UMA ELEGÂNCIA QUE INVOCA O FEMININO: O PORCO-ESPINHO. O que da invocação da voz, a invocação mais original, que transmite ao sujeito



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Transcrição:

UMA ELEGÂNCIA QUE INVOCA O FEMININO: O PORCO-ESPINHO Renata Mattos Doris Rinaldi Porque a Arte é a vida, mas sob em um outro ritmo. Renée Michel/Muriel Barbery Cabe à psicanálise investigar como alguém se torna mulher. Sigmund Freud O que da invocação da voz, a invocação mais original, que transmite ao sujeito o Che vuoi? que o faz entrar na linguagem, pode ser escutado como uma invocação para o torna-ser mulher? O o que queres de mim?, para o qual não há resposta, mas torna possível a resposta singular que é o próprio sujeito, podemos pensá-lo como um o que queres de mim enquanto mulher?, torção que faz com que, sendo não-toda, como propõe Lacan (1972-1973/1975), uma mulher possa se colocar na via amorosa? De menina à escuta de algo em si enigmático a partir do encontro com uma mulher que se redescobre mulher. Uma leitura possível ao que surge entre as imagens do filme O porco-espinho, de Mona Achache, baseado no romance A elegância do porco-espinho, de Muriel Barbery, ao qual igualmente recorreremos. Duas mulheres. Uma, ainda menina, Paloma, de 11 anos, decidida a se matar no dia do próprio aniversário, não sem antes registrar para si o absurdo da vida no filme, a partir de um documentário no qual narra em voz alta o absurdo da vida; no livro, pela escrita de dois diários simultâneos, numerados em série: pensamento profundo e diário do movimento do mundo (BARBERY, 2006). Outra, Renée, escondida no estereótipo de zeladora-padrão de um prédio de classe média alta em Paris, e que, longe do olhar dos outros, passa suas noites lendo incontáveis livros, de literatura à filosofia, no refúgio de sua biblioteca. Duas mulheres que assim surgem/ressurgem com a chegada de um novo morador, estranho e familiar, M. Ozu,

no edifício onde ambas habitam, poucos dias antes da data escolhida por Paloma para de fato desaparecer, não mais precisando se esconder como freqüentemente fazia. Retomar o nome do livro coloca em cena uma dimensão sutil e delicada. Se Freud (1921/2006), buscando subsídios na fábula schoppenhauriana sobre o grupo de porcos-espinhos, aponta que, face ao Outro e no convívio com os outros, há que se encontrar uma distância salutar, a criação desse espaço íntimo, que a linguagem mesma permite, passa por um ato ao mesmo tempo ético e estético, elegante quiçá, fazendo com que o se fazer ouvir da pulsão invocante se coloque em cena. Ou seja, é preciso passar de um mal-estar constitutivo a um fazer com esse ponto que concerne a todos por uma via singular, a da diferença ética do sujeito do inconsciente, se fazendo ouvir exatamente a partir desse ponto de falta. É igualmente Freud (1923/2006) que nos indica que o sujeito é chamado a responder enquanto homem ou mulher a partir de uma falta, intimamente ligada à castração, e que lemos a partir da psicanálise lacaniana como a falta de inscrição no psiquismo da diferença sexual. O que não será sem efeitos para a mulher, ou melhor, para a feminilidade, como bem ressalta Freud (1925/2006). A mulher será aquela que, muito precocemente, já na relação de investimento amoroso com a mãe, se defrontará com a dimensão de castração, entrando no complexo de Édipo exatamente neste ponto que, no caso dos meninos, é o ponto de chegada, não o de partida. O enigma de sua própria feminilidade já lhe aparece de saída, o que nos leva a subverter a pergunta freudiana O que demanda a menina de sua mãe? (FREUD, 1931/2006, p. 237), tomando a menina-mulher na posição de sujeito: O que queres de mim enquanto mulher?. É desse enigma que uma mulher poder-se-á constituir e lançar sua voz singular no mundo.

A vida dentro de um aquário: ouvir sem ser ouvida Ser ouvido, ouvir, se fazer ouvir. Três tempos da constituição do sujeito pela perspectiva da pulsão invocante, que não se encerram uma vez que são percorridos a cada abertura e fechamento do circuito pulsional, que exigem, sempre, um novamente a se fazer. Mas para que um terceiro tempo possa ser feito ou refeito, é necessário também um Outro que não se ensurdeça frente ao desejo do sujeito. No caso de Paloma, sua família e sua própria mãe parecem ignorá-la; no caso de Renée, ela se torna invisível para os moradores do prédio onde trabalha. É significativo como a menina busca tornar evidente seu não-lugar na família, escondendo-se de todos. É deste modo, escondida, que Paloma anuncia na primeira cena do filme igualmente do filme que ela mesma faz sua decisão bem pensada de se suicidar, de não mais ficar em um mundo em que o destino, ela enuncia em seguida sua teoria, é acabar num aquário. Porém, ela pretende fazer tal ato construindo algo, já que, para ela, o que conta é o que se faz no momento em que se morre. Nesse ato de se esconder, sem deixar de escutar e observar o movimento do mundo a seu redor, Paloma se depara com um primeiro tempo lógico, um instante de ver, tal como proposto por Lacan (1945-1999). Porém, podemos mesmo presumir que se trata de um instante que se precipita em uma conclusão, sem o intervalo necessário do tempo de compreender que permite a antecipação de uma certeza no momento de concluir. Será preciso a chegada de um terceiro, estranho, capaz de escutar a voz que Paloma lança, para que uma separação aí ocorra, recolocando a dimensão de um terceiro tempo pulsional e de um terceiro tempo lógico. No que se dá a ouvir ao Outro, algo pode voltar ao sujeito na relação com o outro: ser ouvido enquanto sujeito, desejante, e, indo além, como o filme/livro nos indica, poder ser invocada a um se fazer enquanto mulher.

A arte na vida: incluir o outro pelo belo laço com o Outro Propomos brevemente nos ater sobre como a arte aparece na vida de Paloma e Renée como uma possibilidade de se deixar tocar por aquilo que ela transmite: uma resposta ao Outro pelo saber-fazer com o objeto, colocando uma via de construção de um laço que lhe possibilita uma abertura face ao outro. É mesmo pela arte que a curiosidade de Paloma face à Renée se acentua, tornando viável uma aproximação entre elas. Ao entrar sozinha na casa da zeladora, Paloma se vê diante da literatura nos livros de uma farta biblioteca que a instiga e lhe dá a impressão de que Renée é como um porco-espinho: com o exterior repleto de espinhos, uma verdadeira fortaleza ; no interior, refinada, solitária e terrivelmente elegante (BARBERY, 2006, p. 175). Acompanhamos no filme como Paloma busca uma escrita de si por via da arte, em especial o desenho, que a ajuda a elaborar a não-escuta de sua mãe, mulher que igualmente não escuta a si mesma, tomando flores e antidepressivos como seus interlocutores privilegiados. São esses objetos que a menina colherá para levar adiante a idéia de se suicidar. O desenho surge como uma escrita possível da confusão de vozes familiares que Paloma procura elaborar, ao imprimir no calendário por ela feito na parede de seu quarto para contar os dias até sua morte, vestígios do que viveu a cada dia. É interessante notar como o tema do peixe se faz ali presente. No livro de Muriel Barbery, encontramos ainda uma passagem ímpar para pensarmos como a arte se apresenta à Paloma como uma possibilidade não apenas de elaboração, mas igualmente de abertura a um fazer com o outro/outro. Em seu diário, Paloma, maravilhada, escreve sobre sua experiência no coral do colégio onde estuda: A cada vez é um milagre. (...) A cada vez, é parecido, eu tenho vontade de

chorar (...). É excessivamente belo, excessivamente solidário, excessivo e maravilhosamente comum a todos. Não sou mais eu mesma, sou parte de um todo sublime ao qual os outros também pertencem e me pergunto sempre (...) por que essa não é a regra cotidiana em vez de um momento excepcional do coral. (...) Finalmente, me pergunto se o verdadeiro movimento da vida não é o canto (BARBERY, 2006, p. 229-230). Lógica semelhante, da arte como abertura, é vivenciada por Renée. Se, por um lado, é nos livros, e mesmo em alguns filmes, que ela se refugia dentro de seu esconderijo de zeladora e de sua aparência de porco-espinho, é igualmente por esse traço que ela se faz ouvir a M. Ozu enquanto mulher, deixando transparecer, ou mesmo escapar, algo de sua verdade singular. Uma frase de Ana Karenina, de Tolstoi, escritor que dá nome a seu gato, a faz ser novamente ouvida como uma mulher capaz de amar. Sua máscara de zeladora momentânea e pontualmente cai. Para além dela, sua elegância de mulher surge face a um homem. Renée pode assim, não sem dificuldades, renascer em sua feminilidade. E mesmo como uma mulher aos olhos da sociedade, como é possível perceber na cena em que Renée e M. Ozu saem para jantar e uma moradora do prédio não a reconhece, por nunca tê-la visto. Uma mulher ouvida enquanto tal, que pode passar a se fazer ver a partir disso. Tragicamente, contudo, após esse renascimento, Renée morre atropelada por um carro. Acaso drástico que faz Paloma se deparar com a morte, não mais a morte sonhada, mas o inefável da morte, do jamais, do nunca mais, que a faz perceber que morrer é não mais ser vista pelos que a amam, não mais ver quem se ama. Este é o momento decisivo que possibilita uma mudança de posição da personagem. Do mistério do que reaparece ao surgimento de uma outra via: um peixe que sai do aquário Foi igualmente o acaso que marcou o encontro entre Renée e M. Ozu. Do diálogo que faz eco à Anna Karenina, uma possibilidade de abertura amorosa e

retomada de uma feminilidade. Ele a presenteia com este livro e, após a morte desta, o mesmo é dado à Paloma. Com esse ato, frente ao impacto da morte, da perda de Renée, o suicídio que Paloma almejava fazer se transforma em uma morte simbólica enquanto menina, se abrindo nela uma invocação para o feminino. Há algo que se transmite e que faz enigma, fazendo com que ela escolha a vida, o que a faz pressentir algo da ordem amorosa. No início do filme, Paloma afirma que vai se matar e que seguirá fazendo as atividades, criando. No meio do filme, ela pensa ter matado o peixe de irmã com um comprimido de anti-depressivo que havia furtado da mãe, jogando-o fora pelo ralo. O peixe, porém, sobrevive e é recolhido no andar de baixo por Renée. O filme termina retomando isso. Após encontrar o peixe na casa já esvaziada de Renée, Paloma se depara com uma questão: "o que ele fazia ali?", algo que lhe escapa ao sentido. Nesta passagem, representada pelo circuito que faz o peixe, de uma a outra, o aquário se quebra, fazendo com que morte e renascimento se entrelacem no destino dessas duas mulheres. Por fim, ouvimos a voz de Paloma: "o que importa não é morrer, mas o que se faz no momento em que se morre. Renée, o que você fazia no momento de morrer? Você estava pronta para amar". Para Paloma, essa confrontação com a morte, com o real que ali se apresenta, com a força impetuosa da castração, tem função de fazê-la aceder a uma certeza antecipada sobre a sua própria condição feminina a ser construída. Um momento de concluir que a faz renascer, tal como Renée, renascida, buscando para si uma via de lidar com o impossível, com o jamais que ele põe em causa, pela beleza, que, como Lacan (1959-1960/1986) esclarece, tem uma ligação estrutural com o desejo. Dirigindo-se à Renée, em seu último pensamento profundo, Paloma lhe escreve sobre como ela e M. Ozu, após sua morte, pararam por alguns instantes,

simultaneamente, ao escutar uma música que de longe vinha e que os levou até ela. A mulher que Paloma então se tornava, conclui: Pensando sobre isso, (...) me digo que, finalmente, talvez seja isso a vida: muito de desespero mas também alguns momentos de beleza em que o tempo não é mais o mesmo. É como se as notas de música fizessem uma espécie de parênteses no tempo, uma suspensão, um além aqui mesmo, um sempre no jamais. Sim, é isso, um sempre no jamais. Não tenha receio, Renée, eu não me suicidarei (...). Pois, por você, eu perseguirei daqui em diante os sempre no jamais. A beleza nesse mundo (BARBERY, 2006, p. 409-410). Insistir no sempre no jamais e viver a beleza nesse mundo, enquanto sujeito, enquanto mulher. Para além e fora de qualquer aquário. Uma via que a arte nos mostra, num ritmo singular. BIBLIOGRAFIA BARBERY, M. L élégance du hérisson. Paris: Éditions Gallimard, 2006. FREUD, S. (1921). Psicologia das massas y análisis del yo. In: Obras completas, vol. 18. Buenos Aires: Amorrortu, 2006.. (1923) La organización genital intantil (Una interpolación en la teoria de la sexualidad) In: Obras completas., vol. 19. Buenos Aires: Amorrortu, 2006.. (1925) Algunas consecuencias psíquicas de la diferencia anatómica entre los sexos In: Obras completas, vol. 19. Buenos Aires: Amorrortu, 2006.. (1931) Sobre la sexualidad femenina. In: Obras completas, vol. 21. Buenos Aires: Amorrortu, 2006. p. 223-244. LACAN, J. (1945) Le temps logic In: Écrits I. Paris: Éditions du Seuil, 1999.. (1959-1960) Le Séminaire, Livre VII L éthique de la psychanalyse. Paris, Éditions du Seiuil, 1986.. (1972-1973) Le Séminaire, Livre XX Encore. Paris, Éditions du Seiuil, 1975. SOBRE AS AUTORAS Renata Mattos Psicanalista, doutoranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ, bolsista

CAPES/PDEE na Université de Nice (FR). Investiga a articulação entre psicanálise e música pela constituição do sujeito e do objeto voz, com publicações sobre este tema. E-mail: renatamattos.rm@gmail.com Doris Rinaldi Psicanalista, Doutora em Antropologia Social pela UFRJ, professora adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ, atuando no Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Procientista da UERJ, Pesquisadora do CNPq, autora do livro A ética da diferença: um debate entre psicanálise e antropologia e de inúmeros artigos. E-mail: doris_rinaldi@yahoo.com.br; doris@uerj.br