Inversão de papéis: o desemprego masculino e a violência contra a mulher na cidade de Vitória-ES. Alex Silva Ferrari 1 Maria Beatriz Nader 2 Na segunda metade do século XX, o Brasil foi palco do movimento feminista que buscou dar voz as demandas das mulheres. A partir da década de 1960 esse movimento lutou pelo reconhecimento da mulher nos espaços sociais, pela liberdade sexual e principalmente pela inserção das mulheres no mercado de trabalho. Dentro dessa agenda política, contudo, destaca-se a luta contra a violência doméstica que, aos poucos, foi se tornando bandeira do movimento nos planos político e social. Vários casos de assassinato de mulheres foram retratados pela mídia e impulsionaram essa luta. Um exemplo é o caso de Ângela Diniz, socialite que, no ano de 1976, foi assassinada por seu companheiro Doca Street. Esse episódio ficou marcado pela impunidade inicial do autor que, sob a alegação de defesa da honra foi inocentado em um primeiro julgamento. Inconformado com o tratamento que a lei dera ao assassino, o movimento de mulheres se articulou em campanhas pela valorização da vida da mulher e punição dos agressores e milhares de mulheres saíram às ruas clamando por justiça. Tal campanha resultou na condenação de Street em um segundo julgamento. Mas as feministas não limitaram a luta a esse episódio e continuaram chamando a atenção da sociedade civil para a situação da mulher vítima de violência. A década seguinte foi marcada pelas intensas discussões, passeatas clamando por políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. Fruto dessa luta, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) tornou-se a principal instituição pública no combate e repressão à violência contra da mulher. No ano de 1985, o estado do Espírito Santo passou a contar com uma unidade de DEAM-ES que funcionava na Superintendência da Polícia Civil, sendo transferida no ano de 2003 para um espaço físico independente e sob a designação de DEAM-Vitória. 1 Mestrando do programa de pós-graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, Brasil. 2 Professora Associada do Programa de pós-graduação mestrado e doutorado em História Social das relações Políticas da UFES. Vitória. Brasil.
Os boletins de Ocorrência da DEAM-Vitória, a partir de então tornou-se um manancial de informações sobre a violência de gênero ou não contra as mulheres e foram utilizados pelo Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência (LEG-PV) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), para realizar a pesquisa Violência em Vitória: mapeamento e perfil sócio-demográfico dos agressores e das mulheres que procuram a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher em Vitória (ES), do período de 2002 a 2010. No banco de dados resultante dessa pesquisa foi realizado um trabalho com o intuito de identificar a motivação da agressão que levou à denuncia de violência contra a mulher na DEAM-Vitória. É comum, nos relatos, encontrar-se a motivação imediata da agressão e não o que leva ao agressor a cometer o ato, assim como é comum constatar o baixo número de ocorrências que identificam o desemprego masculino como motivador da violência contra a mulher. No ano de 2002, para se ter ideia, apenas 18 das 1128 ocorrências identificam o desemprego como motivação para a agressão. Contudo, Saffioti (1999) afirma que o desemprego está diretamente relacionado ao aumento da violência. Tomando os Boletins de Ocorrência da DEAM/Vitória como parâmetro para a discussão pretendida, nos aproximamos da questão a partir da perspectiva do autor da agressão que se encontra em situação de desemprego. O número de ocorrências envolvendo agressores desempregados ou que não exerciam atividade remunerada é de 193, e as motivações declaradas são diversas. Nesta analise preliminar também constatamos que aproximadamente 75% dessas vítimas exercem algum tipo de atividade remunerada, ou seja, são elas que exercem a função de prover a família. O sustento da casa pela mulher muitas vezes denota incapacidade masculina de cumprir com sua obrigação e por esse motivo o desemprego passa a ser uma grande frustração que o homem tem de enfrentar, afirma Saffioti (1999). Infere-se que, nos casos onde as vítimas são as únicas a possuírem renda para contribuir com o orçamento doméstico, a problemática do desemprego é agravada na consciência desses homens. A partir desse panorama, o presente artigo pretende tratar da pesquisa, ainda em estágio inicial, junto ao Programa de Pós Graduação em História (PPGHIS) da UFES, que tem por objetivo identificar a inversão de papéis sociais entre homens e mulheres, decorrente do desemprego masculino, como motivador da violência contra a mulher. Serão analisados os
dados do ano de 2002, primeiro ano mapeado pelo LEG-PV, como base para exposição dos resultados preliminares do trabalho de pesquisa. Números e considerações iniciais Dos números registrados pela DEAM-Vitória, no ano de 2002, 193 casos envolvem agressores desempregados. No cruzamento dos dados com as informações sobre o grau de parentesco do autor para com a vítima temos o seguinte resultado: Quadro 1 Grau de parentesco do autor com a vítima: Grau de Parentesco Número de Casos Possui vínculo afetivo* 115 Vinculo afetivo rompido** 44 Familiares próximos*** 14 Filho 05 Conhecidos 04 Desconhecido 01 Outros 10 Total 193 *Entendemos vinculo afetivo somo sendo os seguintes casos: marido, companheiro e união estável. ** Entendemos vinculo afetivo rompido como sendo os seguintes casos: ex-marido, ex-companheiro e união estável rompida. *** Entendemos por familiares próximos como sendo os seguintes casos: pai, irmão, tio, sobrinho, filho, Fica claro que os 115 casos onde os autores possuem relação afetiva com a vítima, caracteriza um quadro de violência de gênero e conjugal. A violência de gênero, grosso modo, é aquela perpetrada a fim de estabelecer o status de dominação do agressor sobre a vítima, que pertence a uma determinada categoria de gênero como, por exemplo, mulheres, crianças e adolescentes (SAFFIOTI, 2001). E a violência conjugal [...] está associada à violência doméstica e é compreendida como violência de gênero, estando, sobretudo presente no cotidiano doméstico e conjugal das mulheres, mediante a definição do seu papel feminino na sociedade. (ALVES; DINIZ, 2005, p. 388) Ou seja, a violência perpetrada entre homens e mulheres que se relacionam e vivem sob um mesmo teto. Todavia, apenas estabelecer o grau de parentesco entre os envolvidos e constatar a violência conjugal como sendo a grande
maioria dos casos não é suficiente para determinar a inversão de papéis sociais como motivador da violência. Uma analise pouco mais aprofundada chama atenção para a situação dessas 115 vítimas no que tange a inserção delas no mercado de trabalho, e que pode ser observado na tabela a seguir: Quadro 2 Profissão da vítima Profissão da Vítima Número de ocorrências Exercem atividade remunerada 86 Do lar 28 Desempregada 01 Total 115 Em aproximadamente 74,7% dos casos as mulheres exerciam alguma atividade remunerada, ao contrário de seus parceiros. Esta situação contraria a lógica tradicional estabelecida no mundo do trabalho, apanágio masculino desde a Revolução Industrial que separou a unidade doméstica da unidade de produção e fez do homem provedor da família (BANDITER, 1993). A partir do final do século XIX e início do XX essa realidade muda, pois a educação e a inserção da mulher no mercado de trabalho formal se expandem, e no período pós 1960 o feminismo luta pelo reconhecimento da mulher como profissional (PERROT, 2008; PINSKY, 2012). Isso não significa que o trabalho feminino fora do lar não existia anteriormente, antes assumia caráter auxiliar e inferior, e como tal, possuía baixa remuneração (CARDOSO, 1980). As conquistas femininas no mercado de trabalho, não se dão sem que haja atrito com o mundo masculino. Ao longo desse processo é possível observar a resistência de vários grupos de homens que, ou temiam perder seus empregos para as mulheres, ou não aceitavam que suas esposas e filhas abandonassem seus papéis tradicionais para iniciarem uma carreira profissional. Para muitos, o trabalho da mulher é uma ameaça ao status quo do homem na sociedade, como podemos observar nesse depoimento colhido por Alves e Diniz (2005, p.390):
Homem casou e para ele a mulher tá trabalhando, mas ele é o cabeça da casa, ele é quem comanda, né? O homem é que tem que assumir, a gente não deve baixar as rédeas para a mulher, não... [...] eu procuro não demonstrar que preciso dela, exijo respeito [...]. Homem é para ser ajudado pela esposa na falta de alguma coisa, mas não para ficar na dependência dela... Ela diz que a gente se casou e é para essas coisas mesmo, um ajudar o outro, mas isto me incomoda porque ela, um dia, pode me jogar na cara, eu acho assim, né? O medo é este, eu vou me sentir muito humilhado, e homem não pode ser humilhado pela mulher. (H5) Esse pensamento é fruto de uma cultura masculina que tem suas bases no mundo do trabalho. O homem como chefe de família garante a dominação sobre os outros membros a partir da capacidade de prover o lar, sendo o trabalho remunerado a ferramenta que possibilita esta função. O trabalho passa então a reger a vida do homem, criando modelos de comportamento, como assinala Tolson (apud NOLASCO, 1995, p. 55) Os modelos de comportamento masculino gestos hábitos, tom de voz tornam-se instintivos, e a rotina de trabalho horários de atividades e de descanso configura um padrão de conjunto da vida cotidiana. Até a sexualidade de um homem acaba por ser regulada por esta disposição de base frente ao trabalho, cuja complexidade é agravada pela experiência do desemprego, quando toda a existência do homem é posta em crise. Estar desempregado, incapaz de prover a família é um duro golpe na identidade masculina, e pode ser encarado como um estigma a ser encoberto a fim de não sofrer sanções sociais de seus iguais sendo encarado como inferior por não se encaixar no que seria considerado normal em seu grupo de convivência (GOFFMAN, 1988). Esse estigma fica ainda mais latente quando a companheira assume o seu lugar e autoridade na família por ser a fonte de renda do lar, uma vez que a construção histórica da masculinidade está contida da ideia de se distanciar do que é feminino, e essa linha divisória estabelecida por esses dois mundos não deveria, em hipótese alguma, ser ultrapassada (BANDITER, 1993). Nos casos aqui analisados, a mulher passa a ser o único membro da família a exercer uma atividade produtora, antes função prioritariamente masculina, e ele fica sem função dentro da organização doméstica, já que está incapacitado de cumprir com seu papel de provedor.
A violência pode ser um dos caminhos escolhidos por esse homem para lidar com essa situação, uma vez que é legitimada culturalmente desde a época colonial como forma de punir e corrigir a mulher que se desviou de suas funções sociais (ALVEZ; DINIZ, 2005). Dessa forma, pelo uso da força o homem garantiria sua dominação sobre sua companheira, garantindo o seu status social e reafirmando sua identidade masculina, mesmo estando em situação de desemprego. Isso fica muito claro no relato da vítima registrado no boletim de número 688/02, uma balconista de 23 anos que afirma: que o autor está agressivo, pois eles estão passando por uma crise financeira e na data do fato ele a agrediu por causa do dinheiro que ela controla dentro de casa. Nesse caso, a motivação é claramente o desemprego e a inversão de papéis sociais, mas nesses 86 registros da DEAM-Vitória, nem sempre essa motivação é tão clara. É possível encontrar as mais diversas declarações acerca de quais seriam as motivações para a agressão, como pode ser observado na tabela a seguir: Quadro 3 Motivação da ocorrência Motivação Número de ocorrências Álcool 24 Ciúme 11 Financeira 06 Desemprego 05 Familiar 04 Álcool - Desemprego 03 Álcool - Drogas 02 Ciúme - Desemprego 02 Drogas 02 Familiar - Outros 02 Álcool - Ciúme - Drogas 01 Desemprego - Álcool 01 Desemprego - Outros 01 Desemprego - Financeira 01 Familiar - Financeira 01 Outros 23 Total 86
Do número de ocorrências os quais não se identifica uma motivação para o fato, de 23 no tal de 86, pode-se afirmar que, muitas vezes, encontrar casos que a frustração por não conseguir cumprir o seu papel social de homem e ser substituído pela mulher, pode ser uma das causas do ato de violência, pois está implícita no relato do fato. Por exemplo, no B.O. de número 1258/02, a vítima, uma auxiliar de serviços gerais de 40 anos, foi ameaçada por seu companheiro, 37 anos, com que se relacionava há 7 anos, relata que o autor tem um comportamento agressivo e que passou a ameaçar ela e os dois filhos dela, de outro relacionamento. Que ele diz que ele só os deixará em paz se ela se mudar da cidade. Mesmo quando a motivação apresentada é o uso de bebidas alcoólicas, ou qualquer outra substância química, o relato da vítima deixa claro que o desemprego do agressor teve forte influência nos acontecimentos narrados. Por exemplo, o boletim de número 197/02, onde a vítima, uma cabeleireira de 39 anos diz que foi agredida por um homem com quem se relacionava havia 2 anos, e ele está desempregado e bebendo muito, sendo esta a segunda denúncia que fez contra ele. Já os relatos que identificam apenas o ciúme como motivação, em todos eles a vítima sofreu ameaças ou violência devido a manifestação ou a tentativa de terminar o relacionamento, e elas não deixam claro se o desemprego do agressor é ou não é a motivação para o término da relação. Considerações finais Ao longo desse artigo nos ocupamos de apresentar os resultados iniciais de nossa pesquisa sobre a influência da inversão de papéis sociais, em decorrência do desemprego masculino, e a violência contra a mulher na cidade de Vitória - ES. Esse levantamento inicial possibilitou identificar a significativa presença nos registros da DEAM-Vitória de homens agressores, desempregados. Também observamos a predominância da dinâmica: autor desempregado e vítima exercendo função remunerada. O que fundamenta a inversão de função social entre o casal. Todavia, fatos sociais situam-se na longa duração, o que demanda um estudo mais aprofundado da questão a fim de elucidar a construção social desses fatos e explicá-los do ponto de vista histórico. Nas próximas etapas da pesquisa buscaremos a bibliografia
especializada no estudo do tecido social que constitui a relação homem, mulher, família e trabalho que, com certeza ajudarão no entendimento e defesa das ideias aqui apresentadas. Bibliografia ALVES, Sandra Lúcia Belo; DINIZ, Normélia Maria Freire."Eu digo não, ela diz sim": a violência conjugal no discurso masculino. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 58, n. 4, p. 387-392, jul./ago. 2005. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0034-71672005000400002&script=sci_arttext>. Acesso em: 4 abr. 2014. CARDOSO, Irede. Mulher e trabalho: discriminações e barreiras no mercado de trabalho. São Paulo: Cortez Editora, 1980. BANDITER, E. XY: sobre a identidade masculina. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988. NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1995 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2008. PINSKY, Carla Bassanezi. A era dos modelos flexíveis. In. Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: contexto, 2012. p. 513-543 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo Perspec, São Paulo, v.13, n.4, Dec. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s010288391999000400009&lng=en &nrm=iso>. accesso em 17 mar. 2014.. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos Pagu (16) 2001: pp. 115-136. Disponível em: www.pagu.unicamp.br