O PROJETO DE LÍNGUA NACIONAL EM URUPÊS DE MONTEIRO LOBATO

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Anais do VII Seminário dos Alunos dos Programas de Pós- Graduação do Instituto de Letras da UFF Estudos de Linguagem O PROJETO DE LÍNGUA NACIONAL EM URUPÊS DE MONTEIRO LOBATO Simone de Brito Corrêa Doutorado/UFF Orientadora: Vanise Gomes de Medeiros Urupês e a Ligeira Nota: historicidade e condições de produção Este trabalho de pesquisa, através do aporte teórico na Análise de Discurso de linha francesa na articulação com a História das Ideias Linguísticas pretende lançar um olhar outro sobre Monteiro Lobato, autor que se encontra comumente atrelado à literatura infantil brasileira. Mais especificamente, objetivamos situar discursivamente o dizer de um escritor e editor literário que se debruça sobre questões polêmicas da língua do/no Brasil no início do século XX. Para tanto, nossa escolha recaiu sobre o livro de contos Urupês, editado pela primeira vez em 1918. Os motivos para esta escolha serão apresentados na sequência. Tal obra surge em um contexto de polêmicas em torno do Português do/no Brasil, contexto este que já vinha se configurando desde o período pós-independência. Incluem-se aí discussões sobre a pertinência ou não de brasileirismos em obras literárias (como foi o caso das críticas dirigidas por críticos literários portugueses a José de Alencar no século precedente). Com relação à língua nacional do/no Brasil, em linhas gerais, vinham disputando espaço duas posições antagônicas: uma, de cunho unificador e homogeneizante, tendo Portugal como matriz de sentidos; e outra, filiada a um nacionalismo linguístico brasileiro e, portanto, voltada para a(s) Língua(s) Portuguesa(s) como ocorria(m) no Brasil de então. Neste contexto, a Reforma Ortográfica de 1907, proposta pela Academia Brasileira de Letras, contribui para acirrar ainda mais os ânimos, por se tratar de medida de interferência políticojurídica na língua. Neste trabalho, vamos nos ater à seção de Urupês intitulada Ligeira Nota sobre a Ortografia de Monteiro Lobato (doravante, Ligeira Nota), buscando depreender seu funcionamento discursivo e significá-la no conjunto de gestos de gramatização brasileira do [608]

Português nas primeiras décadas do século XX, no bojo de um movimento a favor da especificidade do Português do Brasil. Por gramatização, entende-se [...] o processo que conduz a descrever e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário. (Auroux, 1992, p.65). Guimarães (1996) aponta que a gramatização no Brasil se dá a partir da segunda metade do século XIX, estendendo-se pelas primeiras décadas do século XX. Segundo o mesmo, a gramatização brasileira do Português surge como um procedimento de independência com relação a Portugal. Para esta pesquisa, importam dois recortes de significação propostos pelo autor para os estudos relativos ao processo de gramatização do Português no Brasil. São eles, o que trata da especificidade do Português do Brasil em oposição ao Português de Portugal, e o que defende a unidade linguística Portugal/Brasil. Cabe ressaltar que tal perspectiva para os estudos do Português no Brasil não se encontra inscrita na tradição historiográfica. Dito de outra forma, este enfoque tem como ancoragem o conceito de historicidade. Assim, partindo do pressuposto de que a cronologia histórica por si só não dá conta de abarcar a complexidade dos processos de produção dos sentidos, tem-se que sentidos em disputa, filiados a determinados feixes de significação, são passíveis de surgir, sobressair ou sofrer apagamentos (ou silenciamentos), e ressurgir em diversas épocas, mesmo distantes em termos cronológicos. Passiani (2003) aponta que, no conto Urupês, da obra homônima, promove-se um incômodo deslocamento da imagem mítica do indígena para a triste figura do caipira Jeca Tatu, criando-se, assim, um efeito de ruptura com a idealização romântica de nossas origens. Expõe-se, com isto, uma realidade nua e crua do interior do Brasil. Além disso, na edição de 1994 do livro Urupês, a Ligeira Nota traz aspectos de uma polêmica relativa à ortografia do português do/no Brasil no início do século XX. Naquela edição, a referida seção de Urupês vinha com o seguinte fecho: Até a 36ª edição, a ortografia de Monteiro Lobato foi respeitada. A partir da 37ª edição, optou-se por seguir o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. (LOBATO, 1994, p. 11). Dentro da perspectiva dos estudos de Análise de Discurso de linha francesa, pesquisou-se, em outras edições de Urupês, a existência da mesma nota, mas com fecho que ainda respeitasse a ortografia de Monteiro Lobato. Na edição crítica de 1964, assim constava o último parágrafo da nota: Diante disso resolvemos respeitar nesta edição a ortografia de Monteiro Lobato, realmente mais simples e cômoda do que a aconselhada pela nossa Academia. (LOBATO, 1964, p. 82). [609]

Na Ligeira Nota, temos, então, um escritor literário se posicionando sobre questões relativas à língua nacional do/no Brasil do início do século XX. Em termos discursivos, o que se percebe é uma posição-sujeito alinhada com o nacionalismo linguístico brasileiro. Há ainda que se considerar que, à época do lançamento do livro de contos Urupês, Monteiro Lobato era não somente dono como também editor na Revista do Brasil, atuando como influente crivo no lançamento (ou não) de obras de vanguarda de escritores nacionais. Dadas as características acima descritas do contexto de produção (o que inclui a posição social legitimada para dizer sobre a língua Portuguesa do/no Brasil), a assunção de um posicionamento contrário à Reforma Ortográfica de 1907 produziu efeitos de sentido tais que acabaram gerando mais polêmicas. Foi o caso da querela envolvendo Visconde de Taunay, relativa à dicionarização de brasileirismos de Urupês na terceira edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1923), do português Cândido de Figueiredo. A Reforma Ortográfica de 1907 estaria regida por um princípio da simplificação. Na verdade, trata-se de uma medida político-jurídica sobre a língua, atuando no sentido de apagar diferenças ortográficas entre línguas constituídas mediante historicidades diversas: o Português do Brasil e o Português de Portugal. Funcionamento Discursivo da Ligeira Nota No dizer da Ligeira Nota sobre língua nacional do/no Brasil, foram observados dois eixos temáticos: um que estabelece um embate entre língua institucional e língua nacional; e outro que aponta para a influência exercida pela simplificação ortográfica no desenvolvimento de algumas nações europeias. No primeiro eixo, há uma oposição entre uma língua institucional, língua dos gramáticos, língua imposta por lei, e uma língua outra, concebida como a mais bela obra coletiva desse país, língua do povo, dos jornais, dos escritores mais decentes. A argumentação em favor desta última posição encontra-se ancorada no discurso da evolução das Ciências Naturais, estando este atrelado à lei natural da simplificação. Assim, temos: Uma língua está sempre se desenvolvendo no sentido da simplificação, e a reforma ortográfica foi apenas um simples apressar o passo desse desenvolvimento. Mas a criação de acentos novos, como o grave e o trema, bem como a inútil acentuação de quase todas as palavras, não é desenvolvimento para a frente e sim complicação, involução [...] (LOBATO, 1994, p. 10). [610]

Configura-se, assim, uma resistência à obrigatoriedade de novos empregos da acentuação gráfica, previstos estes na Reforma Ortográfica de 1907. Em linhas gerais, com tal medida, a Academia Brasileira de Letras, em seu papel institucional unificador da língua (Mariani, 2001, p. 99), visava a uma padronização, diante do quadro de anarquia ortográfica no Brasil da primeira metade do século XX. No entanto, na Ligeira Nota, a língua aparece regida, não pela lei institucional, mas pela lei natural: Não há lei humana que dirija uma língua, porque língua é um fenômeno natural [...]. (LOBATO, 1994, p.10). No segundo eixo temático observado na Ligeira Nota, para se dizer sobre a língua nacional do/no Brasil, recorre-se à Europa. Fomos ditos pelo olhar europeu na Carta de Pero Vaz de Caminha que, como marco escrito primeiro de nosso encobrimento, continua produzindo efeitos de sentido. Assim, temos na Ligeira Nota uma menção honrosa à Inglaterra, na qual se atribui a vitória dos povos de língua inglesa do mundo à ausência de acentos gráficos naquela língua. Neste ponto, cabe ressaltar que, neste contexto, o termo vitória estaria alinhado ao discurso da colonização (Orlandi, 1990, p. 239), na medida em que encobre os sentidos de dominação e imposição. Seguindo Auroux (1992), Guimarães (1994) assinala que [...] a gramatização foi um modo de a Europa, o ocidente, conhecer e dominar o resto do mundo. Neste caso, a vitória da Inglaterra em muito se deve à imposição político-linguística em terras conquistadas. Por outro lado, a França, retratada na Ligeira Nota pelo viés da decadência e da queda, serve como exemplo a não ser seguido pela nação brasileira: Essa gente [nossos gramáticos] quer arrastar este país a um imenso desastre futuro! Quer que tenhamos o ignominioso destino da França, a pobre vítima do excesso de acentos! (LOBATO, 1994, p. 10). Dito de outro modo, dentro desta ótica, o desenvolvimento de uma nação encontra-se atrelado, através da simplificação ortográfica, à evolução da língua. Pode-se dizer que a menção a esses países europeus reflete, também, um período em que, ainda segundo Guimarães (1996), o movimento das ideias no Brasil buscava fontes outras, que não a portuguesa. Portanto, na Ligeira Nota, vigora um silêncio quanto a Portugal: não há referências explícitas, quer à língua, quer aos grandes feitos portugueses. Desse modo, na referida seção de Urupês, a descrição rica em superlativos, com efeito suspensivo Pois não vê que a maior das línguas modernas, a mais rica em número de palavras, a mais falada de todas, a de mais opulenta literatura, a língua inglesa não tem um só acento? (LOBATO, 1994, p. 10) [611]

funciona, em termos discursivos, de modo a prestigiar uma língua outra que não a língua de Portugal. Por fim, a citação de Carolina Michaëlis (1911) A língua é a mais genial, original e nacional obra d arte que uma nação cria e desenvolve, além de fazer falar uma voz de autoridade em favor da noção da evolução das línguas naturais, constitui outros não-ditos: não é mencionada a nacionalidade portuguesa de Michaëlis (obtida via matrimônio), nem a fonte da citação (a obra Saudade Portuguesa, da mesma autora). Considerações finais Através deste trabalho, buscou-se apresentar algumas considerações sobre o projeto de língua nacional no livro de contos Urupês de Monteiro Lobato. A partir da seção Ligeira Nota, puderam ser recuperadas pistas linguístico-político-discursivas que, por sua vez, apontaram para a recorrência da intervenção do jurídico no linguístico através de instituições que apresentam uma visão unicizante de língua. Além disso, destaca-se o caráter pedagógico da Ligeira Nota: a intervenção de instituições, como a Academia Brasileira de Letras e algumas instâncias jurídicas, pode vir a impactar de forma negativa na economia das nações. Por fim, a menção a nações da Europa (bem sucedidas ou não em termos econômicos) aponta para a contradição constitutiva do sujeito que, mesmo em busca pela língua nacional do/no Brasil, continua repetindo o movimento de recorrer à matriz europeia. REFERÊNCIAS AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. 1. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. GUIMARÃES, Eduardo. Sinopse dos estudos do Português no Brasil: a gramatização brasileira. In: GUIMARÃES, Eduardo; ORLANDI, Eni. Língua e cidadania: o Português no Brasil. 1. ed. Campinas: Pontes, 1996, p. 127-138. HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1990. [612]

LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2000. LOBATO, Monteiro. Urupês. Obras completas de Monteiro Lobato. Edição crítica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1964. Vol. 1.. Urupês. 37. ed. revisada. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. MARIANI, Bethania. Colonização linguística: línguas, política e religião no Brasil (Séculos XVI a XVIII) e nos Estados Unidos da América (Século XVIII). 1. ed. Campinas: Pontes, 2004.. Língua portuguesa e realidade brasileira: o diretório de Pombal segundo Celso Cunha. Organon - Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, vol. 9, n. 23, 1995. ORLANDI, Eni Pulcinelli. História das ideias linguísticas: construção do saber metalinguístico e constituição da língua nacional. Campinas: Pontes, 2001. Política linguística no Brasil. 1. ed. Campinas: Pontes, 2007. Terra à vista: discurso do confronto Velho e Novo Mundo. 1. ed. São Paulo: Cortez, 1990. PASSIANI, Enio. Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil. 1. ed. Bauru: EDUSC, 2003. PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Tradução por Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. 1. ed. Campinas: Pontes, 2004. SILVA, M. Superando a anarquia ortográfica : a Academia Brasileira de Letras e a Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa (1907). Web-Revista Sociodialeto, Campo Grande, v. 4, n. 12, mai. 2014. Disponível em: [http: //www.sociodialeto.com.br] Acesso em: 3 out. 2016. SOUSA, Lucília Maria Abrahão e; MEDEIROS, Vanise. Em Pessoa: dobras na e da língua. Polifonia, Cuiabá, v. 22, n. 31, p. 115-133, jan-jul 2015. [613]