Macho versus macho um olhar antropológico sobre práticas homoeróticas entre homens em São Paulo

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Transcrição:

Gênero, Corpo e Diversidade Sexual (Sexualidades). ST 51 Camilo Albuquerque de Braz Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Palavras-chave: Gênero Sexualidade Homoerotismo Macho versus macho um olhar antropológico sobre práticas homoeróticas entre homens em São Paulo Digressões contextuais... i No Brasil, a noção de direitos sexuais é apropriada pelos movimentos homossexual e lésbico no início deste século, quando seus documentos e publicações a tomam como ponto de partida para enfrentar questões como as (hetero)sexualidades não-reprodutivas e a invisibilidade das homossexualidades (Facchini, 2006). É possível até indicar que as práticas homoeróticas passam a ser reconhecidas e parcialmente desestigmatizadas ii. Segundo Judith Butler, o risco que se corre ao se pensar na legitimação das uniões homossexuais exclusivamente via Estado é o de vermos diversas práticas sexuais e relacionamentos, que ultrapassam a esfera da lei, tornarem-se ilegíveis ou insustentáveis, e novas hierarquias emergirem no discurso público (Butler, 2003B). O interesse sobre as práticas aqui mencionadas reside em discutir e trazer elementos empíricos para a reflexão e os debates sócio-antropológicos sobre temas relacionados à sexualidade, às novas formas de erotismo e sociabilidade nelas envolvidas e suas convenções. Uma das principais dificuldades que encontro na tentativa de delimitação de meu objeto de estudos é o risco da essencialização que corro ao nominalizá-lo iii. Minha saída temporária e contingente para escapar a esse dilema é então buscar classificações de maior neutralidade e inclusão. Provisoriamente, posso afirmar que se trata de pensar acerca das discursividades, convenções e normatividades que permeiam o universo dos homens que fazem sexo com homens fora das esferas da conjugalidade na cidade de São Paulo iv. Mais especificamente, o sexo casual e/ou grupal realizado em espaços criados para essa finalidade ou em encontros privados, envolvendo elementos fetichistas ou s/m v. Sem desconsiderar a importância da obra de Michel Foucault por retirar a possibilidade de naturalização e mostrar a historicidade do dispositivo da sexualidade (Foucault, 1977), é sabido o fato de que algumas teóricas feministas incluindo a própria Butler (2003) o criticam por operar com certas categorias pré-discursivas, como os corpos e os prazeres vi. A questão seria, então, pensar na produção discursiva da corporalidade em contextos sociais diversos, levando em conta a atualização de marcadores diferenciados que operam em sua materialização, numa perspeciva relacional e interseccional. 1

Digressões analíticas... Nos anos 90, assiste-se à profusão de chamados estudos gays e lésbicos, que, inspirados em autoras como Gayle Rubin (2003), clamam pela distinção analítica entre gênero e sexualidade, ao mapearem criticamente a estratificação sexual presente nas sociedades modernas. A noção de estratificação sexual pode ser extremamente rentável em termos analíticos, quando se trata de estudar as práticas homoeróticas aqui referidas. Acredito, porém, que um dos desafios colocados nessa pesquisa seja justamente pensar formas de articular (e não separar) não apenas gênero e sexualidade, mas uma série de outros marcadores de diferença na análise. E, nesse sentido, talvez as idéias de Judith Butler possam fornecer um caminho. Butler (2003) aponta o Gênero um aparato discursivo, uma matriz de inteligibilidade cultural vii. A identidade de gênero (relação coerente entre sexo, gênero, prática sexual e desejo) seria o efeito de uma prática reguladora que se pode identificar como heterossexualidade compulsória. A repetição de tais normas estaria fadada a persistir como mecanismo da reprodução cultural das identidades. É a partir daí que a autora se questiona sobre o tipo de repetição subversiva que poderia questionar a própria prática reguladora da identidade viii. Pensando na existência de uma matriz de inteligibilidade cultural hegemônica, que opera por meio da reiteração (em práticas e discursos) de normas que estabelecem a coerência dos corpos, talvez as práticas que me proponho estudar possam ser descritas como exemplares de descontinuidades, uma vez que romperiam com a coerência estável entre sexo, gênero e desejo. De certa forma, esses homens seriam corpos abjetos dentro de uma matriz heteronormativa (Butler, 2002). Pensar em abjeção em relação a uma matriz cultural hegemônica não significa, contudo, que não possamos pensar na criação de matrizes alternativas de inteligibilidade, nas quais a coerência seria dada por outros modos de arranjo entre categorias diversas ix. A investigação das possíveis rearticulações ou atualizações das convenções de sexo, gênero, corporalidade e sexualidade entre os adeptos de práticas homoeróticas não-conjugais se transforma, dessa perspectiva, numa tarefa antropológica relevante. Digressões etnográficas... Analisando o mercado gay em algumas metrópoles dos Estados Unidos, Gayle Rubin fala do sucesso espetacular dos empresários gays na criação de uma economia homossexual diversificada (Rubin, 2003) x. São Paulo é uma metrópole que conta, atualmente, com um expressivo mercado gay, em que a segmentação também está presente (ver França, 2005). Dentre as possibilidades existentes, há um vasto e diversificado mercado voltado para o sexo casual e outras práticas eróticas entre homens xi. Rubin realizou um estudo sobre a comunidade gay leather de São Francisco, nos EUA 2

(Butler & Rubin, 2003). Leather, para a antropóloga, seria uma categoria mais ampla que inclui homens gays que praticam o sadomasoquismo, fazem a penetração anal com o punho, são fetichistas, másculos e preferem parceiros masculinos, sendo o couro (leather) um símbolo polivalente que teria sentidos diferentes para diferentes indivíduos e grupos. Dentro dessa comunidade, haveria uma articulação ou conexão entre preferências sexuais não convencionais e o masculino, o que não ocorreria entre heterossexuais ou lésbicas, onde essas coisas seriam arranjadas de uma forma diferente. Seria, portanto, uma forma bastante peculiar e interessante de combinar determinadas práticas sexuais com a rearticulação de convenções de sexo, sexualidade e gênero xii. Esses homens codificariam os sujeitos desejantes/desejados e os objetos desejantes/desejados como masculinos. Nesse sistema, um homem pode ser subjugado, reprimido, torturado e penetrado e, ainda assim, manter a sua masculinidade, desejabilidade e subjetividade. Um dos locais que pretendo investigar é um clube de orgias privado, que chamarei aqui de Clube X xiii. Há uma série de itens que devem ser preenchidos para que um homem interessado possa ser membro dele: cadastrar-se (via site); ter uma aparência e uma atitude masculina ; ter o peso proporcional à altura; ter entre 18 e 55 anos; ser resolvido e open mind. Em sua página da Internet, afirma-se que ele é voltado para homens interessados em homens. Homens com jeito de homem, com voz de homem e com postura e vestimentas masculinas. É esse discurso valorativo da masculinidade o meu foco de interesse aqui. Especificamente, tenho em mente uma das práticas mais recorrentes nesse universo, que ora aparece denominada como Bola da Vez, ora como Bitch da Festa. A idéia é que um ou mais homens sejam penetrados pelo maior número de ativos possível numa mesma tarde ou noite xiv. A pesquisa empreendida até aqui, que se baseia sobretudo em incursões a páginas de Internet e em bate-papos eletrônicos, sugere que a valorização do macho como objeto de desejo permeia o universo de práticas homoeróticas em contextos bastante diversos xv. Na maioria dos perfis cadastrados numa página de busca de parceiros para sexo e/ou relacionamento afetivo-sexual que tenho pesquisado, os usuários buscam conhecer caras machos, com postura masculina, sem trejeitos ou afetações. Rejeitam quaisquer atributos - corporais, gestuais, comportamentais, relativos a sentimentos, sensações ou expectativas que possam ser relacionados à idéia de feminilidade. Tanto aqueles que se identificam como ativos quanto os passivos buscam parceiros afetivo-sexuais machos. E quase todos os usuários que buscam encontrar parceiros para sexo grupal em que um homem deva ser penetrado por outros homens, persiste a exigência de que o passivo seja macho. Danilo mora em São Paulo, na Vila Mariana, é branco, tem 30 anos e formação universitária. Freqüenta espaços destinados a práticas s/m entre homens. E promove em sua 3

residência algumas festas privadas - encontros para brincadeiras eróticas e sexo grupal - entre amigos. Numa de nossas conversas, Danilo disse que não gosta do Clube X, por achar um tanto quanto machista e preconceituosa a postura deles de limitar o acesso àqueles considerados machos. Descrevendo, porém, os encontros que realiza em sua casa, afirmou que o objeto de desejo é o macho. Em alguns desses encontros, um dos amigos é penetrado por todos os demais. É nesse contexto que o macho se transforma na bitch da festa. Foda entre machos. É assim que Túlio nomeia as práticas das quais participa. Ele tem 23 anos, é pós-graduando, branco. Mora em Campinas. E participa de orgias em clubes, saunas e em encontros com amigos em São Paulo. Para ir ao Clube X, precisou passar pelo cadastro e ser aceito como possível membro. Sempre que vai a esses espaços, Túlio é penetrado por muitos homens em uma mesma noite. Essa é uma prática comum nesse universo. Segundo Túlio, essas práticas deslocam a polaridade ativo/masculino versus passivo/feminino uma vez que o passivo precisa ser muito macho para agüentar passar por elas. Considerações finais... Existe uma vasta tradição de estudos sobre as homossexualidades no Brasil, que remonta à década de 80 do século passado em que tem a obra de Peter Fry (1982) como referência. A partir dessa matriz de pensamento, teríamos um sistema classificatório em que as práticas homoeróticas podem ser pensadas a partir de dois modelos contrastantes. O primeiro seria o de modernidade e igualdade, que remete a homens de camadas médias que se auto-identificam enquanto gays ou entendidos. O segundo seria de tradição e hierarquia, composto por homens de camadas populares, cuja auto-identificação se daria (dentre outros fatores) a partir da posição assumida nas relações sexuais. Nesse modelo, as bichas seriam os passivos, considerados homossexuais, em oposição aos bofes, que se valeriam de uma suposta ambi-sexualidade (Duarte, 2004). Esse modelo vem sendo problematizado por pesquisas recentes em São Paulo, que apontam para um processo de circulação dos ideais igualitários entre pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo de diferentes camadas sociais e colocam a necessidade de se repensar o entendimento da materialização dos corpos nesses contextos, levando em conta a intersecção entre diferentes categorias e marcadores (Facchini, 2006). Meu argumento é que as nuances relativas às convenções presentes no sexo entre machos podem ajudar nessa discussão. Por um lado, a hiper-valorização da masculinidade ou a criação discursiva do macho como objeto de desejo entre esses homens pode servir para pensar a rearticulação ou o deslocamento de convenções de sexo, gênero e desejo que comporiam a matriz heteronormativa culturalmente hegemônica. Como se esses atos corporais servissem para pensar também o 4

masculino como pastiche. Por outro lado, fica evidente também que tal processo implica na criação de novos modos de hierarquização e de inteligibilidade. Um de meus intuitos é perceber como são contextualmente materializados os sujeitos, ou seja, são criadas as possibilidades de existência deles, quando as práticas aqui referidas e o universo onde ocorrem são tomados como foco de investigação. A hipótese que quero levantar é que a produção do macho como objeto de desejo é um dos elementos dessa materialização e que nela estariam articulados não apenas marcadores de gênero e sexualidade, ou convenções relativas a posições sexuais (ativo/passivo), mas uma série de outros marcadores, como por exemplo os de classe xvi. Concordando com boa parte do pensamento de inspiração antropológico-feminista contemporâneo, que pensa na diferença como categoria analítica (Moore, 1996) e aponta a necessidade de se pensar a intersecção entre diversos marcadores na produção contextual e relacional das subjetividades (Brah, 1996), acredito que é apenas a partir de uma posição relacional e interseccional que seja possível entender quais as nuances implicadas no sexo entre machos e que, para essa compreensão, olhar para os machos em questão seja tão importante quanto pensar no versus que os relaciona. Referências BRAH, Avtar, Difference, Diversity, Differentiation in: Cartographies of Diaspora: Contesting Indentities, Longon/New York: Routledge, 1996. BUTLER, Judith, Cuerpos que importan Sobre os límites materiales y discursivos del sexo, Buenos Aires/Barcelona, México: Paidos, 2002., Problemas de Gênero feminismo e subversão da identidade, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., O parentesco é sempre tido como heterossexual?, in: Cadernos Pagu (21), Campinas: Unicamp, 2003B: pp. 219-260. BUTLER, Judith & RUBIN, Gayle, Tráfico sexual entrevista (Gayle Rubin com Judith Butler), in: Cadernos Pagu (21), Campinas: Unicamp, 2003, pp. 157-209. DOUGLAS, Mary, Pureza e Perigo, São Paulo: Perspectivas, 1976. DUARTE, Luiz Fernando Dias, A Sexualidade nas Ciências Sociais: leitura crítica das convenções, in: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sérgio (orgs.), Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras, Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2004. FACCHINI, Regina, Entrecruzando diferenças: corporalidade e identidade entre mulheres com práticas homoeróticas na Grande São Paulo, 25ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, Goiânia: ABA, 2006. 5

FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade 1 a vontade de saber, Rio de Janeiro: Graal, 1977. FRY, Peter, Da Hierarquia à Igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil, in: Para Inglês Ver: identidade e política na cultura brasileira, Rio de janeiro: Zahar, 1982. GREGORI, Maria Filomena, Prazer e Perigo: notas sobre feminismo, sex-shops e s/m, in: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sérgio (orgs.), Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras, Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2004. MACCLINTOCK, Anne, Maid to Order Commercial S/M and gender power, in: Gibson, Pamela; Gibson, Roma, Dirty Looks Women, pornography, power, London: BFI Publishing, 1994., Couro Imperial Raça, travestismo e o culto da domesticidade, in: Cadernos Pagu (20), Campinas: Unicamp, 2003. MOORE, Henrietta, Antropología y feminismo, Madri: Cátedra, 1996. PISCITELLI, Adriana, Comentário, in: Cadernos Pagu (21), Campinas: Unicamp, 2003, pp. 211-218. PISCITELLI, Adriana; GREGORI, Maria Filomena; CARRARA, Sérgio, Apresentação: Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras, in: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sérgio (orgs.), Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras, Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2004. RUBIN, Gayle, Pensando sobre sexo: Notas para uma teoria radical da política da sexualidade, in: Cadernos Pagu, (21), Campinas: Unicamp, 2003, pp. 01-88. SIMÔES, Júlio Assis, Homossexualidade Masculina e Curso da Vida: pensando idades e identidades sexuais, in: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sérgio (orgs.), Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras, Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2004. SIMÕES, Júlio Assis & FRANÇA, Isadora Lins, Do gueto ao mercado. in: GREEN & TRINDADE (orgs.), Homossexualismo em São Paulo e outros escritos, São Paulo: Ed. da Unesp, 2005. i Esse artigo é o primeiro fruto de minha pesquisa de Doutorado, orientada pela professora Dra. Maria Filomena Gregori, em curso na Área de Estudos de Gênero do Doutorado em Ciências Sociais da UNICAMP. ii As recentes reivindicações à família e à legalização do casamento gay por parte de homossexuais são exemplos desse processo de normalização e vêm reacendendo o debate sobre os limites da sexualidade e o sentido da transgressão para o erotismo (Piscitelli, Gregori & Carrara, 2004). iii Poderia chama-lo de sexo hardcore entre homens, evocando a associação entre essas práticas e um certo conteúdo violento ou duro. Seguir as indicações de Gayle Rubin e chama-lo de universo gay leather (Butler & Rubin, 2003). Ou mesmo nominaliza-lo como sexo sujo entre homens, inspirando-me em Mary Douglas (1976) para evocar o seu possível caráter liminar, marginal, fronteiriço ou perigoso, o que me autorizaria a pensar nas possíveis rearticulações das convenções que busco entender. A questão é que nenhuma dessas designações seria absolutamente verdadeira ou falsa e por isso não me sinto autorizado e talvez nunca venha a estar a utilizar nenhuma delas. 6

iv v vi vii Sigo aqui as indicações de Júlio Simões em torno das controvérsias que envolvem as formas de categorização utilizadas para referir e classificar práticas erótico-sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O uso da expressão homens que fazem sexo com homens seria, desse modo, uma tentativa de neutralizar a carga política e cultural de termos como homossexual ou gay (Simões, 2004). S/m é uma abreviação para sado-masoquismo. Essa sigla aparece em parte da bibliografia como designando jogos eróticos inspirados em fantasias de dominação e submissão (Gregori, 2004; McClintock, 1994, 2003). Tomo a liberdade de utilizar aqui a expressão de modo inclusivo, entendendo que o que é designado como s/m é contextualmente variado, sendo um de meus objetivos de pesquisa entender quais os elementos que configuram o s/m entre homens em São Paulo da perspectiva de seus sujeitos. A esse respeito, ver Piscitelli, Gregori & Carrara (2004). O efeito substantivo do gênero (marcador) seria performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do Gênero (matriz). viii São essas idéias que lhe permitem tomar as drag-queens como exemplos de práticas potencialmente subversivas, pois seus atos corporais exporiam o feminino como um pastiche. ix O fato de que a chamada cultura gay metropolitana cria em seu interior formas próprias de inserção e abjeção é algo que vem sendo apontado em estudos contemporâneos realizados em São Paulo (ver Simões, 2004). x Na atualidade, assiste-se à segmentação desse mercado, ao incorporar novas preferências e demandas homoeróticas (Gregori, 2004). xi Muitas boates e casas noturnas contam com um espaço específico para trocas erótico-sexuais (os chamados dark-rooms). Há também muitas saunas voltadas para homens que fazem sexo com homens, bem como cruising-bars (bares que contam com cabines privativas, nas quais os freqüentadores podem realizar trocas erótico-sexuais) e cinemas-pornôs. Além disso, há espaços intitulados como clubes de orgia entre homens. Alguns deles são abertos ao público em geral. Em outros, para participar dos encontros é preciso ser cadastrado. Nesses clubes, são realizadas festas e encontros temáticos diversificados. xii O desenvolvimento de tal comunidade seria parte de um longo processo histórico no qual a masculinidade teria sido reivindicada, afirmada e reapropriada pelos homossexuais homens, nos EUA (Butler & Rubin, 2003). xiii O site do clube traz os roteiros das festas organizadas pelo grupo. Os participantes das festas devem, obrigatoriamente, concordar em não vestir nenhuma peça de roupa bottomless. Os temas das festas são variados, envolvendo uma série de fetiches do universo gay masculino. Assim, há festas estudantinas, para rapazes mais novos; Boots, que tem a ver com uniformes, especialmente militares; Paizão, em que rapazes mais novos realizam trocas eróticas com homens mais velhos; Noite dos Mascarados; etc. Há também festas sadomasoquistas, bem como um espaço especialmente criado para o exercício dessas práticas, dentro do clube. Trata-se, portanto, de uma comunidade gay para adeptos de sexo casual e grupal, incluindo elementos fetichistas e sadomasoquistas. xiv Isso pode envolver desde a penetração ânus-genital como por vibradores de tamanhos variados, acessórios diversos ou pelo punho (fist-fucking). Dependendo do que é previamente estabelecido entre os participantes, pode-se ou não utilizar preservativos. No segundo caso, trata-se de uma prática conhecida entre os adeptos como bare-backing. xv Este é um exemplo dentre muitos outros: uma das comunidades do Orkut, rede virtual para contatos eletrônicos que se transformou em febre no Brasil, tem o sugestivo título de Gay sim...bicha, NUNCA e conta com quase 6,5 mil membros cadastrados. xvi Como exemplo, podemos pensar na rejeição, por parte de determinados segmentos da chamada cultura gay paulistana, de garotos pobres moradores da periferia apelidados pejorativamente como bichinhas poc poc ou bichas pão-com-ovo. A esse respeito ver, por exemplo, Simões & França(2004). 7