O PROVEDOR DE JUSTIÇA, AS PRISÕES

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Transcrição:

O PROVEDOR DE JUSTIÇA, AS PRISÕES E O SÉCULO XXI: DIÁRIO DE ALGUMAS VISITAS (II) RELATÓRIO DA VISITA AO 1 ESTABELECIMENTO PRISIONAL DE TIRES

Estabelecimento Prisional de Tires 4 de fevereiro de 2016 10h:45m O céu estava nublado e soprava um vento gélido. Foram curtos os minutos que, após a comunicação da minha chegada, passaram para entrar no estabelecimento prisional, onde fui prontamente recebido pela senhora diretora, Dra. Fátima Corte, e pelo chefe dos guardas prisionais. 2 I. O Estabelecimento Prisional de Tires, inaugurado no ano de 1953, é um complexo penitenciário composto por vários edifícios, autónomos entre si, que se distribuem ao longo de 34 hectares. Projeto do arquiteto Raul Rodrigues Lima, esta prisão obedece, assim, ao sistema pavilhonar e ostenta o estilo arquitetónico característico do Estado-Novo, mormente nos seus três pavilhões: o das preventivas (denominado Pavilhão 1), o das condenadas (designado Pavilhão 2) e um terceiro, ora encerrado. Destinado a albergar apenas pessoas do género feminino, contabilizam-se, no dia de hoje, 430 as reclusas que estão a cumprir uma pena de prisão concretamente determinada ou a medida cautelar de prisão preventiva. São de ambos os géneros, porém, aqueles que zelam pela segurança do estabelecimento penitenciário, sendo

17 os homens e 96 as mulheres algumas também ocupando cargos de chefia que compõem o corpo de guardas prisionais. II. Inicio a visita pela zona da portaria e conheço o seu responsável que me explica como se realizam as visitas no estabelecimento prisional. É-me mostrado o cubículo onde se procede à revista dos visitantes e uma sala de espera que é ampla, limpa, arejada e com vários pontos de entrada de luz natural. À sua entrada existe um mostruário para servir, concomitantemente, para afixação de informações e como obstáculo visual. Após passar pela sala de espera, observo a divisão onde dois excecionalmente três guardas prisionais recebem e registam os bens que serão, em momento posterior, entregues às reclusas. Ali pergunto pela quantidade de mantas que lhes são fornecidas, sendo informado de que são, por norma, duas. Em dias mais frios, disponibilizam-se, contudo, três cobertores para cada reclusa. Ao sair reparo, ainda, em uma cadeira de rodas que serve para uso de quem tem dificuldades locomotoras. 3 III. Seguimos, depois, para a creche. Pelo caminho passamos pela antiga oficina de tapetes de arraiolos, pelo edifício onde funciona a administração e, ao longe, pelos pavilhões de piso único que alojam as reclusas em regime aberto. A creche recebe, durante os dias úteis, os filhos das mulheres que ali se encontram em situação de reclusão que tenham idade superior a seis meses e inferior a três excecionalmente cinco anos. Por forma a fazer face às suas diferentes necessidades e capacidades, as crianças são divididas por três salas: uma para aquelas que têm até um ano, outra para os que já superaram aquele marco de vida e, ainda, uma outra para os mais crescidos.

Visito os seus sanitários, de dimensões adaptadas à altura dos seus utilizadores. Nesta divisão vislumbro, de igual modo, uma bancada que, dizem-me, serve de muda-fraldas. É-me, de seguida, apresentado o berçário, onde as atuais 15 crianças descansam após o almoço. Esta sala está ligeiramente escurecida e possui várias camas e colchões. Enquanto as crianças almoçam, troco algumas palavras com as funcionárias presentes. São duas educadoras e sete as reclusas que ali laboram seis como auxiliares e uma ocupando-se com a limpeza do espaço, sendo que estas não podem, todavia, ser mães das crianças que frequentam a creche. No que toca à sua formação, e diversamente do que sucedia no passado em que existia o curso de acompanhante de crianças, as auxiliares não carecem de especial habilitação para ali se ocuparem profissionalmente e podem contar, a todo o tempo, com o apoio das educadoras. Saliente-se, ainda, que o comportamento das crianças, mesmo em um espaço que sabemos ser de reclusão, manifesta um salutar alheamento quanto a este facto. De certa maneira, e sem querer entrar em reflexões redundantes, descabidas ou até insólitas neste contexto, nunca será demais salientar que o universo cognitivo, emocional e relacional das crianças de tenra idade pode ser equilibradamente construído mesmo dentro de circunstâncias adversas ou, até, inusitadas. Basta que haja sensibilidade, saber e comprometimento. 4 IV. Dirigimo-nos, seguidamente, para a cozinha. À porta deste edifício, encontrava-se a carrinha que transporta a comida, em caixas devidamente acondicionadas, para todo o estabelecimento penitenciário. Na preparação e confeção dos alimentos laboram reclusas e trabalhadores de uma empresa que saiu vencedora de um concurso nacional especificamente criado

para o efeito. Estas pessoas têm ao seu dispor uma parafernália de equipamentos que em muito se assemelha a uma cozinha profissional: grandes panelas, tabuleiros de generosas dimensões, compridas bancadas em inox, etc. Tudo com claro aspeto de limpo. Acedi ao armazém, um espaço arejado, apresentando sinais inequívocos de limpeza e com luz natural, onde se guardam alguns produtos alimentares, mas tão-só os suficientes para suprir as necessidades imediatas e não serem objeto de deterioração. O reforço para a ceia já estava preparado, devidamente embalado e etiquetado, junto a uma câmara frigorífica que acondicionava os lacticínios. Na divisão adjacente, estavam dispostas outras câmaras frigoríficas, todas elas identificando, com precisão, o seu conteúdo: cenouras, carne, peixe, frutas e legumes e, ainda, carne e peixe em descongelação para preparação próxima. V. A visita prosseguiu para um dos principais edifícios da prisão: o pavilhão das reclusas preventivas. Os pavilhões apresentam uma estrutura semelhante. São constituídos por três pisos, com linhas retas na sua configuração que se assemelha à letra «L». No piso térreo existe, à entrada, e junto da sala do chefe de pavilhão, a sala dos técnicos de educação e a sala para os advogados dialogarem, em privado, com as suas representadas. Esta função pode, se necessário, ser cumprida no refeitório que, por ausência de outro espaço, serve, de igual modo, de parlatório. Tendo como referente a área com maior comprimento, a zona prisional é composta por celas individuais, que se localizam no piso inferior, e, nos pisos superiores, por camaratas que alojam três reclusas, número que pode, em casos de sobrelotação, chegar a quatro. Para facilitar a sua deslocação ao refeitório/parlatório, as reclusas com dificuldades locomotoras, doentes e mais velhas são, por norma, acomodadas no primeiro piso. O mesmo sucede com as reclusas trabalhadoras. 5

Neste dia estavam ali instaladas 176 reclusas, cifra que se avizinha à lotação do pavilhão (180). Nem todas elas, porém, se encontravam a cumprir a medida cautelar de prisão preventiva, pois cerca de 40 reclusas que já possuíam, contra si, uma decisão condenatória transitada em julgado aguardavam transferência para o pavilhão dois, destinado a reclusas condenadas. Ainda no rés-do-chão observei a oficina de tapetes de arraiolos, apetrechada com uma mesa ampla e várias cadeiras, pelas quais se dispunham as obras em manufatura pelas sete reclusas presentes. VI. Depois de passar por uma porta gradeada, pintada de branco, subo ao segundo piso. Ali observo três reclusas em conversa na sala que serve de bar-cantina e, concomitantemente, de sala de convívio. É naquele espaço, provido de mesas e cadeiras, que as pessoas privadas da sua liberdade passam parte do seu tempo e, quando o bar se encontra aberto o que não era o caso no momento da visita, fazem as compras dos bens de que necessitam. 6 VII. Subo, em passo apressado, para o terceiro piso, onde visito a oficina que ali funciona. É um espaço suficientemente amplo e organizado, com pontuais entradas de luz natural, oriundas de janelas gradeadas. Nele estão dispostas, à direita, várias máquinas de costura industriais e, à esquerda, uma mesa, em redor da qual laboram algumas reclusas. A atividade que ali se desenvolve é, portanto, diferenciada, concretizando-se na confeção de acessórios e malas para empresas privadas e exteriores ao estabelecimento prisional. São mulheres na sua maioria jovens aquelas pessoas que, de modo atento, interromperam as suas tarefas para escutarem as breves palavras de incentivo mas não de circunstância que lhes dirigi.

VIII. Retorno ao andar intermédio. No entretanto sou informado, pela senhora diretora, de que a generalidade das pessoas que ali se encontram em reclusão possui algum tipo de ocupação (nomeadamente laboral e escolar), computando-se em 47 o número total de reclusas que estão inativas. É-me igualmente mencionado, como era já do meu conhecimento, que a maioria das reclusas que ali se encontra está condenada por crimes relacionados com o tráfico de estupefacientes. Neste piso é-me possibilitado o acesso à biblioteca. Esta consiste em uma sala, de dimensões razoáveis para o efeito, apetrechada com estantes recheadas de livros junto às paredes e mesas e cadeiras no centro. É, dizem-me, o resultado de um projeto que está a ser trabalhado com a Fundação Calouste Gulbenkian, por forma a se desenvolver um exemplo de biblioteca para as prisões. IX. Passo por uma porta gradeada e é-me facultado o acesso a uma camarata. As quatro reclusas que a ocupam estão presentes e, depois de ter sido pedida autorização, mostram-me as exíguas instalações. O espaço principal está ocupado por duas camas individuais, um beliche e pequenas mesas de apoio e cadeiras. Na parede oposta à porta, existe uma janela com gradeamento. Uma das reclusas que ocupa a camarata mostra-me o chuveiro e os sanitários, os quais estão providos de portas que proporcionam privacidade a quem está a usá-los. Observo, também, o armário, embutido na parede, onde as reclusas guardam os seus bens e que se encontra próximo da entrada da divisão. Ao sair, reparo que, em uma mesa, há fruta e pão. Não sendo prática generalizada no sistema prisional português, no Estabelecimento Prisional de Tires há uma certa condescendência em permitir que as reclusas possuam, nas suas celas, o que sobra das refeições. 7

X. Regresso ao piso inicial e entro no refeitório, impecavelmente limpo, para fazer a prova da refeição. No dia da visita, a ementa do almoço é composta por uma sopa de legumes que, não obstante estar bem quente, tinha demasiada fécula de batata. Mais do que legumes. Provo, de seguida, uma pequena porção daquele que é o prato principal: tortilha. Mostram-me, além disso, a opção de dieta (arroz com carne de vitela e cenoura) e o prato vegetariano (tortilha de legumes), ambos com bom aspeto. E, a ajuizar pelo vapor que emanavam quando destapados, mantinhamse suficientemente aquecidos. Enquanto me dirijo para as celas disciplinares, situadas no mesmo piso, pergunto quantas reclusas tomam, em simultâneo, as suas refeições, sendo imediatamente informado de que, via de regra, são aproximadamente 80 em cada turno, o que equivale, grosso modo, ao número de reclusas que estão alojadas por piso. Aberta que foi uma pesada porta metálica, acedo às celas disciplinares, vazias no momento. São duas pequenas divisões que se escondem, cada uma, por detrás de uma porta gradeada, pintada de branco. Vejo um maciço de betão, revestido com azulejo semelhante ao que cobre as paredes rosa, que serve, com o pedaço de esponja que o cobre, de cama. Existe, também, um lavatório, de cantos arredondados, e uma retrete, do tipo turca, ambos metálicos. Tendo em conta o objetivo a que se destinam, as celas disciplinares apresentam boas condições mas possuem uma característica que deve ser alterada com a maior brevidade possível: o gradeado da porta contém barras horizontais, o que coloca em causa a segurança das reclusas. Visito, com a autorização da sua ocupante, uma cela individual. Possui o mobiliário suficiente para permitir uma estada digna, com uma cama, uma mesa e uma cadeira. Examino, de igual modo, os sanitários e a porta que lhe oferece algum resguardo, não obstante a cela se destinar apenas a albergar uma pessoa. 8

XI. Seguimos para o pavilhão das condenadas. A minha visita é, neste edifício, muito breve, uma vez que já decorre, no refeitório, e sem quaisquer incidentes, o almoço das reclusas. XII. A visita prossegue, depois, para um outro edifício, estreado em 1999. Com um único piso, a denominada Unidade Educativa e Terapêutica alberga reclusas especialmente vulneráveis, mormente aquelas que são portadoras de patologias do foro psiquiátrico, sendo que estas em nada colidem com a sua responsabilidade penal. São, por exemplo, mulheres com profundos quadros depressivos. Esta unidade tem uma lotação prevista para 21 pessoas, número que não estava preenchido com as 19 reclusas presentes no dia de hoje. Acedo à sala de costura onde, na altura, se encontravam a laborar duas reclusas. Munida com máquinas e linhas, ali se fazem arranjos, bainhas e confeção de malas e chapéus em burel. Trabalhos que, note-se, são feitos para empresas do exterior. Entro, depois, em uma outra sala onde uma mesa se impõe, não só pelo seu tamanho o qual, em termos proporcionais com a divisão, é grande, mas, por sobre tudo, pela metódica organização das peças que, em cartão, são pacientemente juntas para formar os postais pop up representativos dos Painéis de São Vicente. Esta laboriosa tarefa é executada por uma reclusa que me comunica que está a concluir o ensino secundário, tendo realizado a sua formação escolar dentro dos muros da prisão. Permitem-me, de seguida, que observe três celas individuais. Se não fossem as portas de metal que lhe dão acesso e o gradeamento às janelas, aqueles espaços podiam muito bem ser um qualquer quarto em uma qualquer casa de família. Dotadas de uma casa de banho privativa, as celas estão decoradas de acordo com o 9

gosto das reclusas, com cortinas e roupa de cama colorida. Nas mesas estão expostos objetos pessoais, molduras de familiares, livros com que se ocupa o tempo. E, até, televisores. XIII. Encaminhamo-nos, posteriormente, para a denominada «Casa das Mães». É neste espaço que, desde o ano de 2000, se alojam as reclusas gestantes e progenitoras de crianças que, pela sua precoce idade (recordo, até três excecionalmente cinco anos), com elas ali permanecem. À data da minha visita, são 29 pessoas adultas e 23 infantes que ali temporariamente residem. As reclusas estão divididas por alas de acordo com a sua situação jurídico-penal (ala das preventivas e ala das condenadas) e pelo seu regime de reclusão (ala das reclusas mães em regime aberto). Atendendo à hora, dirigimo-nos ao refeitório, onde as reclusas tomavam o seu almoço. Tal como já me havia sido dito, a refeição que lhes era proporcionada era igual à que se serve à população reclusa dos pavilhões, sendo apenas diferente a quantidade que é fornecida. Na «Casa das Mães», os pratos são francamente mais fartos. Também na «Casa das Mães» o refeitório é um espaço limpo, arejado, com muita luz natural e muito asseado. Características que são comuns a outras divisões, como sejam, desde logo, as celas, que poderiam apelidar-se de individuais não fosse o facto de albergarem, em muitos casos, duas pessoas: mãe e filho(a). Por forma a fazer face às específicas necessidades de mães e crianças, as celas da «Casa das Mães» estão equipadas com o vulgar mobiliário de uma cela, ao qual acresce uma cama de criança subida para, deste modo, lhe proporcionar o acesso à janela. A preocupação com o bem-estar dos mais pequenos reflete-se, ainda, em outros pormenores, como sejam a colocação de fraldas de pano nas fechaduras das 10

portas das celas para reduzir o barulho que estas fazem a abrir e fechar e, destarte, diminuir o incómodo para as crianças que dormem. XIV. Quando foi criado, o Estabelecimento Prisional de Tires era administrado pela Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor, situação que se manteve até à sua transição para a tutela da Direção-Geral dos Serviços Prisionais, em 1980. Eram, pois, freiras as pessoas que zelavam pela ordem no seio da penitenciária que acolheu as reclusas da extinta «Cadeia das Mónicas», de Lisboa. Como a sua administração era religiosa, a (então) Cadeia Central de Mulheres, além dos três pavilhões de clausura, dispunha de uma capela e de um edifício com pequenos e modestos aposentos para as freiras. Este último está atualmente ocupado por alguns serviços. O que em tempos foram as celas das freiras são hoje os gabinetes de duas adjuntas da direção e dos funcionários da secção de pessoal, da contabilidade, do economato e da tesouraria, todos eles dispostos em redor do claustro. 11 XV. Aproxima-se o fim da minha visita, mas não sem antes conhecer os serviços clínicos do estabelecimento prisional. Este é um espaço higienizado, dotado de uma pequena sala de espera, salas de observação e farmácia, estando esta fechada, como facilmente se compreende. São diversas as especialidades que compõem a assistência médica que é prestada às reclusas: Clínica Geral (quinze horas semanais), Estomatologia (quatro horas semanais), Psicologia (vinte e uma horas semanais), Psiquiatria (quatro horas semanais) e Ginecologia (seis horas semanais). Diversamente do que sucede com as especialidades descritas, todas elas contratualizadas, existe também a assistência de um pediatra que, em regime de voluntariado, empresta, nas manhãs das terças-feiras, o seu saber e a sua experiência às crianças que ali se encontram. Em caso de

urgência, há sempre a possibilidade de recurso às instâncias do sistema nacional de saúde. É-me, do mesmo modo, comunicado, não obstante ser já do meu conhecimento, que o serviço de enfermagem está ao dispor da população reclusa das 8h:30m às 21h:00m, horário que se reduz em meia hora aos fins-de-semana, dias em que encerra às 20h:30m. XVI. Sempre que visito um estabelecimento prisional, ambiciono sentir o seu específico pulsar. Para melhor o compreender, ao longo da minha visita, converso, de forma reservada, com algumas pessoas com quem me vou cruzando. A persistente humidade que se faz sentir nas celas, a insuficiente quantidade e a diminuta qualidade das refeições fornecidas são exemplos de descontentamentos que a população reclusa me transmitiu. O facto de as roupas de cama serem lavadas apenas quinzenalmente foi, do mesmo modo, relatado como queixa, assim como o foram diversos problemas com a assistência médica, designadamente quanto a atrasos na marcação de consultas e no acompanhamento das reclusas doentes a instalações hospitalares. Foi-me, ainda, comunicado que as faturas atinentes a produtos adquiridos na prisão são passadas sem número de identificação fiscal, o que obstaculiza ao seu uso em sede de despesas na declaração sobre o rendimento das pessoas singulares, e, com ressalva de quem recebe dinheiro por meio de vale postal, não há informação sobre o saldo de cada reclusa. Não me detive, porém, somente com as pessoas que estão privadas da sua liberdade; também me interessei por saber daqueles que zelam pela segurança no interior da prisão. Os elementos do corpo de guardas prisionais com quem dialoguei confessaram-me, de igual jeito, alguns dissabores, mormente quanto às remunerações que auferem e que, pelas funções que executam, sentem ser 12

reduzidas, às dificuldades na progressão na carreira e ao congelamento dos índices remuneratórios. O Provedor de Justiça é um órgão do Estado que, no seio das competências que lhe estão legal e constitucionalmente atribuídas, tem o múnus de sentir o pulsar da comunidade em que se encontra e dos microcosmos que dela fazem parte, como sejam os diversos estabelecimentos penitenciários. Na sequência da visita ao Estabelecimento Prisional de Tires, registo o esforço que a direção, os guardas prisionais e demais funcionários empreendem quotidianamente para o tornar uma prisão próxima do ideal de reclusão, com respeito pelos direitos fundamentais de todos aqueles que compõe o universo penitenciário, sem prejuízo das reclamações que me chegaram. Estas são, em verdadeiro rigor, queixas que devem, com a maior brevidade possível, ser resolvidas, mormente aquela que se sustenta na não inscrição do número de identificação fiscal nas faturas atinentes aos bens comprados no estabelecimento prisional. Não posso, do mesmo modo, ignorar o desaproveitamento do terceiro pavilhão. Seja para albergar pessoas do género masculino eventualmente condenadas pela prática de pequenos crimes, seja para desafogar o número de reclusas que ocupam os outros dois pavilhões, é necessário que se pondere um outro destino para um edifício que foi objeto de obras recentes e que não pode, pela sobrelotação que se faz sentir no nosso sistema prisional, ficar votado ao abandono. O Provedor de Justiça não pode, de igual jeito, não sublinhar a urgente necessidade de se proceder à alteração do gradeamento das celas disciplinares. A existência de barras horizontais é um perigo permanente para a vida das pessoas que possam ali se encontrar e que, motivadas pelo isolamento, podem equacionar, como 13

alternativa, o suicídio. Importa, por isso, pensar, antes de mais, na segurança das reclusas que cumprem a sanção disciplinar de permanência em uma daquelas celas. 13h:00m Saí. O vento dera tréguas e o dia, invernoso de acordo com o calendário, apresentava-se primaveril. E, tal como quando entrei, era inexistente qualquer movimento no exterior do Estabelecimento Prisional de Tires. 14