TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL E PARQUE NACIONAL DO MONTE RORAIMA: A SOBREPOSIÇÃO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

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Transcrição:

EIXO TEMÁTICO: Ciências Sociais TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL E PARQUE NACIONAL DO MONTE RORAIMA: A SOBREPOSIÇÃO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Kelly Monaco Coletti 1 RESUMO: O presente trabalho propõe analisar o posicionamento do Supremo Tribunal Fede ral quanto a sobreposição de terras indígenas e unidades de conservação, a partir de sua decisão sobre o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e do Parque Nacional do Monte Roraima. O direito territorial indígena e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado possuem status de norma constitucional e merecem, portanto, compatibilidade. No caso sob análise, apesar de reconhecida a dupla afetação jurídica da área, foram estipuladas condicionantes ao exercício dos direitos territoriais dos povos indígenas que são reconhecidos enquanto originários pelo Texto Constitucional. Considerando que o manejo tradicional realizado por estes povos possibilita os elementos que se buscam preservar no campo ambiental, importante reconhecermos que os direitos indígenas e ambientais compõem estas áreas, devendo ser compatibilizados dentro dos parâmetros constitucionais e regulamentados juridicamente. Palavras-chave: Unidades de Conservação; Terras Indígenas; Supremo Tribunal Federal 1. INTRODUÇÃO A sobreposição de terras indígenas e unidades de conservação não fora ainda objeto de regulamentação legal. Esta lacuna jurídica resulta em incertezas no campo prático da gestão de territórios expostos a esta situação. Tendo em vista que os direitos indígenas, assim como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, possuem status de norma constitucional, de rigor reconhecermos sua compatibilidade e a dupla afetação jurídica das áreas sobrepostas para atender estes direitos. Neste sentido, nos propomos a analisar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão, a partir do julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que se sobrepõe ao Parque Nacional do Monte Roraima. Para adentrar a questão, trazemos apontamentos sobre a área exposta à sobreposição e uma breve análise dos dispositivos legais que asseguram os direitos territoriais indígenas e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A partir disso, buscamos demonstrar que estas áreas abarcam direitos que se compõe, carecendo de regulamentação capaz de garanti-los, valorizando os saberes tradicionais dos povos indígenas que possibilitam a manutenção dos elementos que se pretende preservar no campo ambiental. 1 Laboratório de Educação e Política Ambiental - Oca, ESALQ/USP.<kelly.coletti@hotmail.com>.

2. METODOLOGIA ISSN 2358-8012 O desenvolvimento do trabalho se iniciou pela análise do julgamento da Petição 3.388/RR, que buscou a nulidade do procedimento demarcatório da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Foram realizadas pesquisas bibliográficas e estudos de dispositivos que compõem o Texto Constitucional, bem como, de demais textos normativos do sistema jurídico nacional. 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO 3.1. TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL E O PARQUE NACIONAL DO MONTE RORAIMA A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, situada no nordeste do Estado de Roraima, abriga uma população de aproximadamente 21.300 pessoas, que se dividem em 05 povos distintos, sendo eles: Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana. Sua área está demarcada em 1.747.464 hectares, abrangendo os municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, e alcançando, ao norte, a fronteira existente entre Brasil, Venezuela e Guiana. Sua área equivale a 7,7% da área total do Estado de Roraima, situa-se integralmente em faixa de fronteira e sobrepõese ao Parque Nacional do Monte Roraima, unidade de conservação de proteção integral, que representa 6,72% da área da terra indígena. Os primeiros atos de seu procedimento demarcatório datam de 1917. Em 1919, o Serviço de Proteção ao Índio iniciou a demarcação física da área e verificou uma série de ocupações irregulares. Este procedimento demarcatório não foi concluído, sendo retomado apenas em 1977. Sua conclusão ocorreu em 2005, com a assinatura da portaria declaratória nº 534, e sua homologação, por decreto, pelo então Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva. Referido decreto determinou, em seu artigo 3º, que o Parque Nacional do Monte Roraima, criado pelo decreto nº 97.889/89 é bem público da União submetido a regime jurídico de dupla afetação, destinado à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos indígenas. Vale apontar que, para os povos da região, o Monte Roraima é berço da mitologia, sendo de fundamental importância para a manutenção de suas crenças. 3.2. OS DIREITOS INDÍGENAS E O DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO Além de encerrar o regime tutelar, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 231, reconheceu aos povos indígenas sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições, além do direito originário sobre suas terras tradicionais. Dessa maneira, preceituou garantias fundamentais para a sobrevivência física e cultural destes povos, posto que o conceito de povo está ligado às relações culturais que por sua vez se interdependem com o meio ambiente (MARÉS, 2012, p. 120).

O reconhecimento de seus direitos territoriais enquanto originários faz referência ao instituto do indigenato, fonte primária e congênita da posse territorial indígena. Dessa forma, reconhece-se que estes direitos são anteriores à própria criação do Estado brasileiro, às ocupações não-indígenas e diferem-se, portanto, da posse regulada pelo Código Civil (ARAÚJO, 2006), legitimando-se não pela titulação, mas pela ocupação (VILLARES, 2009) e persistindo mesmo que momentaneamente esbulhados (LOBO, 1996). A propriedade das terras indígenas é atribuída à União, de maneira vinculada ou reservada (SILVA, 1993), tendo como finalidade o uso exclusivo pelo povo indígena que a ocupa. No que se refere ao meio ambiente, em seu artigo 225, caput, o Texto determina que: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo às presentes e futuras gerações. Este direito configura-se enquanto transindividual. Isto porque é inerente a todas as pessoas, ao mesmo tempo, pertencendo à esfera de direitos fundamentais de cada um e, portanto, de uma coletividade indeterminada, o que o categoriza enquanto de interesse difuso (MACHADO, 2014). Para assegurar sua efetividade, o Texto determina que incumbe ao Poder Público definir, em todas as unidades da federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos. Estes espaços recebem o nome de Unidades de Conservação e são regulamentados pela Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC. Estas se dividem, inicialmente, em dois grandes grupos: as de proteção integral e as de uso sustentável. Aquelas têm como objetivo básico a preservação da natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos elementos naturais existentes, já, estas, buscam compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela destes elementos. É importante apontarmos que, embora com base no 6º do artigo 231 da Constituição, os atos de criação de uma unidade de conservação em terras indígenas sejam nulos se praticados depois de sua demarcação e extintos se praticados antes do ato declaratório, a incidência de áreas sobrepostas segundo estes parâmetros é muito elevada (MARÉS, 2012). Ocorre que a presença de povos indígenas em boa parte das unidades de conservação é anterior à sua criação, a qual se deu, muitas vezes, à revelia destes povos, passando a estabelecer uma série de restrições ao seu modo de vida tradicional, quando não inviabilizando sua permanência no local (LEITÃO, 2004). Contudo, nestes casos, o patrimônio ambiental que se pretende preservar é resultado da interação entre estes povos e os elementos naturais ali existentes (LEITÃO, 2004), que continuam existindo pela maneira como são manejados tradicionalmente. Enquanto uma Unidade de Conservação pode ser criada por manifestação de vontade do Poder Público ou por imposição de uma determinada situação, as terras indígenas, por se

tratarem de reconhecimento de um direito pré-existentes, retiram qualquer discricionariedade da Administração. Para regulamentar estas sobreposições, fora proposto pelo Instituto Socioambiental, quando da criação do SNUC, uma modalidade que as possibilitasse com amparo legal denominada Reserva Indígena de Recursos Naturais - RIRN. Uma unidade de conservação federal, criada por decreto presidencial, a partir da solicitação dos povos indígenas que detém o direito originário sobre a área a ser protegida dentro da Terra Indígena. A reclassificação da área como RIRN se daria após estudos realizados por grupos de trabalhos interinstitucionais que concluíssem pela possibilidade de coexistência da unidade de conservação e da terra indígena. Seu plano de manejo seria formulado e executado em conjunto pelos indígenas da área, pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, responsabilizando os indígenas pela gestão e podendo, estes, requisitar o apoio dos mesmos órgãos para proteção e fiscalização da área. Esta proposta não obteve o consenso necessário para sua aprovação e os casos de sobreposição continuam sem regulamentação legal, o que compromete a gestão dos territórios e o exercício dos direitos indígenas e ambientais, que ficam prejudicados pela falta de diálogo entre os órgãos gestores das unidades de conservação e os povos originários. 3.3. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A SOBREPOSIÇÃO DE DIREITOS O Supremo Tribunal Federal, no caso analisado, reconheceu a dupla afetação jurídica da área e a compatibilidade entre os direitos indígenas e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Contudo, estipulou condicionantes ao exercício dos direitos indígenas sobre o território exposto à sobreposição. No julgamento, determinou-se que o usufruto dos indígenas na área fica sob responsabilidade do ICMBio, órgão gestor das unidades de conservação federais; que este responde pela área sobreposta, com a participação dos povos indígenas locais, que devem ser ouvidos, levando-se em conta seus usos, costumes e tradições, podendo contar com a consultoria da Fundação Nacional do Índio FUNAI, e que o transito de visitantes e pesquisadores deve ser admitido na área sobreposta segundo as condições estipuladas pelo ICMBio. Ocorre que, desta maneira, o Supremo compromete a autonomia destes povos sobre seu território e desvaloriza o manejo feito de acordo com seus saberes tradicionais, o qual possibilita a manutenção dos elementos naturais que se buscam preservar ambientalmente. Dessa forma, seria necessário reconhecer a responsabilidade direta que estes povos possuem sobre seu território.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ISSN 2358-8012 De nossa análise, pudemos compreender que os direitos territoriais indígenas, assim como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, são contemplados pelo Texto Constitucional, devendo, portanto, serem compatibilizados. A falta de regulamentação legal para os casos de sobreposições de Terras Indígenas com Unidades de Conservação compromete a gestão das áreas expostas a esta situação. Deste modo, faz-se necessário suprir esta lacuna no campo jurídico. No julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que se sobrepõe ao Parque Nacional do Monte Roraima, o Supremo Tribunal Federal, apesar de reconhecer a dupla afetação jurídica da área e a compatibilidade dos direitos indígenas e ambientais, estabeleceu condicionantes aos direitos dos povos indígenas sobre seu território, de forma a prejudicar sua autonomia na área exposta a sobreposição. Assim, necessária a regulamentação jurídica destas áreas, reconhecendo o trabalho dos povos indígenas na conservação da biodiversidade do território nacional, atentando-se à composição de direitos nas áreas sobrepostas. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Ana Valéria. Povos Indígenas e a Lei dos Brancos : o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, LACED/Museu Nacional, 2006. 203 p. LEITÃO, Raimundo Sergio Barros. Superposição de leis e de vontades: Por que não se resolve o conflito entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação? In: FANY RICARDO (Org.). Terras Indígenas&Unidades; de Conservação da natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004. 17-23 p. LOBO, Luiz Felipe Bruno. Direito indigenista brasileiro: Subsídios à sua doutrina. São Paulo: LTR, 1996. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. 1407 p. MARÉS de SOUZA FILHO, Carlos Frederico. O renascer dos povos indígenas para o Direito. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2012. 212 p. SILVA, José Afonso da. Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. In SANTILLI, Juliana (Org.). Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1993. VILLARES, Luiz Fernando. Direito e povos indígenas. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2009. 350 p.