PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Editora da UNESP, p.

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Transcrição:

PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Editora da UNESP, 2007. 446p. CAMILA MAINARDI 1 UFSCar A literatura antropológica acerca do grupo indígena Guarani é vasta. Engloba trabalhos clássicos de autores como Nimuendaju, Schaden, Hélène e Pierre Clastres e a produção contemporânea de teses e dissertações produzida nas universidades, principalmente do sul e sudeste do país e no Mato Grosso do Sul possivelmente em decorrência destas serem áreas de ocupação Guarani. Nesse cenário, o trabalho de Elizabeth Pissolato se destaca ao apresentar um balanço da bibliografia sobre o grupo que o revê a partir das questões relevantes para a antropologia contemporânea, as quais por sua vez pautam sua etnografia, de modo que lhe permite construir uma ponte entre os Guarani e os grupos indígenas amazônicos e com isso os recolocar no cenário da discussão acadêmica atual em etnologia. O livro do qual tratamos é a publicação da tese defendida em 2006 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/RJ, resultado do trabalho de campo que teve início em 2001 junto ao grupo indígena Guarani Mbya, e que foi realizado de maneira mais sistemática nas aldeias Araponga e Parati Mirim, ambas localizadas no Rio de Janeiro. O modo como ocorreu sua inserção em campo foi fundamental para o desenvolvimento da tese, o que traz também um diferencial à sua pesquisa. A autora realizou seu campo em companhia de sua filha, o que lhe possibilitou estabelecer relações especiais com as 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos - PPGAS/UFSCar. E-mail: mainardi.camila@gmail.com.

102 mulheres mbya, já que criava entre elas um tema de interesse comum, o trato das crianças. Tais relações se mostraram produtivas, tendo em vista que a questão da satisfação pessoal, do estar alegre, que percorre todo o trabalho, está intimamente associada aos cuidados com as crianças. Pissolato inicia o livro discorrendo acerca de seu campo e apresenta uma bonita etnografia das aldeias em que conviveu por mais tempo com os Mbya. Insere o leitor na vida entre aldeias (Araponga e Parati Mirim) que compôs seu campo e levanta as questões que orientaram sua pesquisa. A análise da autora parte da mobilidade e do xamanismo, aqui tido como ciência mbya da produção de capacidades/saberes para a vida, para elucidar aspectos do parentesco e da pessoa mbya. Chega por essa via ao ponto que considera central para o grupo, a busca de modos de fortalecimento da própria existência, a duração da pessoa. No segundo capítulo da tese, a autora reflete sobre a literatura guarani, mais precisamente aquela que trata do tema da mobilidade. Ela separa a produção bibliográfica em dois momentos, um relacionaria as migrações à religiosidade do grupo, outro associaria os deslocamentos ao teko, o modo de ser guarani. Neste primeiro momento em que se articula os movimentos territoriais com a religião, discute-se questões referentes ao mito da terra sem mal ; aqui entram autores como Métraux, Nimuendaju, Hélène Clastres e Cadogan. Para eles, os Guarani seriam detentores do que Pissolato chama de uma ética-migratóriareligiosa. No segundo momento, a discussão dos deslocamentos aparece associada ao teko, isto é, a noções e práticas que caracterizariam a maneira de ser Guarani. A mobilidade seria um modo guarani de relação com a terra, intimamente ligada à idéia de tekoa. Estes trabalhos seguem o produzido por Bartolomeu Meliá (1990) que, a partir do significado de teko, atribuído primeiro por Montoya em seu dicionário (modo de ser, comportamento, cultura...), define tekoa como sendo o lugar onde se dão as condições de possibilidade do modo de ser guarani. Segundo ele: O tekoha significa e produz ao mesmo tempo relações econômicas, relações sociais e organização políticoreligiosa essenciais para a vida guarani... (MELIÁ, 1990, p. 36),

103 concluindo, O tekoha é uma inter-relação de espaços físico-sociais (MELIÁ, 1990, p. 36). A crítica de Pissolato acerca dos trabalhos que se baseiam na relação teko/tekoa evidencia uma imagem fixa para o modo de ser guarani, remetendo a algo que seria tradicional e, desta maneira, operando uma redução das inúmeras possibilidades que o ser guarani abarcaria. A autora defende que a forma social guarani implica justamente na não-fixação, na construção constante de proximidades e distanciamentos entre pessoas, que envolveria uma ética de buscar continuadamente maneiras mais apropriadas de realizar o próprio costume. Nesta perspectiva, a realização guarani estaria associada não à busca por um ideal de vida ou lugar, mas pela procura de melhores condições de durabilidade das experimentadas no presente. A mobilidade teria lugar central nas histórias de vida, sendo uma capacidade conquistada ao longo do tempo, que operaria a atualização do parentesco e que, no limite, teria em vista a satisfação pessoal e a duração da pessoa. Os trabalhos sobre os Guarani, ainda que cada um com suas especificidades, tratam de maneira semelhante as questões colocadas pelo grupo. Os aspectos valorizados nessas etnografias estavam relacionados à territorialidade, ao teko, e a análise dos autores circulava em torno da relação grupo/território/modo de ser guarani. A tese de Pissolato, neste contexto, muda o foco das pesquisas, propondo para análise uma nova perspectiva que, por sua vez, dialoga com os temas propostos para a etnologia contemporânea, em especial a discussão da construção da pessoa em uma abordagem muito atual. Na tese aqui resenhada, este tema surge junto do xamanismo, parentesco e mobilidade, e é apresentado pela autora a partir dos meios que os Mbya buscam para fortalecer a existência das pessoas. Pissolato, ao tratar da multilocalidade de parentes, insere os Mbya na discussão contemporânea da etnologia. Tal como para o parentesco ameríndio inspirado nas proposições de Eduardo Viveiros de Castro (2002), os corpos são criados pelas relações e não o contrário. Os Mbya concebem um universo multilocal, no qual é possível atualizar as oportunidades para estender as relações; nele o parentesco é feito e

104 refeito contextualmente, em um parentesco a se fazer, nas palavras da autora. A produção de saberes responsáveis pela manutenção da vida de cada pessoa na Terra depende do exterior em um modo centrífugo, em contraposição ao modo centrípeto em que as capacidades seriam transmitidas internamente. Se para os Mbya é apenas no exterior que se adquire sabedoria, este se limita às relações com o domínio divino, e visa não produzir a humanidade, mas evitar sua perda. O universo mbya gira em torno da busca por modos de manter a pessoa que se dá a partir da satisfação pessoal. Esse é o fio condutor da narrativa de Pissolato, que relaciona a produção de saberes e o xamanismo aos deslocamentos e a atualização do parentesco, levando em conta que o intuito é sempre o bem-estar e a saúde de cada um. Uma discussão a respeito da pessoa guarani não poderia deixar de lado a noção de nhe ë, já que a condição humana, isto é, a condição mbya, está relacionada à idéia de nhe ë. A autora traduz este termo como princípio vital, que é adquirido pela pessoa e representa a divindade contida em cada um; seria o nome/alma que todo mbya traria consigo lembremos que os nomes guarani advêm da esfera dos deuses. O nhe ë possibilita a relação mbya/plano divino e, deste modo, é o fundamento do conhecimento que, cabe apontar, decorre da experiência particular de cada pessoa. Em sua análise, Pissolato discorre belamente acerca do nhe ë das crianças. Durante os primeiros anos de vida de um Mbya, há incerteza quanto à vontade que ele apresenta de continuar entre seus parentes. Assim, existe uma série de cuidados no pós-nascimento dos bebês que visam fomentar o desejo da criança em permanecer na Terra, tal desejo se manifesta quando a criança começa a falar e nomear seus parentes. Isso mostra o quanto a produção da pessoa e do socius mbya está relacionada à produção de entendimento, de sabedoria que advêm do domínio divino. A ciência mbya compreende o que se escuta dos deuses, o xamanismo, e envolve os conselhos entre parentes; o entendimento mbya é possibilitado graças ao nhe ë de cada pessoa. O contentamento, o sentir-se alegre movimenta, além do fluxo de conhecimento mbya/domínio divino garantido pelo nhe ë, o parentesco mbya. Na medida em que a satisfação pessoal está vinculada

105 a vida entre parentes, a ausência de sentimentos como alegria faz com que as pessoas se desloquem de uma aldeia para outra, atualizando as relações do parentesco. Assim, xamanismo e parentesco atendem a um mesmo objetivo, qual seja, a atenção ao estado emocional de cada um e à saúde. Ambos colocam em movimento os fluxos de saberes produtores da saúde e da alegria, possibilitando o prolongamento da existência humana. O trabalho de Pissolato se faz interessante porque, tendo como foco a pessoa, não deixa de se preocupar com questões referentes à coletividade mbya. Para ela, a reprodução social deste grupo indígena se faria pelo mecanismo da variação de perspectivas pessoais, o estabelecimento constante de novas relações, e não pela reiteração de uma tradição religiosa ou pela busca de locais privilegiados para o estabelecimento do tekoa. A autora peca apenas ao utilizar acriticamente noções, tais como sociedade e indivíduo, ou reprodução social, que têm sido revistas atualmente pela antropologia, discussão esta que acaba por ficar de fora da narrativa de Pissolato. Isso é particularmente estranho em um trabalho tão antenado, como apontamos diversas vezes nessa resenha, aos debates contemporâneos da etnologia, os quais são não só caudatários dessas revisões como têm contribuído para elas. Talvez por isso mesmo essa omissão não ofusque o trabalho aqui apresentado e o fato dele abrir novas possibilidades para o entendimento dos grupos guarani. Dentre essas possibilidades, ressalte-se aqui o modo como a autora constrói sua argumentação evidenciando a relação entre parentesco, xamanismo e mobilidade e a duração da pessoa guarani mbya. Referências bibliográficas MELIÁ, Bartolomeu. A terra sem mal dos guarani: economia e profecia. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 33, p. 33-46, 1990. PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Editora da UNESP, 2007. 446p.

106 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo de parentesco. In:. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac e Naif, 2002. p. 401-455.