Honorè de Balzac: O Pensamento histórico e a História Eurimar Nogueira Garcia 1



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Transcrição:

Honorè de Balzac: O Pensamento histórico e a História Eurimar Nogueira Garcia 1 Resumo: Este artigo, busca analisar como o pensamento a ficção de Honorè de Balzac se aproximava e se distanciava das concepções de história compartilhadas pelos historiadores de seu contexto histórico. Para isso toma-se como fonte principal os romances balzaquianos O médico rural, O cura da aldeia e Os camponeses, escritos nas décadas de 1830 e 1840, e o texto L Avant propos de la Comédie humaine, escrito por Balzac em 1842. Trata-se de buscar aproximações e distanciamentos entre a história e a ficção. Palavras-chave: Honorè de Balzac. Ficção. História. Introdução: Neste artigo tento estabelecer uma análise voltada para a relação do romancista oitocentista francês Honorè de Balzac com o pensamento histórico da primeira metade do século XIX, considerando sua trajetória pessoal, e as ideias contidas nos volumes XIII e XIV da Comédia humana, principalmente nos romances O Médico Rural, O Cura da Aldeia e Os Camponeses, todos escritos nas décadas de 1830 e 1840, e em alguns outros escritos como o L Avant-propos de la Comédie humaine publicado em julho de 1842. O objetivo central é perceber as peculiaridades do pensamento de Balzac no que diz respeito à sua concepção de história e as aproximações e distanciamentos que apresenta em relação à história e aos historiadores de seu contexto histórico. Se a perspectiva da pesquisa é dar voz ao ator histórico, pergunta-se: Falar de pensamento histórico 2 e sentido histórico em Honorè de Balzac significa impor um problema sobre esse atorautor? Significa objetivá-lo e buscar em seu pensamento questões com o qual não estava preocupado? Parece que não. Tratar essa problemática em Balzac é, ao contrário do que se levanta nas questões colocadas, enfatizar sua própria voz, é considerar um ponto extremamente relevante para o romancista e para seus romances; é atentar para características muito próprias de seu pensamento, afinal de contas Balzac se autodenominava, além de muitas outras coisas, historiador. Se é assim, então parece que, levantando essas questões, o diálogo é possível. Para Jörn Rüsen (2010), em Razão histórica, a existência de sentido histórico exige três condições básicas: uma formal (a estrutura de uma história), uma material (a experiência do passado), e outra funcional (a orientação da vida humana prática). Partindo dessa noção de 1 Artigo escrito a partir de monografia defendida no curso de História da Unidade de Goiás, e de mestrado em andamento no curso de História da UFG. 2 Como nos ensina Jörn Rüsen (2010), em Razão Histórica, pensamento histórico não significa, necessariamente, um pensamento criado e transmitido pela historiografia ou pela ciência da história. Isso fica claro no momento em que ele menciona duas categorias de pensamento histórico: um não especificamente científico, e outro especificamente científico. 61

sentido histórico, parece sim ser possível ver na escrita ficcional da Comédia Humana uma produção de sentido histórico. Mesmo sendo constituída por uma série de romances, novelas e contos, e sendo impossível estabelecer uma sucessão temporal que esses escritos representariam, isto é, um começo, meio e fim, ela possui a estrutura de uma história. Isso, pelo fato de que, independentemente de sua organização interna, que romance é qual ano, ela tem a pretensão de ser a narrativa de um tempo, a época em que Balzac viveu, a primeira metade do século XIX. Essa pretensão de unidade da obra, estabelecida pela referência a um tempo histórico determinado, Balzac a manifesta por duas vezes no L Avant Propos. Primeiro, na crítica que faz a Walter Scott, por sua possível falta de unidade. Depois quando apresenta seu projeto pessoal: Avec beaucoup de patience et de courage, je réaliserais, sur la France au dix-neuvième siècle, ce livre que nous regrettons tous, que Rome, Athènes, Tyr, Memphis, la Perse, l'inde ne nous ont malheureusement pas laissé sur leurs civilisations. (...) (BALZAC, 1842, pg.06) Então, sua obra tem sim a estrutura de uma história, desde que não se entenda por isso uma narrativa linear de um determinado processo histórico, mas sim uma narrativa, em forma de ficção, marcadas por idas e vindas nos tempos de um determinado processo histórico (o da França da Restauração e da Monarquia de Julho). A Comédia Humana é repleta de experiência do passado, por mais que seja a experiência de um passado muito próximo de sua constituição, de um tempo que quase se confunde com o presente da escrita. Um passado inserido dentro da época de seu autor. Sendo assim, Balzac se apresenta como grande testemunha do que conta de maneira ficcionalizada. Também não resta dúvida de que A Comédia Humana possuiu e possui uma função de orientação da vida humana prática. Isso fica explícito na obra de Judith-Lyon-Caen (2006), La Lecture e et la Vie, onde, embasada nos estudos que realizou das cartas endereçadas a romancistas do tempo de Balzac, diz que os romances desse tempo, incluindo os do próprio Balzac, tinham, em consequência da força e do grau de verdade atribuídos pelos leitores, um papel importantíssimo na construção de si daqueles leitores, ou seja, ao se reconhecerem em determinadas personagens ou situações tomavam o romance como espelho e moldavam a imagem de si a partir daquelas leituras. Dito isso, parece sim ser possível ver em A Comédia Humana a presença do que Rüsen (2010) define como sentido histórico, haja vista que a obra apresenta estrutura de uma história, contém a experiência do passado, e desempenhou a função de orientação da vida humana prática. Mas qual o caminho percorrido por Balzac que o aproximaria do caminho da produção de um sentido histórico? Em primeiro lugar, o interesse de Balzac por um tipo de pensamento histórico parece ter brotado muito cedo e de maneira muito forte. Interesse que podia ser percebido quando ele ainda era um aluno comum do Collège de Vendôme. Graham Robb (1995), autor de Balzac, uma biografia, afirma que aos dez anos de idade e influenciado pelo romance histórico de Marmontel, Lês incas (1777), Balzac produziu um poema épico de um verso só: Ô 62

Inca! Ô roi infortuné et malheureux! (Ó inca! Ó rei infortunado e infeliz!). Interesse despertado pelos caminhos da literatura: (...)Mesmo antes de ir para Vendôme ele (Balzac) lia por horas a fio: histórias de aventuras como Robinson Crusoe ou A Ilíada, empolgantes relatos das vitórias napoleônicas e evidentemente a Bíblia, sobre a qual seu pai redigira uma série de anotações com o objetivo de escrever uma história dos hebreus. (ROBB, 1995, pg. 30). Junto com essa literatura, tinha-se ainda o toque de uma escrita especificamente historiográfica: como presente pelo seu mérito em prosa latina, ganhou do Colégio a Histoire de Charles XII de Voltaire. Desta maneira, o caminho do conhecimento histórico fora aberto a Balzac por leituras diversas, mesmo antes de ler Marmontel. Pela intermediação da imaginação alheia, Balzac também imaginava e reconstruía os diversos passados, às vezes reescrevendo-os. Observar a literatura como desbravadora dos caminhos do pensamento histórico na vida de Balzac, exige outro destaque importante: a relevância de Walter Scott nesse processo. As fantasias da infância e juventude de Balzac foram povoadas por leituras de obras como Robinson Crusoé, L antiquaire, Ivanhoë, La fiancée de Lammermoor e Les aventures de Nigel. A profunda ligação de Balzac com os romances de Walter Scott não ficou apenas nas aventuras da juventude. Paula Caudas Fratinni (2010), em sua dissertação Walter Scott e Balzac: Romancistas da história, destaca a admiração explícita que Balzac tinha por Scott. Para Fratinni (2010), o princípio organizador dos projetos literários de ambos está relacionado a um desejo de história. A representação histórica seria o alicerce de suas ficções, e, essa nova percepção histórica seria fruto de mudanças profundas, causadas pela Revolução Francesa e pelas guerras napoleônicas. Ela afirma ainda que, foi o olhar de historiador presente na narrativa scottiana, que permitiu a Balzac revelar e explicar as contradições da sociedade francesa do período da Restauração. No L Avant-propos, Balzac afirma que Scott apresenta o espírito dos tempos antigos em uma escrita que reúne a um só tempo o drama, o diálogo, o retrato, a paisagem, e a descrição, mesclando o maravilhoso e o verdadeiro. Também destaca a relevância de Scott para a literatura mundial, e, principalmente para a elaboração de seus romances, haja vista que a leitura dos romances scottianos mostrou-lhe caminhos e possibilidades que antes pareciam obscuros e confusos: Mais comment rendre intéressant le drame à trois ou quatre mille personnages que présente une Société?(...) Si je concevais l'importance et la poésie de cette histoire du coeur humain, je ne voyais aucun moyen d'exécution; car, jusqu'à notre époque, les plus célèbres conteurs avaient dépensé leur talent à créer un ou deux personnages typiques, à peindre une face de la vie. Ce fut avec cette pensée que je lus les oeuvres de Walter Scott. Walter Scott, ce trouveur (trouvère) moderne, imprimait alors une allure gigantesque à un genre de composition injustement appelé secondaire. (BALZAC, 1842, pg. 04) 63

A riqueza da imaginação e a valorização dos documentos históricos são pontos que, para Paulo Rónai (1999) em A vida de Balzac, fazem de Balzac um verdadeiro discípulo de Walter Scott, mas com uma importante diferença: Por outro lado, em oposição a Scott atraído pelas épocas mais remotas da história nacional Balzac logo de início escolhe um passado muito próximo, contíguo ao seu próprio tempo. No conjunto de sua obra, o romance histórico constituiria uma exceção, pois o romancista se compenetra cada vez mais de que sua tarefa consiste em escrever a história dos costumes da sociedade francesa de seu tempo. (RÓNAI, 1999, pg. 57) No despertar desse interesse pelo pensamento histórico, Balzac teve a contribuição, além de livros e de seus autores, de pessoas mais próximas de si. Robb (1995) destaca três jovens professores que lecionaram para Balzac na Sorbonne entre 1816 e 1818. O primeiro, Guizot, lecionava história moderna, o outro, Victor Cousin, ensinava filosofia, mas com um aguçado senso de curiosidade e imaginação histórica. Robb (1995) cita uma fala de Balzac sobre as aulas de Cousin no Museu de História Natural, onde o via: (...) reconstruindo mundos a partir de ossos embranquecidos, reerguendo cidades a partir de dentes, como Cadmo, repovoando mil florestas com todas as maravilhas da zoologia. (1995, pg. 60). O terceiro, e o mais admirado por Balzac, foi Villemain, um professor de literatura com fortes laços com o conhecimento histórico. Laços evidenciados em Histoire de Cromwell, uma obra de história moderna cheia de paródias: Cromwell seria Napoleão; Carlos I, Luis XVI. Professores de áreas distintas, mas que certamente aguçaram e intensificaram a relação de Balzac com o conhecimento histórico. Assim como seu professor, Cousin, Balzac também se voltou para o tempo de Cromwell, na tragédia Cromwell, concluída em 1820 com 1906 versos. Quatro anos depois de concluir Cromwell Balzac escreveria Histoire impartiale des jésuites, obra que, de acordo com Robb (1995), não cumpre com a promessa de seu título, a imparcialidade, pois possivelmente fora encomendada por um legitimista, e era capaz de enfurecer qualquer liberal autêntico. Para escrever essas obras, e outras posteriores, Balzac passou a se dedicar a uma atividade essencial ao conhecimento histórico, a pesquisa junto às fontes do passado. Sobre isso Robb(1995) diz: (...) A pesquisa histórica e os estudos pseudo estatísticos da vida moderna podem ser vistos como o assentamento de (seus) alicerces literários. (...) (pg. 125). Rónai (1999) diz que, na tentativa de escrever sobre a insurreição dos Chouans, Balzac foi em busca de documentação na Bretanha: A lembrança da insurreição ainda estava viva: pôs-se a procurar informações, a recolher o testemunho de pessoas idosas, a anotar tudo e voltou a Paris com o manuscrito quase pronto do primeiro romance de verdade que sairia de sua pena e que não hesitaria mais em assinar: Le Dernier ou la Bretagne en 1800. (RÓNI, 1999, pg.56) Essa pesquisa, a respeito da insurreição dos Chouans, também é relatada por Robb(1995): Sua pesquisa histórica revelara alguns detalhes curiosos sobre os levantes ocorridos no oeste 64

entre 1793 e 1800, quando guerrilheiros apoiados pelos monarquistas se insurgiram contra a nova república. (pg. 153) A busca e a pesquisa por informações do passado aconteciam sempre que era possível. Robb (1995) fala das longas conversas que Balzac mantinha com Mademoiselle de Rougemont, na busca de melhor conhecer a figura de Beaumarchais, criador de Fígaro, e a época em que viveu. Assim, Balzac coletava as experiências do passado e as metamorfoseava em seus romances. Parece claro então que, seja para produzir suas primeiras obras, a peça de teatro e a história dos jesuítas, ou toda a série romanesca e ficcional que viria posteriormente culminar com a monumental A Comédia Humana, a pesquisa antropológica, praticada no cotidiano do autor, na atenta observação que sempre fazia de toda a cultura da sociedade de seu tempo, e histórica, praticada em suas idas a arquivos, a Bretanha para ouvir os velhos que viram o levante monarquista e ao sentar-se ao lado de uma nova vizinha para ouvi-la dizer sobre um teatrólogo que morrera no ano em que tinha nascido, era importantíssima. Compreender isso significa perceber que, o pensamento histórico que Balzac visava produzir, mesmo que na forma de ficção, era de um tipo fortemente relacionado com um pensamento histórico especificamente científico. Significa ver seus romances brotando em um contexto de cientificização do conhecimento histórico, e diretamente ligados a algumas das forças que regiam essa mesma cientificização, ou seja, a valorização da empiria e da verdade do conhecimento. Balzac examinando paciente e minuciosamente os principais períodos da história da França! Uma história social, uma recriação do espírito da época, costumes em ação. É isso que, de acordo com Robb (1995), pretendia fazer em Histoire de France pittoresque, obra que acabou não escrevendo. Balzac na condição de historiador é um fato aceito por grande parte dos intelectuais que o leram. Rónai afirma que: (...) Este belo título- o de historiador- nunca lhe foi contestado pelos intelectuais da esquerda. O próprio Marx lia-o com entusiasmo, e Engels prestou-lhe homenagem neste significativo trecho de carta. (1999, pg.68) Na sequência, cita os rasgados elogios de Engels, dizendo que A Comédia Humana é a história mais maravilhosamente realista da sociedade francesa. Mesmo quando é colocado na condição de romancista, como faz Carlo Guinzburg em Os fios e os rastros, Balzac é, de alguma maneira, relacionado com a história: Foi preciso um século para que os historiadores começassem a aceitar o desafio lançado pelos grandes romancistas do século XIX de Balzac a Manzoni, de Stendhal a Tolstoi enfrentando campos de pesquisa anteriormente desdenhados com a ajuda de modelos explicativos mais sutis e complexos que os tradicionais. (2007, pg.326) O desafio lançado por Balzac e outros grandes romancistas do século XIX à história, seria o tratamento da vida privada e dos costumes em suas narrativas. Balzac via suas tramas como preenchimento dessa lacuna deixada pela historiografia francesa. Essa lacuna, ele via não só na historiografia de seu país, pois diz na introdução da Comédia Humana que também sentia falta de 65

análises dos atos da vida cotidiana, da vida individual, secretos ou públicos, e dos costumes, entre os indianos, atenienses, romanos e persas: (...) Je arriver à écrire l'histoire oubliée par tant d'historiens, celle des moeurs. (1842, pg. 06) Na introdução de Os Camponeses, publicada em 1954 pela editora Globo, Rónai diz que Balzac se considerava um historiador de costumes. Relacionado a isso temos o fato de que a Comédia Humana foi dividida por Balzac em três partes, Études de moeurs, Études philosophiques, e Études analytiques, sendo a maior delas, a dos estudos de costumes, subdividida em seis cenas (scènes). Balzac e o conceito de história Ao saber que Balzac se dizia historiador de costumes, uma questão se faz urgente: o que Balzac entendia por história? Em primeiro lugar, parece entender ser um conhecimento do passado variável de acordo com duas perspectivas principais, a história dos costumes, a que diz praticar, e a história dos fatos, uma história propriamente dita. Rónai (1954) cita um trecho em que Balzac chega a teorizar sobre essa diferença: (...)O historiador de costumes obedece a leis mais duras do que as que regem o historiador de fatos; aquele deve tornar tudo provável, até o verdadeiro, ao passo que, no domínio da história propriamente dita, o impossível é justificado pela razão de ter acontecido. (BALZAC apud RÓNAI, 1954, pg. 10). Aqui, apesar de dizer que um historiador deve obedecer a leis mais duras que outro, haja vista que, o que comunica não é um acontecimento de domínio público, o ponto em que comum é que ambos devem obedecer a leis, mais ou menos duras. Então historia seria um tipo de conhecimento do passado, produzido de maneira variada, de acordo com duas perspectivas, em que a regra comum seria a obediência a determinadas leis. Uma das leis que Balzac apresenta para a história é a oposição ao paradigma clássico, presente em muitos romances, e defendido por muitos críticos de sua época, de idealização do belo. A história deve ter por lei, ser aquilo foi. Uma narrativa que se paute por transmitir os costumes ou os acontecimentos tal qual foram ou se passaram, como é declarado no L Avantpropos : (...) L'histoire n'a pas pour loi, comme le roman, de tendre vers le beau idéal. L'histoire est ou devrait être ce qu'elle fut; (...) (1842, pg. 10) Essa lei também pode ser encontrada em outra introdução de A Comédia humana, onde Balzac volta a enfatizar que a história deve ser escrita com o máximo de imparcialidade, considerando as classes sociais em pé de igualdade, aniquilando as posições pessoais do historiador, suas paixões e sua subjetividade, em busca de uma verdade que, por sua força de alcançar o real, alcança tons dramáticos: Não esperem paixão; nem por isso a verdade será menos dramática. De resto, o historiador jamais deve esquecer que sua missão consiste em dar a cada um a sua parte: o rico e o desgraçado são iguais perante sua pena; para ele o camponês tem a grandeza de suas misérias, como o rico a pequenez de seus ridículos. (...) (BALZAC, 1954, pg. 32) 66

A segunda lei que Balzac define para a história, é a valorização da paixão humana, no sentido de que, a escrita deve dar espaço às ações onde ela esteve presente, sem implicar que o historiador deva escrever apaixonadamente. Apresenta essa lei, depois de censurar Walter Scott e o tratamento que dispensa às mulheres. Influenciado pelo protestantismo, Scott teria criado um modelo cismático, em que é negado a possibilidade do perdão ao pecado feminino, e logo uma forte aniquilação e ocultamento das paixões. Se a inexistência da paixão significaria a inutilidade da história, pode-se depreender que uma história que não tenha espaço para as paixões humanas também seria inútil: (...) La passion est toute l'humanité. Sans elle, la religion, l'histoire, le roman, l'art seraient inutiles. (BALZAC, 1842, pg.10) Ainda sobre as noções balzaquianas relacionadas à natureza da história, pode-se pensar uma questão de ordem mais pragmática: Que função ele atribuiria à história? Não encontrei, nos livros que li essa atribuição de função de forma declarada. Entretanto, o uso que Balzac faz do passado francês, dentro de sua ficção, sugere uma possível função para a história. O pensamento histórico, inserido em seus romances, é articulado para sustentar a defesa de algum ideal do autor, mesmo que na voz de algum personagem, ou seja, o passado é utilizado como ensinamento para as gerações do presente e do futuro. É isso que pode se perceber na voz do médico Benassis em O médico rural: (...) Não é a religião o único poder que sanciona as leis sociais? Recentemente justificamos Deus. Na ausência da religião, o governo foi obrigado a inventar o Terror a fim de tornar suas leis exeqüíveis; era, porém, um terror humano, passou. (1945, pg. 339) Um uso da história que se aproxima com o que Reinhart Koselleck, em Futuro Passado definiu como historia magistra vitae: (...) Assim, ao longo de cerca de 2 mil anos, a historia teve o papel de uma escola, na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grandes erros. (pg. 42, 2006) Um conceito fundado na Grécia antigo por Cícero, que via na narrativa de eventos particulares, lições para as pessoas que se encontrassem em situações similares. Um tipo de história cujas tramas eram instrumentos recorrentes para comprovar doutrinas morais, teológicas, jurídicas, políticas e para fazer juízo sobre o mundo. É claro que, no trecho citado, Balzac não está contando a história do período do Terror, consequentemente não está produzindo uma história magistra vitae, ele apenas faz uso esporádico dos eventos do passado visando possibilitar a seus personagens a defesa de determinados pontos de vista, o que sugere uma aproximação com o citado paradigma, uma finalidade prática para a história: fornecer exemplos para evitar que homens e mulheres incorram em erros velhos. Ao ler Benassis lembrando o que se passou durante o ano de 1793, a invenção do Terror pelos jacobinos, parece claro o objetivo desse exercício de memória: um exercício de juízo, a defesa de uma doutrina política que fosse totalmente aliada da religião: a condenação do Estado secular, partindo do ponto de vista de uma teleologia cristã, que vê qualquer governo laico como ameaçado ( era, porém um terror humano, passou ), um pensamento moldado em formas muito semelhantes das concepções típicas da historia magistra vitae. 67

É interessante perceber, como esse tipo de pensamento histórico está localizado em uma temporalidade posterior ao recorte estabelecido por Koselleck para demarcar a predominância do fenômeno: até o século XVIII. Balzac publicou o que lemos no século XIX, em 1833. Seria essa tendência fruto de algumas leituras realizadas pelo autor, dentre elas estaria a da obra de Abbé Rollin, Traité des Études, publicada em 1726, ou a de alguns autores iluministas como Raynal e Diderot? Talvez. Tratando da sobrevivência e da continuidade de propostas de escrita da história que se identificavam com a história magistra vitae, para além da Idade Média, François Hartog (2003), em Tempo, história e escrita da história, destaca duas causas principais para essas continuidades: (...) o lugar das Igrejas e das instituições religiosas (precisamente por seu reciclar da historia magistra) e a formação das grandes monarquias (notadamente em sua versão absolutista). Possivelmente, de alguma maneira, essas causas podem ser relacionadas e estendidas para a tímida sobrevivência do modelo no pós-revolução francesa, em textos não historiográficos como o de Balzac, tendo em vista que a defesa do catolicismo e da monarquia francesa era declarada por parte de Balzac. Aproximar o pensamento histórico de Balzac a um paradigma de história magistra vitae, é dizer que a importância que Balzac atribui ao passado, por mais ou menos recente que ele seja, além de ser muito grande, é marcada por uma vontade de estabelecer, num dado presente, tanto determinadas continuidades quanto rupturas e mudanças, tomando como lição e exemplo, acontecimentos e observações ocorridas num dado passado. No que diz respeito à necessidade de continuidades, o exemplo chave é a fala do personagem Benassis, de O médico rural. Ela pode ser vista como a voz do autor, pela recorrência da ideia em Os Camponeses, O Cura da Aldeia, e O Médico Rural, e pelo fato de inexistir, nesses romances, qualquer personagem com força suficiente para contrapor ao ideal de que o Estado dependia da Igreja se se quisesse um país moralizado e uma sociedade pacificada e organizada. Assim, ao condenar o governo de Robespierre, Marat e Danton por terem abandonado o catolicismo, na tentativa de implantar o culto da Razão, automaticamente Balzac está clamando por uma política de estado que remonta a conversão de Clóvis, em 496, ao catolicismo, ou seja, por uma necessária continuidade em relação a um passado milenar. Um bom exemplo sobre a necessidade de ruptura com o passado está na dedicatória de Os Camponeses. Nela, Balzac diz ao Sr. P.S.B. Gavault, relatando o objetivo de sua atenção aos homens da roça, que: (...) Trata-se aqui de esclarecer não o legislador de hoje, mas o de amanhã. (...) (1954, pg. 15) Com isso, quer dizer que seu romance tem como missão propiciar a um determinado tempo, o futuro, a possibilidade de romper com um passado, em que a condição dos camponeses tornavam inaplicável o Código Civil, em que se permitia aos camponeses ingressarem na guarda nacional, segundo Balzac, um perigo político e social. Enfim, a dedicatória é a apresentação de uma vontade de ruptura com o passado no que diz respeito às leis sobre os 68

camponeses: um anseio por mudanças jurídicas. Mudanças que ocorreriam com a leitura de observações realizadas no passado, como a sua, tornando o passado uma luz para a ação presente. É dentro dessa perspectiva que, ao condenar a inserção dos camponeses na guarda nacional, e desejando que o futuro rompesse com esse recente passado de militarização do povo, Balzac vai num passado um pouco mais distante buscar um exemplo na prática política de Napoleão: (...) Napoleão preferiu correr os riscos da desgraça a armar o povo. (...) (1954, pg. 16). Entretanto, certo receio permeava esse desejo de Balzac pelas rupturas e descontinuidades. O receio era alimentado por uma oposição à ideia de progresso indefinido da humanidade, defendendo ao invés disso um progresso individual. Em grande parte, esse receio era movido pela possibilidade de que as tecnologias da modernidade pudessem afastar o homem de Deus e chocar os dogmas católicos, como pode ser percebido no L Avant-propos, onde depois de dizer que sua obra está cheia de fatos surpreendentes como os prodígios da eletricidade, que deu ao homem um poder incalculável, diz : (...) mais en quoi les phénomènes cérébraux et nerveux qui démontrent l'existence d'un nouveau monde moral dérangent-ils les rapports certains et nécessaires entre les mondes et Dieu? en quoi les dogmes catholiques en seraient-ils ébranlés? (1892, pgs. 11 e 12). Uma França sem Deus e sem catolicismo poderia, para Balzac, significar uma França caótica. O diálogo que tento estabelecer com as ideias de Balzac sobre o pensamento histórico, está, em partes, em desacordo com o que Hayden White (1994), em Trópicos do Discurso, afirma sobre a relação de Balzac com o passado. No primeiro capítulo de sua obra, O Fardo da História, ele lamenta o apego que grande parte dos historiadores da segunda metade do século XIX e de todo o XX tem com as continuidades históricas, com as tradições, enxergando seus presentes não como futuros de um passado, mas como um tempo quase contínuo a esse passado. Por outro lado, destaca como, na primeira metade do século XIX, expoentes do historicismo realista, dentre eles Hegel, Balzac e Tocqueville, pensava a tarefa da história e do historiador de maneira a distanciar suas obrigações para com o passado, e a consequente manutenção de tradições, e as enquadrá-las a um instrumento para possibilitar uma transição eticamente responsável do presente para o futuro, educando para a descontinuidade. Discordo, em partes, pelo fato de que White (1994) parece totalmente coerente, ao apontar a importância que Balzac dá à educação para a descontinuidade e ao papel do conhecimento histórico na efetivação das mudanças. A dedicatória de Os Camponeses deixa essa posição bastante clara. Entretanto, me parece que White (1994) ignora o outro lado da moeda: o fato de que Balzac produzia um conhecimento histórico que também possibilitasse a continuidade, a manutenção de práticas milenares ou mais recentes. E ignorar isso, é não perceber que a noção de Balzac sobre o papel da história e do conhecimento histórico é ambivalente. Ao mesmo tempo em que vê o passado como algo a ser imitado e mantido, como no caso da defesa de uma prática política milenar na França, a aliança entre Estado e Igreja, também 69

o vê como força motriz de uma consciência que age para modificar o estado das coisas presente, como pode ser visto na dedicatória a Gavault. Essa noção de história, em que o passado fornece lições para o presente e o futuro, seja na defesa de continuidades ou na promoção de rupturas, próxima da ideia de história da história magistra vitae, também pode ser definida com o conceito de constituição exemplar de sentido, apresentado por Rüsen (2010) em História Viva, onde diz que o tipo dessa constituição: (...) pode ser caracterizado como uma forma de saber histórico que apresenta o contexto de sentido dos fenômenos temporais na supratemporalidade dos princípios e das regras. (...) (pg. 53) Por último, a noção de história apresentada por Balzac, também parece ligada ao moderno conceito de geschichte. Reinhart Koselleck (2006), em Futuro Passado diz que essa noção é fruto de um processo que se desenrolou ao longo do século XVIII. Geschichte deixou de significar apenas um acontecimento em si, ou uma série de ações cometidas ou sofridas, para também significar a narrativa dos acontecimentos históricos. Nesse processo, o conceito de geschichte também deixou de se referir apenas a acontecimentos particulares, para designar todas as ações humanas ocorridas dentro do tempo do mundo, nesse sentido condensou-se todas as particularidades num coletivo singular. Assim, tanto as narrativas de fatos diversos, quanto as diversas ações praticadas e sofridas por homens e mulheres, foram resumidas num sistema, num grande singular coletivo chamado geschichte (história). Balzac parece compartilhar da moderna noção de história (geschichte) pelo fato de que tanto as narrativas sobre as ações quanto as próprias ações humanas são definidas singularmente: ambas são história. Ele pensa a história como um sistema, uma interconexão entre as mais variadas particularidades, quer do mundo da narrativa ou do mundo das ações. Ele vê e busca unidade nas narrativas de fatos diversos e particulares que elabora. Sintoma disso é o fato de que chama l histoire (singular) des moeurs uma coleção com 89 romances, A Comédia Humana. Seu objetivo era construir uma narrativa que, graças ao entrelaçamento das mais variadas ações e acontecimentos, fosse pautada por uma temporalidade comum, visando construir uma grande unidade a partir do diverso e das ações particulares, aparentemente desconectadas uma das outras. É partindo dessa noção que Balzac critica, no L Avant-propos, a estrutura dos romances de Walter Scott, destacando a falta de conexão interna nos romances scottianos, a falta de um sentido de singularidade e unidade na organização dos romances, e, consequentemente, apresenta sua concepção de particularidade do tempo histórico: (...) Mais, ayant moins imaginé un système que trouvé sa manière dans le feu du travail ou par la logique de ce travail, il n'avait pas songé àrelier ses compositions l'une à l'autre de manière à coordonner une histoire complète, dont chaque chapitre eût été un roman, et chaque roman une époque. (...) (1842, pg. 05) Assim como na moderna noção de história (geschichte), a história também é sujeito para Balzac. Ela é o próprio devir, a sucessão das épocas e dos acontecimentos, a sequência das 70

continuidades e das rupturas. Sua força motriz seriam as mais variadas ações praticadas pelos mais variados sujeitos. Isso pode ser percebido na sua noção de secretários da época, apresentada nos Tratados da vida moderna, e de secretário da sociedade historiadora, inserida no L Avant-propos. Esses diferentes significantes parecem transmitir a mesma ideia, ou o mesmo significado. Sugerem, em primeiro lugar, o pressuposto de que, independentemente dos historiadores ou cronistas, a história existe por si mesma, haja vista que ela é escrita pela sociedade no momento mesmo em que essa sociedade age, por isso essa sociedade é historiadora de si mesma. Então, aqueles que se prestam a registrar e narrar qualquer devir histórico, seriam secretários da época ou dos historiadores. Assim é manifestada a ideia de uma história enquanto sujeito coletivo e singular, pois insere as ações particulares num sistema coeso. Contudo, parece contradição, ou no mínimo paradoxal, dizer que Balzac se aproxima tanto da ideia de uma história magistra vitae, ou de uma constituição exemplar de sentido, como denomina Rüsen (2010), quanto de uma noção moderna de história (geschichte). Como resolver o conflito? Imagino que buscando a própria explicação dada por Koselleck (2006), sobre o desaparecimento do primeiro modelo, e o surgimento do segundo ao longo do século XVIII. Ele diz que o surgimento da ideia de geschichte foi dado com avanços, hora mais lentos, hora mais rápidos. Isso implica dizer que muitos historiadores, intelectuais e políticos que viveram esse momento de transição, tanto compartilhavam pressupostos de uma história magistra vitae, quanto já adotavam e promoviam a noção de geschichte. Essa parece ser a condição de Balzac, com a ressalva de que não viveu no século XVIII e sim no XIX. Isso significa que a ruptura não se encerra no século XVIII, como afirma Koselleck (2006), mas parece se estender, tomando como base o pensamento e a ficção de Balzac, à primeira metade do XIX. Enfim, aqui não se discute o uso desses conceitos numa perspectiva tão completa e abrangente como faz Koselleck (2006), e, portanto, se pode fazer nenhuma generalização sobre a definição dos mesmos, destaca-se apenas a possibilidade de Balzac ter compartilhado tanto uma noção tradicional de história quanto uma noção moderna. Sendo assim, Balzac acaba adotando e excluindo alguns pressupostos de ambas. No caso do distanciamento de Balzac dos pressupostos da história magistra vitae, a principal exclusão está relacionado à temporalização da narrativa. Diferentemente desse modelo, que toma a sequência cronológica linear como guia da trama, ou seja, a narrativa é serva do tempo, e que adota sequências de dinastias como referencias de temporalidade, Balzac toma o tempo como servo da narrativa e não o contrário. Ao escolher um período como referência para seu enredo, Balzac diz ter optado por sua própria época e não a de determinados reis e imperadores, mesmo que eles tenham existido em sua época. Por outro lado, seu distanciamento da compreensão moderna da história (geschichte), está relacionado, principalmente, com o que destaquei três páginas atrás: o receio que permeava o desejo de Balzac pelas rupturas e descontinuidades, alimentado pela oposição de um progresso contínuo da humanidade. Ele tinha medo de que as tecnologias da modernidade pudessem 71

afastar o homem de Deus, e chocar os dogmas católicos. Ora, temer o futuro pelo fato dele poder ser ateu, e, portanto diferente do passado, é um pensamento que está totalmente excluído da moderna concepção de história. Assim, o texto e o pensamento balzaquiano são marcados, não por uma ideia de história, mas por ideias de histórias, podendo serem tanto tradicionais quanto modernas. Balzac e a Ciência da História do século XIX O posicionamento de Balzac quanto à epistemologia da história de seu tempo é curioso. Ao mesmo tempo em que se aproximava da ciência da história, então em formação, ao perseverar na prática da pesquisa, e de querer tornar tudo provável, parece querer dela se distanciar pelo tipo de objeto que ela privilegiava, o acontecimento (événement), os fatos públicos, políticos e militares, haja vista à abordagem que defendia, voltada para os costumes, e para o cotidiano. Depois de atentar para essa dubiedade da relação de Balzac com a história, pode se trazer o debate travado por Virgínia Camilotti e Márcia Regina C. Naxara (2009) no artigo intitulado História e Literatura: fontes literárias na produção historiográfica recente no Brasil. Ao defender a ideia de que as fronteiras entre a literatura e história durante o século XIX não são tão claras quanto parece, elas tecem críticas a algumas proposições de Hayden White e Peter Burke. Quero aqui me prender à crítica ao último. Ela é feita em razão de Burke ter dito que, na era de Ranke, os historiadores se ocupavam de grandes eventos e de grandes homens e os romancistas tratavam de personagens menores, ilustrando as grandes mudanças num nível micro ou local, em síntese, a crítica é: (...) E, da mesma forma, nada tão claramente demarcado em termos de divisão de trabalho entre romancistas e historiadores ou entre literatura e história e seus respectivos objetos de interesse, como quer fazer crer Burke. (2009, pg.20). Para as autoras a divisão proposta por Burke é inexata, e para corroborar a tese tecem uma análise da história produzida por Jules Michelet, em O Povo (1846), mostrando como a historiografia do século XIX também se preocupava com a gente comum, e mais ainda, assumia fortes tons literários e preocupações estéticas. Pensando especificamente a situação de Balzac, dentro dessa relação literatura e história no século XIX, a impressão que se tem é a de que, tanto a análise de Camilotti e Naxara (2009) quanto a Burke parecem pecar pelos extremos, sendo coerentes por um lado e incoerentes por outro. O que se percebe é que a proposição de Burke não pode ser de todo ignorada, como fizeram as autoras. Mesmo que apresente problemas, como o de não se atentar para historiadores como Michelet, a análise de Burke não pode ser totalmente contestada, pois, quando lemos um sujeito como Balzac, que estava inserido dentro do que Burke chamou de a era de Ranke, vemos sim fortes elementos dessa divisão de trabalho, ainda que o romancista se apresente como historiador. No L Avant Propos da Comédia Humana Balzac diz: (...) J accorde 72

aux faits constants, quotidiens, secrets ou patents, aux actes de la vie individuelle, à leurs causes et à leurs principes, autant d importance que jusqu alors les historiens ont attaché aux événements de lavie publique des nations (1842, pg. 12) ( Concedo aos fatos constantes, cotidianos, secretos ou patentes, aos atos da vida individual, às suas causas e aos seus princípios, tanta importância quanto a que os historiadores deram até então aos acontecimentos da vida pública das nações.) Essa voz de Balzac pode significar a afirmação de um distanciamento entre os dois campos, indo na contramão do que disseram Camilotti e Naxara. Tinha se então, de um lado uma história que, com a exceção de historiadores como Michelet, ainda se voltava predominantemente para a vida pública das nações, e de outro a literatura, se voltando para o espaço do privado e do micro. Não se trata aqui de um procedimento metodológico que dê maior credibilidade, no que diz respeito a determinadas questões históricas, a um sujeito por ele ter vivido em determinada época. Trata-se de um diálogo que busca ser coerente com o passado e suas fontes. E nesse diálogo podemos ouvir Carlo Guinzburg, em O fio e os rastros, citar um trecho da introdução da obra Falco della Rupe, o la guerra di Musso, de Giambatista Bazzoni, produzido cerca de dez anos antes de Balzac escrever o L Avant-propos: O romance histórico-escrevia ele- é uma grande lente que se aplica a um ponto do imenso quadro (pintado pelos historiadores, povoado pelos grandes personagens; desse modo) o que mal era visível recebe as suas dimensões naturais. (...)Não mais os reis, os duques, os magistrados de sempre, mas a gente do povo, as mulheres, as crianças, fazem sua aparição; são postos em ação os vícios, as virtudes domésticas e patenteada a influência das instituições públicas sobre os costumes privados, sobre as necessidades e as felicidades da vida, que é o que, no fim das contas, deve interessar à universalidade dos homens. (GUINZBURG, 2007, pg 323) Pode-se perceber no lançamento da revista Annales d histoire économique et sociale, em 1929, uma pista que reforça a ideia de certa distância, determinada principalmente pelo tipo de objeto, entre os campos da literatura e da história no século XIX. Ao se ler Marc Bloch e Lucien Febvre denunciarem uma história narrativa dos eventos políticos (L'histoire-récit), quase um século depois de Balzac ter feito de maneira semelhante, com tanta veemência e atenção, não se pode acreditar que um número significativo de historiadores europeus, do início do século XIX, produzisse uma história que compartilhasse com a literatura o olhar sobre o homem e a mulher comum e sua cultura. No entanto, parece bastante claro o fato de que a crítica balzaquiana sobre a ausência dos costumes e da vida cotidiana na história era em muitos aspectos injusta. Mais, sua proposta não era totalmente original. Na Grécia Antiga, Heródoto descreveu com maestria os costumes dos líbios, dos persas e dos egípcios. Na França, se teve a publicação, em 1782, do Histoire de la vie privée des français, escrita por Legrand D Aussy. Ainda no século XVIII, Voltaire publicou importantes livros sobre a história dos costumes como O século de Luís XIV, e O ensaio sobre os costumes. De acordo com Julio Bentivoglio (2007), em seu artigo Voltaire e a escrita da história: 73

Uma das grandes contribuições de Voltaire para a escrita da história, como se pode ver, é a crítica que faz à história política e a valorização de uma história dos costumes, ou seja, em lugar de uma história tradicional marcada pelas descrições de reis e batalhas, ele defende uma história do espírito humano e de seus costumes nos diferentes povos. (BENTIVOGLIO, pg. 04) No que diz respeito à afirmação de Burke, sobre o distanciamento entre a história e literatura na primeira metade do século XIX, o extremo está em considerar que, na primeira metade do século XIX, a fronteira entre a história e a ficção era relativamente nítida, sem atentar para os pontos de intersecção entre esses campos da narrativa, pelo menos no que diz respeitos a grande parte dos realistas: a valorização da pesquisa, da imparcialidade e da verdade. Então, o que se pode perceber é que, se por um lado Naxara e Camilloti (2009) estão equivocadas por ignorarem uma declarada divisão de trabalho entre historiadores e literatos, como se vê na fala de Balzac, talvez por se apegarem a um exemplo de historiografia que, no século XIX francês parece ter sido mais exceção do que regra, a de Michelet. Por outro lado, elas são bastante coerentes em afirmarem a proximidade entre os campos da história e da literatura no século XIX, proximidade perceptível nas preocupações que Balzac compartilhava com a nascente ciência da história, dentre elas a valorização da verdade e da imparcialidade. A relação entre literatura, pelo menos a literatura balzaquiana, e a história, parece ter sido marcada tanto por aproximações, como bem apontou Naxara e Camilloti (2009), como por distanciamentos, como bem destacou Burke. É importante deixar claro que o argumento aqui defendido, de que a literatura da primeira metade do século XIX, especialmente a balzaquiana, e a história, possuía tanto pontos de distanciamento como de aproximação, não pretende estar em desacordo com o que diz Hayden White em Trópicos do discurso: Entretanto, seria mais correto reconhecer que o início do século XIX foi uma época em que a arte, a ciência, a filosofia e a história se encontravam unidas num esforço comum para compreender as experiências da Revolução Francesa (1994, pg. 54) Nesse trecho, pode parecer que White (1994) rejeita qualquer distância entre romancistas e historiadores da primeira metade do século XIX. Mas, com a expressão esforço comum, White (1994) não quer eliminar todas as fronteiras entre história e literatura. Quer dizer que tinha objetivos e até métodos em comum, mas não objetos. Esses distanciamentos, marcado pela proposta balzaquiana de ruptura com o tipo de objeto que a historia valorizava, deve ter ficado claro na fala de Ginzburg (2007), quando diz que o romance balzaquiano trouxe um desafio para a historiografia de seu tempo e para o futuro, ou na do próprio Balzac quando apresenta o desafio de escrever uma história dos costumes e da vida privada, que segundo ele tinha sido esquecida pelos historiadores do passado e de seu tempo. Em síntese, Balzac, de alguma maneira, propunha uma relativamente nova prática de produção de conhecimento histórico, um novo olhar sobre o devir humano, mesmo que na forma de ficção. Uma proposta relativamente nova por dois motivos. Primeiro, porque sua proposta não era original. Como destaca Erich Auerbach (2004) em Mimesis, em nenhum momento Balzac 74

assume que essa proposta já tinha sido defendida e praticada por Voltaire e por Legrand D Aussy no século XVIII. Segundo, porque, se por um lado, ela perece deixar de ser nova frente à antecedência de homens como Voltaire, por outro ela continuava sendo nova, haja vista que grande parte dos historiadores da França oitocentista produzia um tipo diferente de história. Como explicar essa proposta de ruptura, esse desejo de inserir homens e mulheres comuns na história? A questão parece poder ser facilmente respondida com a simples colocação de que Balzac era um romancista, e que, desde que esse gênero começou a ser produzido na modernidade, com Dom Quixote, os costumes do povo quase sempre esteve entre suas preocupações principais. Portanto Balzac não fazia mais do que seguir uma tradição do gênero. E é possível que seja realmente isso. Entretanto, a dúvida continua quando lembramos sua insistência em propor uma nova história e não apenas mais um romance. Ou seja, ele não se satisfaz com o estatuto da ficção de que até então gozavam a maioria dos romances. Balzac possui uma atitude crítica que parece desafiar duas tradições: a do romance moderno, ao nomear seus romances de história dos costumes, e a da história, ao lamentar o esquecimento dos costumes na pesquisa histórica e sugerir que se tornem objetos de estudos. Lendo LaCapra (2000) em History and Reading, tem-se a apresentação do ponto de vista de Tocqueville e Stendhal sobre a sociedade francesa pós-revolucionária. Eles são uníssonos em dizer que se tratava de uma sociedade marcada pela atomização dos indivíduos e pela falta de cooperação social: For both (Tocqueville and Stendhal), post-revolutionary society is marked by an atomization of individuals and a factionalization of groups, which produce a situation marked by stalemate and a lack of cooperation, even when the interests of social agents tend to coincide. (LACPRA, pg.83) Eliminando qualquer possibilidade de determinismo, talvez levar em consideração esse contexto social em que se encontrava Balzac ajude a melhor responder o problema levantado no parágrafo anterior. A busca por inserir homens e mulher comuns em seus romances e na história, talvez esteja relacionada com uma tentativa de combater esse atomismo e essa falta de cooperação social que Tocqueville e Stendhal afirmavam existir, tendo em conta que, a manutenção de uma ordem social com o mínimo possível de conflito é uma preocupação perceptível em seus romances. Uma segunda possibilidade pode estar relacionada com a pretensão assumida por grande parte dos romancistas na primeira parte do século XIX, de que as suas explicações sobre a sociedade e homem eram mais profundas e esclarecedores. De acordo com Alain Corbin, no prefácio de La lecture e la vie de Judith Lyon-Caen: Au sein de cette cohorte, le romancier se sent mieux que les autres à même de décrypter les codes, de saisir les nuances, de percevoir l intermittence sociale dês lieux, de percer les secrets de la province, de sonder les plaies, d ôter les masques, d explorer les dessous et les envers. (...) (CORBIN, 2006, pg.11) 75

Ao apresentar um desafio para a história, questionando a ausência dos costumes na história, é possível que Balzac esteja, de alguma maneira, manifestando essa pretensão apontada por Corbin. À crença de que sua literatura tinha a capacidade de desvendar os segredos da província e decifrar os códigos sociais é contraposta a incapacidade dos historiadores em fazê-lo. Ainda na obra de Lyon-Caen (2006), pode se ler a própria autora, depois de estudar as cartas endereçadas aos romancistas do tempo de Balzac, dizer que se tratava de uma sociedade atravessada por um desejo de representação democrática dentro da literatura, queriam se ver no romance. Sendo assim, também é possível que a voz de Balzac, sobre a importância do homem comum na história, esteja profundamente intrincada com essa tendência sócio-cultural de seu contexto histórico: atendia a demandas que iam além de sua individualidade. Um terceiro ponto diz respeito à formação de uma identidade nacional. De acordo com François Hartog em O século XIX e a história (2003) mesmo que de maneiras distintas das de Balzac, importantes historiadores de seu tempo, como Guizot e Thierry, escreviam suas histórias tendo em mente o lema construir um passado, para construir uma nação. Talvez, ao colocar esses homens comuns na literatura, Balzac também compartilhasse essa preocupação com a formação de uma nação francesa, mesmo que esses historiadores (exceto Michelet) não colocassem o povo em suas narrativas. Outro ponto pode ajudar a entender esse desejo de Balzac em ver o homem e a mulher comum na história. Diz respeito às profundas heranças da tradição carnavalesca presentes em Balzac. M. Bakhtin em Problemas da poética de Dostoievski (2010) diz que Dostoievski bebeu na fonte de Balzac, George Sand e Victor Hugo para apropriar-se dessa tradição, apontando assim a força dos elementos carnavalescos nos textos balzaquianos. E o que tem a ver uma coisa com a outra? Ora, de acordo com Bakhtin (2010), o carnaval é uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios passados, é a festa da praça pública, onde a gente comum produz sua própria interpretação do mundo, marcada pela inversão dos papéis sociais, pela eliminação do medo e das autoridades, e pelos elementos grotescos (o riso criativo, a profanação do sagrado, o exagero na comida, na bebida e no sexo, e a explicitação das partes baixas do corpo). Sendo assim, nada mais coerente que um autor inserido nessa tradição de cosmovisão universalmente popular, lamentar a história ter esquecido os costumes e a cultura da gente comum. Assim, é possível afirmar que, a proposta balzaquiana de desafiar os historiadores, estava diretamente relacionada com seu desejo por uma história, em muitos aspectos, carnavalizada. Contudo, não parece contraditório dizer que a preocupação de Balzac com a história dos costumes populares tenha relações tanto com o estabelecimento de uma ordem social em uma sociedade atomizada, quanto com a inserção do autor numa tradição carnavalesca? Pode parecer. Mas, se, de acordo com Bakhtin (2008) em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, toda uma civilização, o ocidente medieval, viveu durante mais de mil anos regida por uma 76

dualidade de mundo (de um lado o poder oficial e sério da Igreja e do Estado e de outro, num tempo específico, a cosmovisão risonha e brincalhona do carnaval) porque essa mesma dualidade não poderia estar presente num sujeito como Balzac? Um último ponto relacionado a esse desejo de ver o homem e a mulher comum na história parece se encontrar na própria personalidade de Balzac: seu atento tino para a observação das pessoas e de seus hábitos. Sobre isso Robb (1999) diz que ele foi um dos primeiros escritores franceses a usar a palavra no sentido moderno: antropologia. (1995, pg. 39) Relacionadas às aproximações que Balzac apresentava com a ciência da história da primeira metade do século XIX, algumas questões parecem dignas de análise. Em primeiro lugar, a presença dos conceitos de verdade e imparcialidade em suas falas sobre a sua literatura e o seu papel de historiador. A sua defesa da imparcialidade se volta principalmente para a isenção no tratamento e no julgamento das camadas sociais: o rico e o desgraçado são iguais perante sua (a do historiador) pena. É curioso o fato de Balzac afirmar a necessidade de tornar tudo provável, mas não utilizar documentos em sua prosa. Uma tendência difícil de ser explicada. Ginzburg não só percebe esse anseio por verdade balzaquiano, como diz ser um anseio compartilhado com outro romancista oitocentista, Stendhal: (...) O vermelho e o negro sempre foi lido como um romance. Mas as intenções de Stendhal são claras. Por meio de um relato baseado em personagens e acontecimentos inventados, ele procurava alcançar uma verdade histórica mais profunda. É uma atitude compartilhada com outros romancistas do início do século XIX: em primeiro lugar, Balzac, esse grande historiador, como Baudelaire o definiu. (GUINZBURG, 2007, pg.174). Os problemas então passariam a ser: o que seria esse tornar provável? O que Balzac entendia por verdade em suas narrativas? Se pode fazer conjeturas sobre isso. Sobre a primeira questão, surge a possibilidade de que o tornar provável seja o ato de estilizar aquilo que observou direta ou indiretamente. Provar poderia ser dizer o que viu, ouviu ou leu, se assumir enquanto testemunho dos acontecimentos sociais perante muitos juízes, seus leitores. Já destaquei a importância da prática da pesquisa para Balzac. Juntava se a isso seu forte tino para a observação, característica que Rónai (1999) diz ter germinado no seio de sua família: Foi nesse ambiente reduzido, em que cada um espreitava as palavras e os menores gestos dos outros, que ele criou o hábito de observar cenas na aparência insignificantes, de buscar, disfarçados em conversações anódinas, germes de conflitos e choques de sentimentos e paixões. (RÓNAI, 1999, pg. 30) Sobre o segundo tópico da questão, ou seja, o que Balzac entendia por verdade, um dos caminhos que parece bastante coerente é princípio de que a verdade seja companheira da imaginação. Esse caminho é apontado na escrita de Robb (1995) em três momentos. Primeiro diz que foi convencido por Balzac de que a imaginação é aliada da verdade; depois que as narrativas balzaquianas que mais parecem fantasias e imaginações do autor estão profundamente tendentes a serem transposições de acontecimentos reais; por último que o grande elemento de seus 77

sonhos literários era a realidade. A sugestão é que a verdade pode ter uma definição muito mais rica e complexa para Balzac: passaria pela sua intersecção com a observação e a imaginação. Pode-se melhor compreender a importância do elemento imaginativo na construção de uma verdade sobre a sociedade oitocentista, ouvindo o que diz White (1994), sobre a essência da escrita de artistas, cientistas, filósofos e historiadores da primeira metade do século XIX: num esforço comum para compreender as experiências da revolução francesa, ultrapassaram os limites que separavam um campo do outro, decidindo-se pelo uso de metáforas iluminadoras para a organização da realidade. A preocupação de Balzac em apresentar um conteúdo verdadeiro na sua ficção, sempre aparece atrelada à ideia de que se está produzindo história, ou seja, ao se apresentar como historiador, logo conclama a verdade como elemento constituinte de sua escrita. Essa noção pode ser vista como uma continuidade do ponto de vista antigo e iluminista a respeito da história, ou mesmo de contemporâneos de Balzac, como Tocqueville (que em grande medida segue o ideal de objetividade e verdade defendido por Benjamin Constant), François Guizot, e por muitos outros historiadores filiados ao Instituto histórico de Paris, criado por Eugene Garais de Monglave em 1833. Na antiguidade, segundo Ivan Domingues (1996) em O fio e a Trama, o estatuto epistemológico da história foi metaforizado na ideia de luz em Cícero, ele afirmava que a história é a luz da verdade (lux veritaits), e na de espelho em Luciano, que compara o historiador a um espelho que reflete fielmente a realidade tal como ela é. No iluminismo, como apresenta White (1994), Voltaire e Bayle são enfáticos quanto à importância da verdade para a história. Comungavam, diferentemente de Balzac, o ponto de vista de que existem linhas demasiadamente rígidas entre a história e a fábula. Bayle, em seu Dictionaire historique, defendia o pressuposto, que parece ser o mesmo de Balzac, de que a verdade é a alma da história. Assim a ligação de Balzac com a ideia de história dos iluministas, parece ser intermediada pela importância que atribuem à verdade para a constituição da história. O distanciamento pode ser percebido na oposição que os últimos traçam entre história e fábula ou conto, coisa impensável para Balzac, pois do contrário não poderia chamar A Comédia Humana de história. Aliás, ao denominar a A Comédia Humana de história, Balzac não se afasta apenas dessa noção iluminista de oposição entre história e fábula/conto, mas também das raízes grecoromanas que geraram essa concepção. Tratando das concepções romanas de história, Ivan Domingues (1996) em O fio e a Trama, diz que: (...) não havia e não poderia haver a menor comum medida entre as res factae de que nos falam (os historiadores) e as res fictae com que nos brindam os mitos e os poetas antigos. (pg 196 e 197). A importância da verdade para a história, essencialmente para a ciência da história, é vista por Rüsen, como um ponto decisivo, motivador e demarcador da disciplina: (...) É de se perguntar inicialmente, pois, por que se faz história como ciência, pura e simplesmente. A resposta a essa 78

pergunta é: porque com a história como ciência quer-se obter certo resultado, um determinado objetivo de validade da narrativa histórica: a verdade de cada história narrada. (2010, pg. 85). Com isso, se pode dizer que Balzac e sua ficção faz, perceptivelmente, dois empréstimos da ciência da história: aquele que, segundo Paul Ricoeur (1997), em Tempo e Narrativa, quase toda ficção faz, o uso dos recursos de historicização, e a pretensão de validade (ao mesmo tempo que atrela história à verdade, Balzac define seu texto como história, a história dos costumes, conclamando para ele a verdade da história). Sobre essa visão balzaquiana da verdade da narrativa, um último elemento não pode ser ignorado. Diz respeito à retórica. Para ele a maneira de contar, e a consciência do que se conta são elementos importantes na constituição da verdade. Robb cita uma fala retirada de Falthurne, que ajuda a perceber a importância da retórica na verdade de Balzac: O que me leva a acreditar na verdade do que o grande Savonati (personagem da obra) nos transmitiu é a forma como ele nos conta tudo conscienciosamente. (1995, pg. 77) Ao conclamar uma verdade histórica para seu texto, Balzac tanto alimentava uma expectativa documentária, amparada na crença de que os romances eram construídos a partir de possíveis investigações empíricas, em seus leitores, quanto respondia a essa mesma expectativa. Lyon-Caen (2006) destaca esse imaginário dos leitores de Balzac: (...) Tous ces lecteurs jugent que le texte romanesque est le produit d un travail documentaire préable: ils parlent de recherches à effectuer, d informations à collecter ou de matériaux à fournir. (...) (2006, pg.149). Além dos pontos mencionados, outra preocupação aproximava Balzac de muitos historiadores da primeira metade do século XIX, principalmente de Guizot e Thierry. Preocupados com a manutenção da ordem social, com a não radicalização das mudanças trazidas pela Revolução, destacavam, assim como Balzac, a importância da Igreja cristã para a manutenção da paz social e para a consolidação dos laços sociais, em síntese, a Igreja era por eles vista como elemento chave na manutenção e no desenvolvimento da civilização. No que diz respeito ao fato da possível localização de Balzac numa tradição de teoria histórica, têm-se a colocação de Eric Auerbach, em Mimesis, afirmando sua inserção no historicismo: Historicismo atmosférico e realismo atmosférico estão intimamente ligados; Michelet e Balzac são levados por idênticas correntes (...). Tal concepção e tal prática são totalmente historicistas (2007, pg. 172). Historicista ou não, a perspectiva de sua narrativa parece bem clara. Entender o costume pelo viés da temporalidade, ou seja, os hábitos narrados seriam outros se inseridos em outra temporalidade. É o que podemos ver na dedicatória de Os Camponeses dirigida a seu amigo Sylvain Gavault: Escreveu J. J. Rousseau no começo de A Nova Heloísa: Vi os costumes de meu tempo, e publiquei estas cartas. Por que não dizer-lhe, imitando o grande escritor: Estudo a marcha de minha época, e publico esta obra? (1954, pg. 15) A preocupação de Balzac com a temporalidade em que seus personagens estão inseridos é bem marcante. Para escrever Falthurne, Robb (1995) diz que ele foi buscar na escrita histórica a 79

paisagem temporal para encaixar sua trama. Buscou em Declínio e queda do império romano de Gibbon os ares da Nápoles do século X. Com o sonho de realizar uma épica descrição de uma batalha napoleônica fez questão de visitar cenários de batalhas e conversar com soldados que delas participaram. Robb (1995) comenta a observação que Engels realizou sobre as preocupações históricas de Balzac: Escrevendo para Margareth Harkness em 1888, Engels observou que a aguda percepção que Balzac tinha das tendências históricas o levou, apesar de si mesmo, a destacar as contradições e injustiças da sociedade e, assim, promover a revolução proletária que ativamente tentou evitar. (ROBB, 1995, pg. 201). O apesar de si mesmo, utilizado por Engels, talvez se deva ao fato de Balzac ser visto como um literato defensor da monarquia constitucional, da Igreja e da aristocracia, em síntese, um conservador. Partindo da leitura dos volumes XIII e XIX da Comédia Humana, pode se afirmar que Balzac é um autor extremamente preocupado com a historicidade dos acontecimentos e dos personagens envolvidos na trama ficcional. A religiosidade envolvida na trama é repetidas vez apresentada dentro de universo regido pelas forças do tempo histórico, sendo a vontade individual muitas vezes submergida em contingências que vão muito além da própria individualidade. Mesmo quando a individualidade vence as contingências históricas, ela é novamente amarrada à historicidade, sendo então descrita como pertencente a outro tempo histórico. É isso que se pode ver no caso da descrição das virtudes do Padre Bonnet, no romance O Cura da Aldeia, em que é dito que o tal padre era uma exceção à sua época, pois só deveria existir nos quadros da Igreja do século XVI. Outro exemplo desse tipo de sentido histórico, onde a diacronia é inserida na sincronia, e em que o tempo determina determinados padrões de comportamento pode ser percebido na leitura dos Tratados da Vida Moderna, reunião de textos escritos entre 1830 e 1839. Primeiro, ao tratar das pessoas que usavam gravatas sem senti-las e sem compreendê-las, Balzac diz que elas eram: (...) Pessoas desatualizadas, que dão continuidade ao século XVIII em pleno século XIX. Anacronismos vivos, demasiado numerosos, infelizmente! (...) (2009, pg. 14). Aqui se pode ver que é atribuído a um século, o XVIII, um tipo de hábito, uma maneira de agir, uma sensibilidade para o vestir. Além disso, se pode perceber um juízo de valor para esse tempo mais distante do seu, o século XVIII: é de lamentar que, nesse aspecto, ele continue existindo no século XIX. Assim, parece que o sentido dado a cada passado pode ser positivo ou negativo, dependendo dos pontos de vista do autor: se a maneira de usar a gravata do século XVIII é lamentada nos Tratados da Vida Moderna, o tipo de fé e vocação católica do século XVI é admirada e tida como exemplo para a sociedade moderna em O Cura da Aldeia. Posteriormente, declara a capacidade de o tempo determinar os mais variados tipos de escrita ao longo da história: (...) Há em todas as épocas um homem de gênio que se torna 80