A letra em Todos os nomes 1 Heloisa Caldas Palavras chave: Letra; nome próprio; feminino; gozo; literatura As melhores palavras são aquelas que não dizem nada 2 José Saramago, autor contemporâneo português, em seu livro Todos os nomes 3, dedica-se ao nome próprio, essa classe de palavra que quase nada porta de sentido, mas que não deixa de desempenhar um papel fundamental na pouca realidade da vida dos sujeitos. Essa obra ilustra o que o próprio Saramago ressalta, em uma de suas várias entrevistas, como um dos aspectos de seu processo de criação: seus livros partem de um título e este funciona como um enigma, provocando-o ao deciframento: "[...] as primeiras palavras são o título. Isso significa que partindo duma idéia que está consubstanciada num título, ou no título que consubstancia uma idéia, o proposto desse livro pretende resolver um problema que eu tenho; quer dizer, cada livro que eu escrevo tenta resolver um problema que eu tenho na minha relação com o mundo, na minha relação com os outros" 4 1 Trabalho produzido como parte da pesquisa do curso de pós-graduação em Psicologia Social e da Personalidade, nível de doutoramento, do Instituto de Psicologia da UFRJ, sob orientação da Prof. Vera Lopes Besset. 2 Saramago, J. O ano da morte de Ricardo Reis, São Paulo, Cia. das Letras, 1984. 3 Saramago, J. Todos os nomes, São Paulo, Cia. das Letras, 1997. 4 Site do autor, página da Web: http://stoat.shef.ac.uk:8080/gertrudes/saramago/index1.html
Em Todos os nomes Saramago está às voltas com o nome como objeto de coleção, elemento de um conjunto que se pretende exaustivo. A apresentação do todo nesse livro desafia e evidencia o limite da linguagem propiciando um olhar crítico à valorização ingênua do avanço das redes contemporâneas de informação internáuticas com a pretensão de que abrir portais a todas as infovias da web seja o acesso a um saber todo. Não que Saramago dedique uma única linha a esse assunto, mas assim como em A Biblioteca de Babel de Borges, o tema de Todos os nomes recoloca o mito do catálogo completo, do saber inteiro, que está, a meu ver, na base do atual excesso de entusiasmo para com o mundo virtual, o Outro na moda. O A da web também é inconsistente, o que certamente não invalida poder se servir dele. Como afirma Lacan: O mundo concebido como o todo, com a limitação que implica a palavra, seja qual for a abertura que se lhe dê, segue sempre sendo uma concepção [...] uma visão, uma mirada, uma captação imaginária 5 A Conservatória Geral do Registro Civil, cenário básico do livro é um grande centro de dados em nada informatizado. Um local onde são arquivados certidões e registros como nascimento, casamento, óbito. A paisagem é composta de papéis, fichários, verbetes, processos empilhados em estantes altas formando corredores tão longos que chegam a se perder em labirinto. O cheiro é de papel velho e o trabalho é manual. A escrita é a da caligrafia. O problema é o de sempre, como guardar os dados, como organizá-los em conjuntos? Que traços determinam as séries? Que causa pode justificar a razão de um funcionamento? Questões relativas à articulação entre o saber e a verdade uma vez que o significante repudia a categoria do eterno. 5 Lacan, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1982. p.60 2
Um dos problemas da Conservatória é como arquivar os dados sobre os mortos: qual deveria ser a relação de proximidade com os dados dos vivos? O problema filosófico é ironicamente apresentado de forma prosaica: se forem colocados logo depois dos dados sobre os vivos, em pouco tempo, os verbetes dos que morreram antes estarão mais próximos aos verbetes sobre os vivos do que aqueles relativos aos mortos recentes, já que estes irão sendo depositados ao fundo. Ora, como as pesquisas sobre os mortos recentes são mais freqüentes que as sobre os antigos, essa disposição dificultaria o acesso aos dados. O risco de perder-se na escuridão das labirínticas catacumbas pode ser fatal. Por isso, os funcionários devem usar uma lanterna e o fio de Ariadne. Nesse problema de disposição de dados, simples só na aparência, podemos entrever a gravidade dos problemas de arquitetura da Conservatória, cujo nome, ao evocar a conservação, entrecruza a vida e a morte, o tempo e o espaço. É uma arquitetura de teia como a que sai do ventre da aranha, imagem privilegiada por Lacan para as dimensões de superfície que a escrita exige em seu trabalho de texto. 6 A Conservatória pode ser pensada como A tesouro de significantes e templo de letra morta, se tomamos o significante na perspectiva que Lacan inicialmente o tomou: a de que o significante é a morte da coisa. Cabe, no entanto, se acompanhamos a evolução do pensamento de Lacan, melhor situar a Conservatória como uma banda de Moebius, já que ela produz um espaço vivo e êxtimo em que circula o desejo em suas vinculações aos efeitos de significante, mas que também viabiliza o gozo que o significante apenas indica. Em relação ao gozo o significante nada diz; não há efeito de sentido, mas sim a operação primária do signo: a de marcar o objeto a, não como objeto a significar, mas como objeto de gozo em si, contável. É o que, segundo Lacan, se delineia desde a posição de Crátilo no 6 Lacan, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1982. p.125-6. 3
diálogo de Platão: [...] o esforço de mostrar que bem deve haver uma relação nisso, e que o significante quer dizer de si mesmo, alguma coisa. 7 Na Conservatória dos vivos, os funcionários copiam e compilam, debaixo de uma solene e pesada burocracia. Caminham pelas vias desse imenso templo de dados como as formigas das telas de Escher. A organização da tarefa os situa como sujeitos da monotonia repetitiva do discurso do serviço público. Na hierarquia, há a autoridade máxima do conservador e subchefes a decidir sobre horários, trâmites, repreensões e promoções. A previsibilidade é grande, porém, a qualidade da tarefa tão próxima ao ponto em que o sentido se perde no não-sentido, os deixa à mercê do vazio da letra. Os Josés o escritor e o auxiliar de escrita. Publicado um ano antes de receber seu prêmio Nobel de Literatura, Todos os nomes é obra do autor já reconhecido mundialmente. É impossível não pensar no peso que a fama de seu nome possa ter tido na escolha do enredo e do próprio título. Em Todos os nomes, Saramago tem um problema com o nome a resolver e pelo desenrolar da história percebemos que é o de responder à questão: o que é Um nome entre outros? Em seu curso intitulado Ce qui fait insigne, Jacques-Alain Miller aponta o nome próprio como insígnia insigne / un signe ou seja, aquilo que distingue, um traço diferencial, e que permite que os elementos possam ser colocados em série. O nome, portanto, serve às relações que podemos distinguir entre a letra e o significante: como significante é um signo do efeito de sentido; como letra é o signo do efeito de gozo. O 7 Idem. p.42. 4
sinthoma, conceito lacaniano de amarração dos três registros, inclui esses dois aspectos o efeito significante e o gozo. 8 Com esse título, Saramago parte em sua abordagem sinthomática das facetas idéia e substância do nome. O José escritor se redobra no vivido pelo Sr. José, único personagem nomeado de forma tradicional na história. Confrontados com o enigma de um nome, ambos encontram-se na posição feminina diante da letra, apontada por Lacan desde o seu seminário sobre A carta roubada. 9 Vale salientar que Saramago faz parte do conjunto de escritores que adotam o chamado fluxo da consciência, particularizando seu estilo com um texto que não respeita as normas da fala escrita e provoca à leitura com uma torrente ininterrupta de significantes sem pontuação. Um diálogo, por exemplo, distingue a mudança de interlocutor apenas pela letra maiúscula no início da fala daquele que toma a palavra. Parágrafos e pontos são escassos. A vírgula, ao contrário, parece servir à produção de um ritmo de fala oral, adequada à tomada de fôlego do orador. Há capítulos, mas não títulos. Com esse estilo de revolucionária prosódia, no qual apenas a identidade das palavras em sua tradição é respeitada, suas obras têm como tema central a identidade pessoal. É o que ele próprio nos diz em uma de suas entrevistas recentes 10 : A questão fundamental é sempre essa: quem é o outro? Sempre vivemos juntos e sempre perguntamos isso, mas nos satisfazemos com uma pequena informação com um nome. O outro sempre permanece o outro. A solidão de cada um de nós é inevitável. 8 Miller, J. A. Los signos del goce. Buenos Aires, Paidós, 1998. 9 Lacan, J. O seminário sobre A carta roubada (1955), Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed.,1998. 10 Streitfeld, D. Translation, em The Washington Post, Sunday, January 21, Washington, 2001. 5
O Sr. José é um dos inúmeros, solitários e insignificantes auxiliares de escrita, escrevente de profissão e desfavorecido na vida. Sua tarefa consiste em copiar cuidadosamente para verbetes os dados novos que chegam à Conservatória. Seu trabalho não é lavrar o registro em uma certidão no ato em que a linguagem funda; sua função é a da cópia. No entanto, ainda que à caneta, ele não deixa de desenhar o gesto, aquilo que na caligrafia remonta ao que Lacan aponta da arte milenar chinesa da escrita o traço do pincel unário 11. Traço no qual o gesto é causa, antes mesmo que o pincel e a tinta o concretizem na superfície. O Sr. José se esmera no que faz e grande parte do que copia são nomes próprios, alguns famosos, a maioria de gente inexpressiva como ele próprio, sufocado como um Zé Ninguém pela obediência e falta de perspectiva da burocracia da repartição pública. Dessa forma o autor toca no paradoxo do significante que o nome próprio evidencia de forma mais crua que os chamados nomes comuns. O ponto de conjugação entre o nome próprio e o nome comum é aquele que esclarece a função do S 1 na medida em que este faz furo no sentido e o põe em relevo. 12 O nome próprio é um significante que não diz nada, não transmite sentido, embora opere como guia. O nome é, portanto, uma das mais disponíveis insígnias que temos para nos identificarmos no laço social. O paradoxo consiste em que, assim como qualquer significante na identificação, o nome próprio serve à alienação na transferência ao Outro, ao I(A); mas também resta como pura marca diferencial, impossível de traduzir, de compartilhar, sendo conseqüentemente, aquilo que separa do Outro. Como parte integrante 11 Lacan, J. Lituraterre, em Ornicar?, revue du Champ Freudien, n.41, avril-juin, Paris, 1987. 12 Laurent, E. Symptôme et nom propre, em Revue da la cause freudienne, Les maladies du nom propre. Paris, Diffusion Navarin Seuil, 1998. 6
do realismo da estrutura, o nome faz laço e o desejo se coloca a serviço do amor. Como representante do nominalismo, o nome está do lado do gozo 13. Como qualquer outro significante, o nome próprio pode jogar com o efeito de significação, servindo pela via do amor à suplência da falta de relação sexual. Lacan salienta que, no curso das análises, podemos verificar a importância que o nome próprio exerce na história do sujeito 14. De fato, se levamos em consideração que ele é, por excelência, um bom exemplo de escolha forçada de identificação, o sujeito deve extrair dela suas conseqüências. Como significante o nome próprio se conecta ao espaço semântico da vida, no qual, fazer de seu nome um nome entre outros é um sonho humano comum, expresso na demanda de se tornar famoso pelo que faz, ser nomeado para cargos importantes, participar de uma elite de poucos, como Miller resume na frase: quisera ser um cisne (un cygne/ insigne) para nadar na fila dos patos. 15 Mas há outra faceta no nome próprio, a de sua causa original, de letra, na qual encontramos o impossível de significar e o que resiste à fusão do amor narcisista. O nome como letra, traço de distinção, suporte mínimo e necessário à contagem que, independente do sentido, é o que distingue o ser. Seu campo não é o do desejo no amor, mas o do desejo no gozo. Se o nome próprio como um significante qualquer pode veicular pelas metáforas e metonímias algo do gozo do sentido, seu gozo mais próprio se dá, como aponta Saramago, na solidão inevitável do Um. O gozo da letra como objeto, aquilo que no Outro se vislumbra de mais fechado, inacessível, fora de alcance uma razão sem por quê. Sua causa difere da razão significante, do funcionamento inconsciente devido à barra com a 13 Miller, J. A. Los signos del goce. Buenos Aires, Paidós, 1998. 14 Lacan, J. Seminário 9 (1961), inédito. 15 Miller, J. A. Los signos del goce. Buenos Aires, Paidós, 1998. 7
qual Lacan sublinhou o sujeito banido do significado. Como letra, o nome próprio não tem uma razão sustentada pelo funcionamento. Sua razão é causa - opera como ressonância 16, na qual o traço distintivo do fonema já é uma escrita, como assinala Lacan em seu seminário sobre a identificação 17. O Sr. José, avesso do famoso autor, sofre de sua condição de Ninguém e, sintomaticamente, inventa um jogo particular, um hobby, com o qual se distrai da solidão e da monotonia. Aproveitando-se do fato de que, por razões históricas, é o único funcionário que ainda mora em um anexo da Conservatória, furtivamente, fora dos horários de expediente, ele rouba verbetes e os copia, compondo com essas cuidadosas cópias sua coleção. Esses verbetes são as cartas roubadas, les lettres vollées, do Sr. José. Na sua conservatória privada ele é o chefe, pois é ele que determina a sua tarefa. Inexoravelmente, redobra em espelho seu trabalho de copista, submetido ao Outro inconsciente, e compila os dados daqueles que têm o que ele não tem fama. Acrescenta aos verbetes recortes de jornais e revistas que tratam dessas pessoas, compondo assim dossiês de suas vidas. Para a coleção de José as pessoas podem ser famosas por boas ou más razões. É indiferente quem sejam, desde que tenham fama, e Saramago não se poupa ao enumerá-las para melhor destacar o Um do traço que as congrega: políticos ou generais, atores ou arquitetos, músicos ou jogadores de futebol, ciclistas ou escritores, especuladores ou bailarinas, assassinos ou banqueiros, burlões ou rainhas de beleza. Parte da diversão é poder cotejar as declarações desses famosos a respeito de dados de suas vidas que não correspondem aos registros jurídicos, misturando de forma engraçada as esferas do âmbito público e privado. 16 Attié, J., Raison et reson, Ornicar?digital, revue electronique multiligue de psychanalyse, Paris, nº 140, septembre 2000. 17 Lacan, J. Seminário 9 (1961), inédito. 8
O Sr. José, de posse dos documentos oficiais pode se divertir com a comédia da vida humana construída pela veracidade nem sempre fiel aos fatos atestados. François Regnault, em artigo sobre a verdade mentirosa e o verossímil, aponta no pensamento de Aristóteles, em A poética, a proximidade entre o que parece verdade e o possível; e entre o inusitado e o impossível: O geral é o tipo de coisa que um certo tipo de homem faz ou diz com veracidade, necessariamente [...]. O particular é o que faz Alcebíades, ou o que lhe acontece. No que concerne à comédia a questão é evidente: os poetas constroem sua história com a ajuda de fatos verossímeis, depois os sustentam com nomes tirados ao acaso. [...] Os trágicos, ao contrário se prendem a nomes atestados. E eis a razão: o possível é persuasivo; ou aquilo que ainda não aconteceu não se acredita que seja possível. Uma vez que tenha ocorrido, é evidente que é possível [...] 18 José Saramago, famoso e escritor, não precisa de nenhum herói para nos apresentar a vida comum e humana do Sr. José. Assim como tantos outros, o Sr. José sonha com o que não é, constrói seu castelo de cartas, lembrando de certa forma a alienação de Macabéa em A hora da estrela de Clarice Lispector. Os nomes próprios da coleção de José trabalham como significantes, são colocados à produção de sentido de um gozo que José distingue pelo traço fama. Os nomes são significantes e o significante fama é o traço eineinziger 18 Cf. Regnault, F. La vérité menteuse contre le vraisemblable, emrevue da la cause freudienne, Le vrai, le faux et le reste. Paris, Diffusion Navarin Seuil, 1994. p. 35. 9
Zug que sustenta seu Nome-do-Pai. 19 Esse é o registro da alienação pela qual o Sr. José busca a inscrição no Outro. De certa forma, fama inscreve o que causa o discurso, opera como o nominal do traço, orienta a série na busca do sentido e da construção de uma realidade compartilhada. O José Ninguém deseja o famoso que Um pai pudera ter sido. Porém, José Saramago questiona este traço para além do pai. Sua pergunta vai além do sentido de fama, pois leva o Sr. José a saltar fora do necessário de seu automatismo de repetição, de sua coleção na qual o sintoma não cessa de se escrever. E ele propõe esse salto com o avesso da fama, pelo furo da letra o desconhecido. Como Eric Laurent assinala, Lacan centra Lituraterre em torno de dois aspectos da função da letra: a letra que faz furo e a letra que faz objeto a. 20 O nome da mulher desconhecida Em uma de suas excursões noturnas a cata de informações sobre os nomes de sua coleção, o Sr. José traz, por acaso, entre os verbetes selecionados, um, cujo nome é de uma mulher. Seria de se esperar que esse nome intruso nada representasse para o Sr. José, lhe fosse indiferente, mas não é o que ocorre. O diálogo interno do Sr. José revela que ele está atordoado pelo efeito inexplicável que aquele nome de mulher tivera sobre ele: [...] por que é que não para de olhar para o verbete dessa mulher desconhecida, como se de repente ela tivesse mais importância que todos os outros, Precisamente por isso, meu caro senhor, porque é desconhecida. É pelo furo do sentido do significante fama que José pode passar 19 Freud, S. Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Obras completas, ESB, Vol. XVIII, Rio de Janeiro, Imago, 1969. 20 Laurent, E. La lettre volée et le vol sur la lettre, em Revue da la cause freudienne, Les paradigmes de la jouissance. Paris, Diffusion Navarin Seuil, 1999. 10
ao nome como objeto causa de desejo e gozo. Com o esvaziamento do sentido de fama se pode produzir algo de um sentido novo. A partir desse momento a história toma outro rumo diverso da via pela qual o sintoma do Sr. José automaticamente escrevia a fama no Outro ao mesmo tempo em que insistia na insignificância de José. O encontro com o nome da mulher desconhecida causa o encontro de José com outro nome desconhecida. Saramago usa essa expressão, a mulher desconhecida, como nome próprio dessa mulher. Outros personagens são também nomeados assim, pela contingência metonímica de tempo e espaço em que surgem na trama. A locução é transformada em nome próprio, derrubando o pouco sentido que a metonímia na qual surgiu lhe emprestara. Assim temos, além de a mulher desconhecida, a senhora do rés-do-chão direito, a mulher do autocarro, o conservador, o subchefe. Nomes comuns usados como nomes próprios e sequer marcados com a letra inicial maiúscula. Saramago institui nomes próprios, exceto o do Sr. José, segundo uma classificação que se detém no acaso do encontro e que os situa como o objeto metonímico. Laurent chama atenção à falsa evidência que leva à separação entre nomes próprios e comuns, pois eles podem trocam de posição entre si. Um nome comum pode servir de nome próprio e vice-versa, mas o nome próprio aponta o prolongamento e o limite da linguagem de um sistema classificatório em uso. Laurent destaca que: dizer que um nome é percebido como nome próprio quer dizer que ele se situa em um nível para além do qual nenhuma classificação se faz necessária. [...] O limite se encontra como a barra necessária sobre o A 21. 21 Laurent, E. Symptôme et nom propre, em Revue da la cause freudienne, Les maladies du nom propre. Paris, Diffusion Navarin Seuil, 1998. p.26. 11
Esse nome, a mulher desconhecida, opera para José como nome em sua face letra, significante signo do furo. Ela não cabe em sua contabilidade de fama, rompe com a série infinita de sua coleção. Passa a encarnar o impossível de José e a falta do A. Algo muda radicalmente no sintoma de José. Em vez do sintoma repetitivo em torno do Nome-do-Pai ele passa a ter o indecidível como sintoma a mulher, desconhecida, como sintoma. A partir dessa queda do seu sistema de classificação, José parte em busca da história dessa mulher que não pode ser encontrada nas revistas, nos jornais. Ele salta os muros do espaço da Conservatória e inicia uma busca cheia de peripécias pela cidade. Ele precisa saber quem é essa mulher desconhecida. Mais ainda ele já não pode se conformar com sua história feita de significantes como letras mortas o desconhecido do nome está do lado do objeto a, e como tal vivifica esse personagem. O Sr. José se apaixona pela mulher desconhecida. Ele que saber dela, mas também quer vê-la, ouvir sua voz, tocar nos objetos que ela toca. Ele a deseja em nome do gozo: em carne e osso. O espaço da Conservatória, de nomes em coleção, é como um cemitério para o novo amor do Sr. José. Ele abandona seu antigo amor à sua coleção e em uma busca febril se lança à procura do desconhecido dessa mulher. O nome fama, que se prestava como traço para sua série, sofre uma báscula. Algo cessa de não se escrever. O encontro contingencial com o nome dessa mulher permite a inscrição do traço desconhecido. O Sr. José se subjetiva em busca de seu objeto, e o mais alheio seu êxtimo é, na verdade, seu signo mais íntimo, sua condição de Sr. Ninguém. 12
A mulher impossível Como Saramago sublinha: O acaso não escolhe, propõe, foi o acaso que lhe trouxe a mulher desconhecida, só ao acaso compete ter voto nessa matéria. 22 Com essa argumentação José não tem escolha: é necessário saber sobre essa mulher, decifrá-la, tornála Uma e única entre todas as anônimas com as quais ele se depara em sua investigação. José encontra várias mulheres, jamais a mulher desconhecida. Esta lhe escapa sempre como Briseida a Aquiles na versão que Lacan propõe do paradoxo do espaço infinito de Zenão 23. A cada passo da investigação a mulher desconhecida está alhures. O espaço deixa de ser o intrincado de corredores da Conservatória. José faz incursões cheias de suspense à rua onde ela nascera, ao colégio onde estudara, interrogando e vivendo a cidade como diz Italo Calvino em As cidades invisíveis: De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. 24 Com sua caligrafia minuciosa de copista ele forja documentos que lhe outorgam direito a investigações e com eles entrevista os vizinhos. Complica-se em suas obrigações de funcionário público, chama atenção pelo desalinho e estado doentio com que se apresenta ao trabalho. Teme que descubram suas transgressões. Por fim descobre que ela está morta. Suicidou-se, recentemente, durante sua investigação. O acaso que permitiu o encontro de José com o nome de a mulher desconhecida se encaixa na lógica de Aristóteles. Ainda que não fosse necessário, era possível retirar entre os verbetes o de outra pessoa qualquer não famosa. Segundo essa lógica José pôde encontrá-la. 22 Saramago, J. Todos os nomes, São Paulo, Cia. das Letras, 1997. p.47. 23 Lacan, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1982. p.16. 24 Calvino, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. 13
Lacan pensa a contingência de forma diferente de Aristóteles. Para ele, a contingência é o que pode não se produzir. Segundo essa lógica o encontro de José com a mulher desconhecida pôde não se produzir pela via do significante fama, mas isso não quer dizer que seja possível encontrar A mulher. Como sublinha François Regnault, o real da teoria lacaniana, assimilado pelo impossível, não é um acaso particular do necessário, nem se situa entre o necessário e o possível. O real se opõe ao necessário e o possível 25. Nisto reside o trágico da procura de José. Ele poderia tê-la encontrado, era possível, mas não se deu. Teria sido mais verossímil, porém Saramago não se restringe ao cômico desse personagem ele aponta a busca inútil de um sujeito em seu ângulo mais trágico. O ápice se dá quando, reproduzindo suas buscas labirínticas, José se perde e pernoita nos confins do cemitério, a procura do túmulo de a mulher desconhecida. Ele já se resignou em jamais vê-la, conformou-se em entrar em seu apartamento e apenas tocar seus pertences. Ele quer pelo menos saber onde jaz seu corpo. Lá ele encontra um pastor que lhe confidencia que se distrai trocando as placas com os números dos túmulos. Portanto, o número do túmulo dela já não correspondia ao local onde seu corpo deveria estar enterrado. Pode-se ilustrar assim o que Laurent sublinha a partir de sua leitura de Lituraterre: a letra como litoral, a borda que separa a letra do saber. O saber se faz representar e é a letra o que vem se inscrever nesse lugar: Quando o sujeito não pode ser representado no Outro, quando o Outro não é mais o lugar onde ele se aliena, se inscreve, mas torna-se o deserto 25 Regnault, F. La vérité menteuse contre le vraisemblable, emrevue da la cause freudienne, Le vrai, le faux et le reste. Paris, Diffusion Navarin Seuil, 1994. 14
de acoisa, então o sujeito se agarra ao que seu ponto de amarração, o objeto a e a letra, diz Lacan, torna-se litoral. 26 E agora José? Lembrando o título do poema E agora José? 27 do poeta Carlos Drumond de Andrade, o auxiliar de escrita volta desanimado e desalentado ao seu quarto anexo à Conservatória. Toma um susto, pois encontra o conservador sentado à sua espera. Devido a todas as suas peripécias ele teme uma repreensão e logo se declara demissionário. O conservador, no entanto, lhe comunica que vem acompanhando sua investigação. Ele sabe da procura de José por a mulher desconhecida. À primeira vista pode-se até pensar que Saramago nos coloca diante de um Outro divino, consistente. O conservador sabe de tudo, é compreensivo para com José, perdoa-lhe os despropósitos. Mas será ele realmente a encarnação desse Outro que consola e resolve, de um sujeito todo saber? Ele encoraja José a perseverar em sua busca, a fazer um verbete novo para ela no qual não constasse sua morte. Seria uma fraude, exclama José aturdido ao que o conservador retruca: Sim, seria uma fraude, mas nada do que temos feito e dito, o senhor e eu, teria sentido se não a cometêssemos. O conservador acrescenta, antes de se retirar, que o registro de óbito dela está perdido dentro da Conservatória e que José pode procurá-lo e queimá-lo. Na verdade, o conservador porta uma inconsistência. No templo de dados da Conservatória a verdade mente, como Lacan mostra na vertente em que o simbólico produz 26 Laurent, E. La lettre volée et le vol sur la lettre, em Revue da la cause freudienne, Les paradigmes de la jouissance. Paris, Diffusion Navarin Seuil, 1999. 27 Drumond de Andrade, C. Obra Completa. 2 a Ed. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967. p. 130. 15
o semblante do real e cria [...] a pouca realidade, [...] que faz com que tudo que nos é permitido abordar reste enraizado na fantasia 28. O real do Sr. José, tanto personagem como autor, não está em oposição, não é exterior. Deduz-se de um litoral interior entre o sentido, o efeito de sentido e o lugar do gozo. É possível assinalar aí a solução que José Saramago dá ao seu romance para a presença na escrita do objeto. Um ponto no qual o desconhecido do nome é impossível de fazer saber, de criar sentido, o que não impede o autor, no entanto, de fabricar uma saída, um saber-fazer com esse ponto opaco tanto para si como para seu personagem. Como discurso o Outro se fragmenta, a verdade compartilhada se estilhaça. No entanto a letra, o nome e seu efeito de gozo continuam a guiar o Sr. José. O José da Conservatória, o Saramago escritor. Assim, conforme seu gesto de caligrafia, seu traço de pincel unário, o Sr. José retorna às vias labirínticas da Conservatória. Ele leva sua lanterna e o fio de Ariadne. Bibliografia: Arrivé, M. Lingüística e psicanálise. São Paulo: EDUSP, 1994. 28 Lacan, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1982. p.127 16
Attié, J., Raison et reson, Ornicar?digital, revue electronique multiligue de psychanalyse, Paris, nº 140, septembre 2000. Borges, J. L. La biblioteca de Babel, em Ficciones (1944), Obras completas. Buenos Aires: Emece editores, 1974. Drumond de Andrade, C. Obra Completa. 2 a Ed. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967. p. 130. Calvino, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. Freud, S. Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Obras completas, ESB, Vol. XVIII, Rio de Janeiro, Imago, 1969. Lacan, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1982. O seminário sobre A carta roubada (1955), Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed.,1998. Seminário 9 (1961), inédito. Lituraterre, em Ornicar?, revue du Champ Freudien, n.41, avril-juin, Paris, 1987. Laurent, E. La lettre volée et le vol sur la lettre, em Revue da la cause freudienne, Les paradigmes de la jouissance. Paris, Diffusion Navarin Seuil, 1999. Symptôme et nom propre, em Revue da la cause freudienne, Les maladies du nom propre. Paris, Diffusion Navarin Seuil, 1998. Lispector, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1997. Miller, J. A. Los signos del goce. Buenos Aires, Paidós, 1998. Regnault, F. La vérité menteuse contre le vraisemblable, emrevue da la cause freudienne, Le vrai, le faux et le reste. Paris, Diffusion Navarin Seuil, 1994. 17
Saramago, J. Todos os nomes, São Paulo, Cia. das Letras, 1997. O ano da morte de Ricardo Reis, São Paulo, Cia. das Letras, 1984. Site do autor, página da Web: http://stoat.shef.ac.uk:8080/gertrudes/saramago/index1.html Streitfeld, D. Translation, em The Washington Post, Sunday, January 21, Washington, 2001. 18