REALIDADES E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA PARA OS TICUNAS DA COMUNIDADE DO UMARIAÇU TABATINGA/AMAZONAS

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Transcrição:

Acta Latinoamericana de Matemática Educativa Vol. 0 REALIDADES E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA PARA OS TICUNAS DA COMUNIDADE DO UMARIAÇU TABATINGA/AMAZONAS Lucélida de Fátima Maia da Costa, José Camilo Ramos de Souza Universidade do Estado do Amazonas. UEA. (Brasil) celiamaia5@hotmail.com Campo de investigação: Etnomatemática. Nível educativo: superior. Palavras chave: aculturação, aprendizagem significativa, ensino de matemática, Ticunas Resumo O ensino no Brasil passa por mudanças, com a finalidade de melhorar a qualidade do processo educativo e conseqüentemente a aprendizagem. Esta situação está presente em todas as classes sociais, bem como nas comunidades indígenas. Dentre o problema de ensino, visualiza-se a situação da Matemática, ensinada nas comunidades indígenas. Neste caso trata-se da Escola Estadual Almirante Tamandaré, que se encontra dentro da reserva indígena ticuna do Umariaçu/ Tabatinga/ Amazonas. A escola não procura associar o conhecimento milenar matemático dos índios, em detrimento de um currículo dissociado da realidade desses estudantes. Neste trabalho, mostramos possibilidades de ensino, a ser oferecido aos estudantes ticunas com o intuito de viabilizar mudanças positivas rumo a uma evolução sistemática de seu próprio conhecimento matemático. Introdução O ensino da matemática é pauta de discussões em todo Brasil, comumente, voltada para a análise de novas metodologias e sua aplicabilidade. No entanto, não é perceptível, nestas discussões, preocupação com o ensino da matemática na escola indígena. No que se refere à educação indígena; pode-se dizer das mudanças e das transformações trazidas pela legislação, viabilizando a criação de leis mais favoráveis à educação diferenciada e específica para os povos indígenas. Ressalta-se, no entanto, que apesar da educação escolar indígena ser respaldada legalmente, quanto a sua especificidade, na prática, esbarra em entraves próprios do mundo dos não indígenas e, isso se evidencia quando se observa, por exemplo, a forma como a Matemática é ensinada aos estudantes da comunidade Ticuna do Umariaçu. Ensinar matemática não se resume a simples exigência de memorização de fórmulas prontas e acabadas e, muito menos a uma lista de exercícios que ajude o aluno a decorar passos de um manual, mas proporcionar ao estudante compreensão e sentido do que está sendo ensinado, principalmente no que diz respeito ao uso e aplicabilidade desses conhecimentos no seu cotidiano. Mas, muitas vezes, isso se torna uma tarefa geralmente difícil, pois o currículo de matemática, no ensino fundamental e no médio, está repleto de conteúdos de alto nível de abstração que não possuem ligação com a vida dos estudantes, dificultando, dessa forma, o trabalho do professor que freqüentemente não consegue desenvolver na sala de aula o método indutivo ou fazer experimentações. Esse fato, talvez reflita traços da sua própria formação, pois segundo Freire (1998, p.49) Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, na sala de aula [...] Esta dificuldade do ensino da Matemática que transcende a realidade brasileira, está evidente na realidade local da cidade de Tabatinga, principalmente na escola Estadual Almirante Tamandaré, localizada na comunidade Ticuna do Umariaçu II, reserva indígena ligada à cidade de Tabatinga/Amazonas. Esta escola não consegue conceber a realidade vivida por seu estudante, porque o conhecimento ensinado, de acordo com o programa do Estado, está 94

Análisis del currículum y propuestas para la enseñanza de las matemáticas dissociado do conhecimento aprendido pelo indígena junto aos membros da família e da própria comunidade. É importante ressaltar a não observância do conhecimento existente e repassado pelos mais velhos aos mais jovens, evidenciado nos trabalhos artesanais, vislumbrados apenas como objeto de arte na escola, ficando despercebida a riqueza matemática neles existente. Mostrando possibilidades de ensino Nesse contexto pontuamos alguns temas que poderiam ser explorados a partir desses ornamentos: Utilizando essa peneira, o professor poderia trabalhar a presença ou a ausência de simetria, noção de paralelismo, contagem e até medida de capacidade. Este cesto usado para guardar papéis, poderia ser utilizado na contextualização do cálculo de área, capacidade e volume de sólidos cilíndricos: + A partir desse tapete, há, por exemplo, a possibilidade de se trabalhar as noções de circunferência, círculo seus elementos (raio, diâmetro, corda) e sua área. A = r 95

Acta Latinoamericana de Matemática Educativa Vol. 0 A presença de triângulos na pintura dessa máscara é dominante gerando a oportunidade de usá-la no ensino de tipos e semelhança de triângulos, e até para o estudo do Teorema de Pitágoras: b c a a b c É importante lembrar que a educação de um povo é um fenômeno em constante desenvolvimento e transformação e que para compreendê-la é necessário examinar suas raízes e conhecer sua história, como diz Marrou (1965, p.36): Como representante de uma espécie biológica, o homem de tal sociedade, de tal meio de civilização, é filho do seu passado (é mesmo aqui que se tem direito de falar de uma herança dos caracteres adquiridos)!: as revoluções mais inovadoras não conseguem abolir toda essa herança [...]. Sendo assim, é de se esperar que o Ticuna reflita em todo o seu processo educacional escolar os conhecimentos adquiridos em suas origens e raízes culturais. Tais reflexos, são muitas vezes incompreendidos na escola não-indígena, principalmente, quando o ensino nessa escola mostra a Matemática como uma ferramenta de filtragem de lideranças, e que privilegia e reproduz apenas o conhecimento da linguagem simbólica, das generalizações e do método dedutivo, o que acarreta um processo de desvalorização do conhecimento trazido pelo ticuna para a escola e o enfraquecimento de sua própria identidade. Nesse sentido, Ubiratan D Ambrósio afirma que: Se isso pudesse ser identificado apenas como parte de um processo perverso de aculturação, por meio do qual se elimina a criatividade essencial ao ser (verbo) humano, eu diria que essa escolarização é uma farsa. Mas é pior, pois na farsa, uma vez terminado o espetáculo, tudo volta ao que era, ao passo que na educação o real é substituído por uma situação que é idealizada para satisfazer os objetivos do dominador. O aluno tem suas raízes culturais, parte de sua identidade, e, no processo, essas são eliminadas. Isso é evidenciado de maneira trágica, na educação indígena. O índio passa pelo processo educacional e não é mais índio, mas tampouco branco (D Ambrósio, 1996, p. 114). No processo de aprendizagem dessa Matemática, o ticuna começa a sofrer conflitos ocasionados pela prática educacional que lhe é imposta. As inquietações aqui apresentadas dizem respeito à aprendizagem matemática realizada pelos índios ticuna, que possuem ou possuíam sua própria Matemática e sua forma de aprender, como também de ensinar. Diante desta realidade, surgem indagações: que Matemática nós brancos temos para oferecer? Que Matemática queremos ter? Como e para que ensinar Matemática para os índios? Como facilitar a aprendizagem dessa ciência aos índios? O processo educacional, na maioria das vezes, no que se refere ao ensino da Matemática, é caracterizado pelo distanciamento do conteúdo oferecido em relação à realidade desse povo, assim como pela dificuldade de comunicação entre professores brancos e estudantes ticuna, 96

Análisis del currículum y propuestas para la enseñanza de las matemáticas inclusive no que se refere à língua. Reforça-se, assim, uma tendência mais geral de enfraquecimento da cultura dessa comunidade, incluindo uma possível perda de domínio de sua própria língua. Ressalta-se a importância de perceber como o conhecimento matemático é construído no seio dessas comunidades, para depois associar ao programa matemático produzido pelo branco.isto fica patente em relação à Matemática escolar ensinada nas escolas da comunidade que é resultado do pensamento do branco e não do índio, dificultando a aprendizagem, o valor, o sentido e a importância da Matemática para a vida do estudante indígena, que passa a conceber e construir novos saberes para poder fortalecer sua identidade cultural, a partir, do que lhe é ensinado na escola e do que é aprendido na convivência comunitária. Diante do conflito estabelecido no estudante, a partir do ensino de matemática, há de considerar a característica, o rigor e o formalismo da exigência da ciência exata, cabendo ao professor quebrar essa condição do ensino de fórmula para o ensino de contexto, sem perder de vista o conhecimento produzido na sociedade Ticuna. Dessa forma, a linguagem matemática utilizada em sala de aula é decisiva para a aprendizagem do estudante, como afirma Pais (00, p.1): [...] A formalização precipitada do saber escolar, por vezes, através de uma linguagem carregada de símbolos e códigos, se constitui em uma possível fonte de dificuldade para a aprendizagem. Logo, pode-se dizer que o ato de ensinar é estar provocando situações, instigando o estudante, para poder desencadear possibilidades de aprendizagem. Pressupõe-se que a linguagem, assim como todo o conhecimento trazido pelo estudante, servirá de ponto de partida para os trabalhos a serem desenvolvidos, mas essa preocupação, nem sempre é constante ao se tratar de estudante indígena, geralmente, ignora-se o seu conhecimento. Nesse sentido, D Ambrósio (1996, p.117) diz que: [...] isso se faz com povos, em especial com os indígenas, seja na linguagem, seja nos sistemas de conhecimento em geral, e particularmente na matemática. Sua língua é rotulada, inútil, sua religião torna-se crendice, sua arte e seus rituais são folklore, sua ciência e sua medicina são superstições e sua matemática é imprecisa e ineficiente, quando não inexistente.[...]. Saviani (1980, p.3), expressa-se sobre o ato de refletir, que é o ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar, vasculhar numa busca constante de significados. É examinar detidamente, prestar atenção, analisar com cuidado. Essa reflexão se faz necessária ao observar a dinâmica de trabalho escolar desenvolvida com os estudantes ticunas do Umariaçu, onde, nem os professores, nem os estudantes, percebem a causa e o momento em que o conhecimento matemático trazido pelo ticuna torna-se descartável ou é ignorado no processo de construção do conhecimento científico. Dessa forma, se faz necessário motivar e viabilizar a descoberta do porque o professor do Ensino Fundamental, insiste em não aproveitar a base matemática apresentada pelo ticuna para sistematização desse conhecimento, possibilitando assim, a interpretação e a atribuição de significado. A Matemática sem significado, sem contextualização, torna-se abstrata, imperceptível e conseqüentemente inútil à vida do estudante. A educação escolar deve se iniciar pela vivência do aluno, mas isso não significa que ela deva ser reduzida ao saber cotidiano. No caso da Matemática, consiste em partir do conhecimento dos números, das medidas e da geometria, contextualizados em situações próximas do aluno. 97

Acta Latinoamericana de Matemática Educativa Vol. 0 O desafio didático consiste em estruturar condições para que ocorra uma evolução desta situação inicial rumo aos conceitos previstos (Pais, 00, p.8). Muitos estudantes ticunas se destacam nos cálculos e geralmente são exímios desenhistas. A maioria tem aptidão para a arte (desenho, escultura e pintura) o que poderia ser explorado para o trabalho com a Geometria, por exemplo, mas geralmente o professor não explora tal aptidão e nem a relaciona com o conteúdo matemático a ser trabalhado. As atividades comerciais desenvolvidas dentro e fora da comunidade e o trabalho de transporte de pessoas de uma margem a outra do igarapé do Umariaçu, ou seja, do Umariaçu I ao Umariaçu II, também constituem elementos de ensino, mas que geralmente passam despercebidos nas aulas de matemática. Esses elementos podem ser ilustrados por exemplo, no preço cobrado pelos ticunas na travessia do igarapé, que varia de R$ 0,10 a R$ 0,50 por passageiro transportado. Foto: Lucélida Maia Estudantes ticuna transportando pessoas no igarapé do Umariaçu Nas margens desse igarapé também desenvolvem relações comerciais ao vender seus produtos, aceitam o dinheiro brasileiro (real) e o dinheiro colombiano (pesos), sem se confundirem com os valores, resolvem as operações matemáticas implícitas nas relações de câmbio, na necessidade de devolver o troco ao cliente e lidam sem grandes dificuldades com o sistema de pesos e medidas. Mas, ao chegar à escola, muitos têm dificuldades em trabalhar com frações, números decimais, e operações que envolvam o conhecimento do sistema métrico decimal. Ainda no contexto das relações desenvolvidas a partir do igarapé, é possível, numa simples observação do trânsito de pessoas nele existente, perceber a oportunidade de explorar o ensino de assuntos matemáticos, tais como: Arcos e Ângulos. Observe o arco formado pelos braços da menina: É possível também, visualizar o ângulo entre o remo e a canoa. Foto: Camilo Ramos 98

Análisis del currículum y propuestas para la enseñanza de las matemáticas Considerações finais A valorização da Matemática ticuna e a importância de se realizar pesquisas que revelem os conhecimentos matemáticos gerados, transmitidos e mantidos pelos índios é urgente, pois tais conhecimentos são ignorados ou simplesmente substituídos, nas escolas das aldeias, pela Matemática veiculada pelos livros didáticos vindo dos grandes centros urbanos. Muitos são os desafios quando se trata de educação matemática para os ticunas e de nada adianta substituir o professor não-indígena pelo indígena, se este continuar a desenvolver a mesma prática pedagógica, como é o caso de muitos que estão atuando nas séries iniciais do Ensino Fundamental, na Comunidade do Umariaçu. Essa comunidade, assim como as outras onde as populações indígenas estão presentes constituem um grande campo de estudos que pode revelar conhecimentos matemáticos próprios que poderiam servir de base para a estruturação escolar da Matemática a ser ensinada para esses estudantes. É nesse sentido, que acreditamos na valorização do ensino da Matemática como possibilidade de crescimento intelectual útil para o índio, não pelo rigor científico da disciplina, mas, pelo respeito ao conhecimento do estudante ticuna na reconstrução de seus saberes e na implementação de sua visão de cidadão no mundo. Referências bibliográficas Brasil (1998). Ministério da Cultura e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais PCN. Matemática 5ª à 8ª séries. Brasília: MEC. Brasil (1998). Ministério da Cultura e do Desporto. Referencial Curricular Nacional para as escolas indígenas RCN. Matemática. Brasília: MEC/SEF. D Ambrósio, U. (1996). Educação Matemática: Da teoria à prática. São Paulo: Papirus. D Ambrósio, U. (1998). Etnomatemática: Arte ou técnica de explicar ou conhecer. São Paulo: Ática. Freire, Paulo. (1998). Pedagogia da Autonomia: sabres necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. Marrou, H. I. (1965). Historia de la educación en la antigüedad. Trad. José Ramón Mayo. São Paulo: Herder. Pais, L. C. (00). Didática da Matemática: uma análise da influência francesa.. ed. Belo Horizonte: Autêntica. Saviani, D. (1980). Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez. 99