A gente em relações de concordância com a estrutura pronome reflexivo + verbo na variedade alagoana do PB 1



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Transcrição:

A gente em relações de concordância com a estrutura pronome reflexivo + verbo na variedade alagoana do PB 1 Ahiranie Sales Santos Manzoni 2 Renata Lívia de Araújo Santos 3 RESUMO: Este artigo analisa a expressão a gente nas relações de concordância com a estrutura pronome reflexivo + verbo na variedade alagoana do português brasileiro. Com base na teoria de verificação dos traços e na reflexão de alguns teóricos como Menuzzi (2000), Costa et al (2001), Pereira (2003), entre outros, observa-se neste estudo as relações de concordância entre a gente, pronome reflexivo e verbo. Pretende-se, assim, problematizar essas construções do português brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Concordância; Teoria de verificação dos traços; A gente. ABSTRACT: This paper analyzes the expression a gente in the relationships of agreement with the structure reflexive pronoun + verb' in the alagoana variety of Brazilian Portuguese. Based on the checking theory of features and in the reflection of some theorists like Menuzzi (2000), Costa et al (2001), Pereira (2003), among others, the relationships of agreement between a gente, reflexive pronoun and verb is observed in this study. It is intended, therefore, discuss these constructions of Brazilian Portuguese. KEY-WORDS: Agreement; Checking theory of features; A gente. INTRODUÇÃO No português brasileiro (PB), a expressão a gente apresenta um comportamento pronominal, possuindo traços gramaticais e semântico-discursivos distintos. Quando destacamos seus traços gramaticais, podemos dizer que essa expressão é um pronome de terceira pessoa do singular, contudo, ao focalizarmos os aspectos semântico-discursivos, sua classificação será pronome de primeira pessoa do plural (MENUZZI, 2000). 1 Agradecermos à Profa. Dra. Maria Denilda Moura pelas discussões e pelas sugestões da maior parte das referências utilizadas neste artigo; ao Prof. Dr. Marcelo Amorim Sibaldo pelo envio de textos relacionados à teoria de verificação dos traços; e à Profa. Ma. Solyany Soares Salgado pela leitura prévia deste texto. 2 Estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas (PPGLL/UFAL). Email: ahiranie@hotmail.com 3 Estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas (PPGLL/UFAL). Email: renatalivia@gmail.com

Levando em consideração as evidências de que a regra de concordância verbal (CV) no PB é uma regra variável, a expressão a gente apresenta comportamentos distintos de região para região (variação dialetal). Na variedade usada em Alagoas, a concordância dessa expressão com verbos na terceira pessoa tanto do singular quanto do plural é considerada gramatical 4, como podemos ver em (1): (1) a. A gente vai ao cinema 5. b. A gente vamos ao cinema. Contudo, de uma forma geral, as gramáticas normativas (doravante GN) são resistentes a essas variações e não reconhecem a gente como pronome e nem levam em consideração os seus traços semântico-discursivos. Longe dessa acomodação, preocupamo-nos com as evidências linguísticas. Nosso interesse é procurar entender a manifestação de traços gramaticais e semântico-discursivos em relações de concordância com a estrutura pronome reflexivo + verbo no dialeto alagoano do PB: (2) a. A gente se viu. b. A gente se vimos. c. *A gente nos viu. d. A gente nos vimos. Conforme Costa et al (2001), a Teoria de Verificação dos Traços (CHOMSKY, 2000, 2001 e sequência) parece não dar conta da expressão a gente em domínio local 6, em que se espera encontrar concordância gramatical. Pretendemos, dessa forma, analisar a expressão a gente, em domínio local, em relações de concordância com a estrutura pronome reflexivo + verbo na variedade alagoana do PB a partir 4 No sentido de que a sentença pertence à língua. Em oposição à agramatical, quando a sentença não pertence à língua. 5 Os exemplos apresentados neste trabalho foram elaborados, com base em exemplos encontrados nos textos que compõem as referências deste artigo, para ilustração. Todavia, vale ressaltar que, no dialeto alagoano, podemos encontrar essas construções. 6 Conforme Chomsky (1986, p.169), o domínio local de um pronome é a categoria governante mínima de α, sendo esta a projeção máxima que contém um sujeito e uma categoria lexical que governe α.

da concordância realizada através de traços semântico-discursivos, a fim de verificar a hipótese levantada por Costa et al. Nosso objetivo é, portanto, problematizar tal estrutura. Para tanto, de forma sucinta, descrevemos, primeiro, o seu comportamento linguístico, a fim de alcançarmos uma melhor compreensão. 1. A gente e seu comportamento linguístico No PB, a expressão a gente sofreu processo de gramaticalização, cuja transição foi da forma lexical latina (gens, gentis) até a forma pronominal contemporânea (PEREIRA, 2001). Alguns estudos (MENON, 1995) demonstram que as mudanças no quadro dos pronomes pessoais do PB podem ser decorrentes da introdução de novos pronomes na posição de sujeito no sistema pronominal, dentre outros fatores. Todavia, o estatuto pronominal da expressão a gente no PB ainda não é reconhecido, de forma geral, pela GN. Menuzzi (2000, p. 207-208), procurou justificar esse estatuto a partir de alguns argumentos, dentre eles: i. possui interpretação pronominal (de primeira pessoa do plural e arbitrária), ii. possui um comportamento sintático igual ao dos pronomes (não há modificação possível), iii. o gênero é determinado pela interpretação (não por especificação lexical). i. A gente viu uma cobra atrás de nós 7. A gente sempre vê fantasmas atrás da gente. ii. *[A gente desatenta] não percebeu uma cobra atrás da gente. *[Ele desatento] não percebeu uma cobra atrás dele. iii. A gente ficou surpresa com aquele elogio. [A gente = eu (Ana) + Isabela] A gente ficou surpreso com aquele elogio. [A gente = eu (João) + Paulo] Antes de tentarmos compreender melhor o processo de concordância com a expressão pronominal a gente, faz-se necessário destacarmos que essa expressão apresenta comportamentos diferentes entre as línguas. No português europeu (PE), por exemplo, a concordância dessa expressão com verbos no singular e predicativos no plural ( A gente estava cansadas/cansados) é considerada gramatical, assim como a concordância com verbos na terceira pessoa do plural ( A 7 Exemplos retirados de Menuzzi (2000, p. 203-205).

gente vão ao cinema ), encontrada no dialeto micaelense (PEREIRA, 2003, p. 17 e 19). No PB, essas construções são consideradas agramaticais. Além das diferenças entre as línguas, há diferenças em uma mesma língua, as chamadas diferenças dialetais. No PB, no Rio Grande do Sul, conforme os dados de Menuzzi (2000), não há variação entre A gente vai e A gente vamos, já que esta forma é considerada agramatical. Todavia, em Alagoas, esta forma é considerada gramatical e o uso dessa variação é frequente. Dessa forma, conscientes das possíveis diferenças regionais, delimitamos nosso estudo sobre a variedade alagoana do PB. Passemos, então, a observar as relações de concordância com o pronome a gente. 2. A gente e a teoria de verificação dos traços No processo de concordância com a expressão pronominal a gente 8, nem sempre há uma correlação entre traços semântico-discursivos e traços formais. Esse pronome, apesar de se apresentar gramaticalmente no singular, pode ter interpretação semântico-discursiva de primeira pessoal do plural (nós = alguém + eu). Assim, o falante ora pode realizar concordância com traços formais, ora com traços semântico-discursivos. Esta concordância, não prevista e nem reconhecida pela GN, e, ainda, nem trabalhada por teorias formais, necessita de explicações. Menuzzi (2000), em seu trabalho, observou que a gente, em domínio local, seleciona gramaticalmente apenas o pronome reflexivo de terceira pessoa do singular, como podemos ver em (3). (3) a. A gente se viu na praia. b. *A gente nos viu na praia. O comportamento de estruturas como (3a) já é um padrão esperado, tendo em vista que ocorre concordância gramatical com todos os elementos da sentença. Em domínio não-local, não há concordância com os traços gramaticais entre a gente e o pronome reflexivo. A gente seleciona, a partir dos traços semântico-discursivos, apenas o pronome reflexivo de primeira pessoa do plural, como ilustramos abaixo. 8 Esse comportamento não é exclusivo do pronome a gente. Podemos encontrá-lo com o pronome você.

(4) a. A gente disse que o Paulo {*a\*o\*se\nos} viu na cidade 9. b. A gente disse que o Paulo e o Tiago {*a\*o\*se\nos} viram na cidade. Menuzzi conclui, portanto, que a gente em domínio local seleciona a concordância a partir de traços gramaticais, já em domínio não-local a concordância se dá apenas com traços semântico-discursivos. Conforme Costa et al (2001, p. 643), a conclusão a que chegou Menuzzi pode eventualmente receber uma explicação na linha de que é proposto em Chomsky (1986, 1995). De acordo com esta proposta, as formas anafóricas concordam com Infl, sendo movidas para I. Dado que em domínios locais, o sujeito concorda com I, é esperado que os traços gramaticais do sujeito, da flexão verbal e da forma anafórica concordem. Em domínio não-local, como a forma pronominal não é movida para I, não se espera encontrar o mesmo tipo de concordância. Contudo, analisando a gente, em domínio local, em relações de concordância com a estrutura verbo + pronome reflexivo na variedade alagoana, encontramos não só a concordância dessa expressão com pronome de terceira pessoa do singular mais verbo no singular, como em (3a), como também a construção a gente + nos + verbo no plural, como podemos conferir em (5a), e, ainda, estrutura como a apresentada em (5) b. (a gente + se + verbo no plural). (5) a. A gente nos vimos na praia. b. A gente se vimos na praia. Percebemos, assim, que a gramaticalidade de estruturas como as apresentadas em (5a) e (5b) revela-se como contra-exemplo à proposta de Menuzzi (2000), que estabeleceu que, num domínio local, a gente seleciona a concordância a partir de traços gramaticais. Dessa forma, ratificamos a afirmação de Costa et al (2001, p. 639) de que uma hipótese baseada em concordância ou verificação de traços a nível local não é facilmente sustentável, uma vez que os dois tipos de concordância podem ser encontrados a nível local. Devemos destacar, ainda, que o comportamento de estruturas como a apresentada em (5b) não segue o mesmo padrão da encontrada em (3b). Neste caso, em que a sentença é agramatical, o pronome reflexivo possui traços de pessoa e número diferentes dos traços de a gente e do 9 Exemplo retirado do trabalho de Costa et al (2001, p. 639)

verbo. No outro caso, é o verbo que possui esses traços distintos, só que isso não torna a sentença agramatical. Tal constatação pode demonstrar que, para a sentença ser gramatical, o pronome reflexivo deve possuir traços gramaticais semelhantes com, pelo menos, um dos outros elementos da sentença. Podemos resumir, portanto, que quando a seleção do pronome reflexivo pelo pronome a gente é feita a partir de traços formais, a sentença será sempre gramatical. Contudo, quando essa seleção não é feita a partir de traços formais, a sentença pode vir a ser gramatical ou agramatical. A sentença será gramatical quando a gente seleciona formalmente tanto o pronome reflexivo quanto o verbo, quando a gente seleciona semanticamente apenas o pronome reflexivo, a sentença tornar-se-á agramatical. Em outras palavras, quando a gente seleciona o pronome reflexivo a partir dos traços formais, o verbo pode ser selecionado a partir de traços formais ou não-formais. Já quando a gente seleciona o pronome reflexivo a partir de traços semânticodiscursivos, o verbo só pode ser selecionado a partir destes traços. Apesar de termos alcançado algumas considerações, os fatos observados neste trabalho, na verdade, continuam implicando vários problemas para a teoria de verificação dos traços. A saber: a presença importante de traços semântico-discursivos para a verificação dos traços em domínio local e a seleção de traços de natureza distinta no processo de concordância a nível local entre a gente e o pronome reflexivo e a gente e o verbo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Estruturas do tipo a gente + pronome reflexivo de primeira pessoa do plural + verbo no plural e a gente + pronome reflexivo de terceira pessoa do singular + verbo no plural não são exclusivas da variedade alagoana. Em grande parte do Brasil, essas construções são consideradas gramaticais. A concordância estabelecida nessas estruturas envolve não só traços gramaticais, mas também traços semântico-discursivos, uma vez que, no primeiro caso, tanto o pronome reflexivo quanto o verbo concordam com a ideia semântica do pronome a gente (eu + outras pessoas) e não com seus traços formais de terceira pessoa do singular. Já no segundo caso, a gente concorda gramaticalmente com o pronome reflexivo e semanticamente com o verbo. O problema apresentado por essas estruturas para a teoria de verificação dos traços exige dessa teoria uma explicação quanto à seleção de diferentes traços, em domínio local, para a

verificação. Além disso, faz-se necessário explicar a significância da seleção de traços semânticodiscursivos para o processo de concordância. Apesar de concordar que a teoria de verificação dos traços não consegue dar conta de forma satisfatória da expressão a gente, acreditamos que o descarte total dessa teoria não seja a melhor atitude, até porque ela parece, parcialmente, dar conta do processo de concordância estabelecido por essa expressão. Parece-nos mais interessante, assim como foi proposto por Costa et al (2001, p. 653-654), que haja uma reformulação dessa teoria, a fim de que ela dê conta do processo de concordância que seleciona os traços semântico-discursivos, quando a gente se encontra em domínio local, reconhecendo, assim, a importância desses traços em uma relação de concordância 10. REFERÊNCIAS CHOMSKY, N. Knowledge of Language: Ist Nature, Origin, and Use. New York: Praeger, 1986.. (2000). Minimalist Inquiries: the framework. In: MARTIN, R; MICHAELS, D. e URIAGEREKA, R. (Eds.) Step by step: Essays on minimalist syntax in honor of Howard Lasnik. Cambridge, Mass.: 89-155.. Derivation by Phase. In: KENSTOWICZ, M. (Ed.) Ken Hale. A Life in Language. Cambridge Mass: The MIT Press, 2001, p. 1-52. COSTA, J. et al. Concordância com a gente: um problema para a teoria de verificação de traços. Actas do XVI Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística. Associação de Linguística Portuguesa, Lisboa, 2001. p. 639-655. MENON, O. O sistema pronominal do português do Brasil. In Letras. n. 44. Curitiba, Editora da UFPR, 1995. p. 91-106. MENUZZI, S. First Person Plural Anaphora in Brazilian Portuguese: chains and constraint interaction in binding. In João Costa (ed) Portuguese Syntax. New Comparative Studies. Oxford University Press, 2000. p. 191-240. 10 Carvalho (2008), em sua tese (CARVALHO, D. S. A estrutura interna dos pronomes pessoais em português brasileiro. 2008. Tese (Doutorado em Linguística) Faculdade de Letras, Universidade Federal de Alagoas, Maceió.), propõe uma reformulação interessante dessa teoria. Uma explicação das relações de concordância com o pronome a gente a partir dessa proposta parece-nos importante, porém, deixaremos como sugestão para um próximo trabalho.

PEREIRA, S. M. B. Gramática Comparada de a gente: variação no Português Europeu. 2003. Dissertação (Mestrado em Gramática Comparada) Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa.