos a formular, é qual é mesmo meu conceito de realidade, do ponto de vista da psicologia?. Vejamos. Tornou-se comum encontrar-se na grande Academia (e o movimento fenomenológico é um dos responsáveis por tal fenômeno), livros

10 Introdução em que os textos partem de lugares diferentes e chegam a outros mais diferentes ainda. Isso não implica que os rumos para onde conduzem sejam contraditórios; podendo ser apenas paralelos. E o fato de se encontrarem textos que falam de coisas parecidas, mas em visões aparentemente desencontradas e difíceis de complementar, é um indício de que está acontecendo algo muito positivo: há pessoas pensando temas em direções convergentes, todas alimentadas por uma mesma inspiração teórica e atitude prática; e mesmo que elas ainda não tenham chegado a um acordo sobre todos os pontos, seus olhares podem indicar um rumo novo de pesquisa. Talvez até nem tão novo, mas certamente instigante. O simples fato de haver, aqui, mais que uma maneira de trabalhar, já indica que a fenomenologia é um movimento extremamente fecundo, com muitas mediações e caminhos possíveis, como o leitor verá: um mais teórico (eidético), outro mais ligado ao existencialismo (hermenêutico), outro ainda à análise do discurso, personalismo, pensamento sociocrítico e assim por diante. De fato, uma palavra que não combinaria com fenomenologia é manual. Pois bem; ao comprometer-se oficialmente com a visão fenomenológica do trabalho ou pensar psicológico, os autores já não podem apontar caminhos feitos e consagrados, seguros e indiscutíveis. Isso porque uma das conquistas mais importantes da fenomenologia é justamente a de conclamar o leitor à tarefa do vivido: não atravessar o texto como consumidor de ideias, mas deixar-se atravessar por ele, tomando posse do conceito enquanto experiência; não aprender conteúdos, mas desenvolver (ou integrar) uma maneira de olhar o mundo que sempre se deixa tocar e desestabilizar pelo objeto, um olhar, um pensar que já não se furta mais à tarefa de começar sempre de novo; não falar sobre a experiência, mas, falando, refazê-la num discurso e, assim, apropriar-se dela. Um dos maiores problemas de toda a história intelectual do ocidente científico é justamente este, o de querer substituir a experiência pelo discurso sobre ela. Mesmo a experiência de viver vem sendo substituída cada vez mais por tentativas veladas de falar-se sobre a vida. E, assim, fala-se sobre a vida, amor, Deus, sentido, prazer... sem levar a sério a experiência real da vivência dessas experiências como realidade humana, específica, palpável. Fala-se do fenômeno, mas, esquecendo-se dele, muitas vezes. Caímos na equação, técnica, estratégia

Introdução 11 e desaprendemos a ler os sinais do percurso. E a grande bandeira de toda a história do movimento fenomenológico é esta, a do retorno às mesmas coisas, ao vivido, ao plural e disperso, mas pulsante e fecundo universo da vida real. Isso começa com o simples fato de ler um texto ou conjunto de textos (como este que seguirá), até o cada vez mais amplo horizonte da pesquisa e trabalho em psicologia. Assim, tendo indicado brevemente esta questão, a do pluralismo entre os autores e seu significado, passemos brevemente a indicar os rumos mais comuns que se encontrarão nos textos, rumos estes que deverão ser complementados pela leitura detalhada e interessada de cada um. O primeiro artigo deste livro (Pesquisa Fenomenológica em Psicologia) é um texto de registro extremamente dinâmico desses que registram um pensamento enquanto está em processo de formação, o que o torna interessante para introduzir todos os outros. O Prof. Mauro Amatuzzi, colocado no início do livro, lança-nos diante da questão se e, até que ponto, uma pesquisa pode ser radicalmente fenomenológica. Do ponto de vista da sua valiosa experiência pedagógica, traça a distinção muito útil para todos os outros textos: radicalmente fenomenológica é aquela pesquisa em que os conceitos teóricos (mesmo hipóteses de trabalho) são construídos a partir dos fatos. Mais que testar hipóteses ou ideias preconcebidas, a finalidade de uma pesquisa deverá deixar-se guiar por seu objeto para colhê-lo em seu dinamismo e, assim, tecer-se enquanto conceito. Tarefa difícil, penosa, mas que dá a pensar, ainda mais se lembrarmos que toda a revolução do empirismo na filosofia começou com um senhor chamado Francis Bacon que distinguia entre os autores que projetavam na natureza suas ideias e aqueles os melhores capazes de domar a natureza por via-experimental e, no processo, formar suas ideias. Ou seja, sem antecipações, nem generalizações apressadas. Um projeto sempre abandonado e retomado, no curso da história da ciência empírica. O artigo do Prof. Mauro Amatuzzi, com toda sua forma despojada, é uma provocação visceral, que nos faz pensar profundamente sobre o conceito mais adequado e honesto de pesquisa realmente empírica. Para quem já faz pesquisa, pode ser ele um momento de revisão; para quem ainda não se lançou e pensa no caso, é um caloroso convite, mas

12 Introdução sem facilitar as coisas. Se este livro fosse um quadro a óleo, o artigo do Prof. Mauro seria sua moldura. Josemar de Campos Maciel é o autor do próximo texto (Franz Clemens Brentano e a Psicologia). Brentano é um autor pouco discutido na psicologia brasileira e este texto tem o mérito, mesmo de forma muito sumária, de relembrar algumas das discussões das quais ele é matriz e fonte. Brentano é considerado por todos os historiadores do pensamento como um dos pais da fenomenologia. Mas muitos de nós pensariam que isso se reduz ao fato de ele ter sido tutor e professor de Husserl durante alguns anos. Na verdade, o problema é mais amplo e merece um tratamento diferenciado. Brentano pode não ter fundado uma abordagem filosófica ou psicológica completa, sem arestas; mas sua contribuição mais específica está na abertura do horizonte da pergunta fenomenológica, como se verá: como ser rigoroso na pesquisa e teoria psicológica e, ao mesmo tempo, não deixar de lado sua dimensão especificamente humana? é a pergunta pela natureza de uma psicologia experimental, a ser trabalhada. O Prof. Adriano Holanda assina o artigo seguinte (Pesquisa Fenomenológica e Psicologia Eidética: elementos para um entendimento metodológico), cortando, com um bisturi filosófico afiado no recurso a grandes nomes da fenomenologia, o relevo dos conceitos mais importantes para se pensar em um projeto de psicologia fenomenológica. Um projeto e não o projeto, porque sua proposta particular é fascinada pela figura e significado de Husserl não somente para o movimento fenomenológico, como também para a psicologia enquanto tal. Trata-se de um momento formal neste livro que temos em mãos, onde se tenta, em primeiro lugar, discorrer sobre a legitimidade da pesquisa nos moldes da fenomenologia e, além disso, fundar esta legitimação no modelo da fenomenologia como proposto por Husserl: Desenvolvendo o que o Prof. Amatuzzi denominou pesquisa de natureza, o Prof. Adriano vai propor a pesquisa eidética para caracterizar um modelo concreto de pesquisa fundamentado na fenomenologia. Isso significa, em breves palavras, investigar o fenômeno para atingir sua essência. Em seguida, a Professora Maria Alves Bruns retoma em seu artigo (A Redução Fenomenológica em Husserl e a Possibilidade de Superar Impasses da Dicotomia Subjetividade-Objetividade), um dos

Introdução 13 temas capitais do temário husserliano, o da redução fenomenológica, atualizando-o para nossos tempos. Começando por uma breve situação histórica do movimento fenomenológico, ela aponta para outra questão no coração do problema metodológico da pesquisa em psicologia: a dicotomia entre sujeito e objeto. Na verdade, se a ciência, em sua gênese, preferir o sujeito como produtor de conhecimento, cairemos em um modelo de ciência que valorizariá tanto a mente do pesquisador que perderá o contato com o real. Por outro lado, uma abordagem radicalmente oposta, que valorizasse o dado empírico por si só, ou seja, o objeto, correria o risco oposto: propor a pesquisa como uma esfera de pura quantidade, o que obviamente seria um problema para a psicologia, que lida com pesquisas com seres humanos, nunca objetos em estado puro (Estes dois modos extremos de aproximação à realidade foram respectivamente encarnados, na história recente das ideias no Ocidente, por muitas vertentes idealistas e empiristas ). A saída proposta pela fenomenologia é partir do conceito de intencionalidade, que abre o acesso à realidade em sua percepção pela consciência humana e propõe simultaneamente dados acessíveis ao pesquisador, sem renunciar à sua natureza específica, qual seja, a de serem eles dados de consciência, humanos, portanto, por excelência. O acesso a esse tipo de dado é controlável e torna-se factível mediante a retomada da técnica da redução fenomenológica, também de matriz husserliana. O próximo texto, pela Professora Maria Alves Bruns e psicóloga Ellika Trindade (Metodologia Fenomenológica: a contribuição da ontologia hermenêutica de Martin Heidegger), completa os outros apresentados até agora, enquanto chama a atenção para a variante heideggeriana da fenomenologia. Trata-se de um projeto que, dentro da metodologia fenomenológica, implicaria uma hermenêutica ou analítica existencial para a investigação do sujeito psicológico. O projeto heideggeriano é extremamente sofisticado e articula-se em diversas investidas em que o filósofo retoma, relê e reinterpreta o que para ele são questões fundamentais de toda a história do pensamento do Ocidente. A principal questão, do Ser ou ontologia, abre-se ao pensador apenas e tão somente no único ente que se colhe enquanto pensante, que

14 Introdução se abre à questão da existência e globalidade do sentido, o ser humano em sua existência histórica (o Dasein). A questão do ser é antropológica para Heidegger; e, ainda, a questão antropológica é hermenêutica, pois, na visão ontológico-existencial deste filósofo, a interrogação pela realidade, natureza das coisas, deve começar na consciência humana, lá onde a realidade é percebida na multiplicidade, apropriada na unidade da consciência e transforma-se em vivido no ato de liberdade, em produção de significado ou sua negação. As autoras, repropondo as ideias heideggerianas como possível abordagem de pesquisa, na verdade estão reforçando a reivindicação típica da fenomenologia: a de que o dado humano é único e deve ser tratado com uma metodologia também única. O próximo texto, da Professora Vera Alves (Psicoterapia Conjugal: pesquisa fenomenológica) é um registro instigante e ilustrativo do dado acenado acima. Ela inicia seu discurso mencionando o fato de Carl Rogers, um pesquisador reconhecido e premiado por seus méritos no progresso da aplicação da metodologia empírica às questões da psicoterapia, manifestar-se incomodado por uma dicotomia que sentia nele próprio: de um lado, sentia-se um rigoroso pesquisador e coletador de dados empíricos; de outro, por respeito às pessoas das quais obtinha os dados, um terapeuta quase místico. Daí a Autora relata detalhadamente uma pesquisa em psicoterapia de casais, por um lado, seguindo a abordagem psicológica fundada ou iniciada por Rogers; doutro, aplicando a metodologia fenomenológica denominada Versão de Sentido, do Professor Amatuzzi. O relato da pesquisa é detalhado e, em suas considerações finais, traz um elemento importante, que merece detida consideração por parte de seus eventuais leitores. Enquanto, segundo a autora, outros processos de coleta de dados podem ser até mais precisos, a metodologia denominada Versão de Sentido, além de registrar adequadamente o processo terapêutico, faz com que ele brote, surja, no conjunto das ações entre terapeuta e cliente/s. Em outras palavras, confirma a observação feita mais acima sobre o texto, aplicando-a à pesquisa: somente mediante o envolvimento com o objeto pesquisado pode-se falar de pesquisa do fenômeno, em sentido próprio. O último texto deste livro é outro relato de pesquisa realizada por William Gomes, Christian Kristensen e Renato Flores (Revelar

Introdução 15 ou não Revelar: uma abordagem fenomenológica do abuso sexual em meninos), desta vez, tratando-se de uma leitura de entrevistas usando o método fenomenológico. Trata-se de um texto extremamente atualizado de um ponto de vista das referências e também da temática, que enfoca o problema das crianças de sexo masculino que sofrem abuso sexual e angustiam-se diante do impasse de revelar ou não o referido abuso um problema que tem um pé na discussão da sociedade e família e outro, na própria saúde pública. O artigo abre-se discutindo e revisando a literatura a respeito do problema do abuso sexual; continua com uma detalhada apresentação de metodologia para passar, enfim, à discussão, dentro da tradição descritiva na fenomenologia aplicada: descrição, redução, interpretação. Interessante e detalhado, sob todos os aspectos, este texto é mais um exemplo de como se trabalha dentro do campo fenomenológico. Os autores, vendo a amplitude de seu tema de pesquisa e complexidade dos sujeitos, descobrem, no silêncio de seus relatos, um ponto subjetivamente doloroso e, do ponto de vista da coleta de dados, trabalhoso. Veem-se compelidos, pela natureza de seu objeto, a conjugar, assim, a referência a nomes importantes da fenomenologia (Maurice Merleau-Ponty) a outros, da semiótica (Fernando de Saussure, Roland Barthes), para pôr em evidência desvãos e delicadezas do discurso das pessoas pesquisadas posto que é de discursos que aqui se trata. Mais uma vez, retomamos aqui o problema do início desta introdução: se e até que ponto uma pesquisa tem maturidade para deixar-se elaborar, enquanto conceito, a partir dos dados e relação que os pesquisadores têm com eles. Este texto parece ser uma ilustração de um trabalho classificável como pertencente à mais legítima tradição fenomenológica, deste ponto de vista. O leitor apenas poderá conferir e concluir se temos ou não razão. Enfim, para dizer em breves palavras, o livro que segue levanta e percorre trajetórias tipicamente fenomenológicas, como: escolha de um instrumento de acesso aos dados permeável à riqueza daqueles; investigação de raízes históricas para entender a gênese de questões atuais; respeito profundo pelo que se vê, escuta e tenta descrever; cuidado quase melindroso, para não generalizar; uma tentativa sempre reafirmada e retomada de aprender com o objeto de pesquisa a ver esse mesmo objeto dado que este é também um sujeito, falando em

16 Introdução campo psicológico; um espírito curioso que quer ver a essência do que aparece, enquanto se manifesta. Tudo isto pode exemplificar, para quem quiser aprender com a escola da fenomenologia, alguns pontos do enorme arsenal de temas teóricos levantados por pessoas como Brentano e, sucessivamente, elaborados e deixados de herança por nomes como Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty. E, mesmo para o leitor que se decida por outras abordagens, pode ficar pelo menos um outro ponto, perseguido ao fio de toda a história do movimento fenomenológico, que poderíamos denominar atitude fenomenológica, aberta a todos: um profundo respeito (na verdade, quase uma fé) pelo outro e seu falar (seu falar-se, seu dar-se na palavra), em seus limites e também em sua luminosa originalidade.