2398 O AGIR DO PROFESSOR NO ENSINO DA ESCRITA: TRABALHO REAL Maria Vieira Monte Filha UFC 0 Introdução O Interacionismo Sociodiscursivo (doravante ISD) se volta hoje para analisar as condições das práticas de linguagem na procura de relações entre o domínio da linguagem e do agir humano. Estudos recentes como Amigues (2004), Abreu Tardelli (2006), De Souza e Mota (2007), Dias (2007), Guimarães (2007) têm focalizado a ação do professor em situação de trabalho. Levando em consideração esses e outros trabalhos, desenvolvemos o projeto de pesquisa de mestrado cujo objetivo geral é investigar o contexto de produção e o agir do professor no ensino da escrita. Assim consideramos importante analisar como o contexto de produção é estabelecido e conceituado pelos agentes da situação em sala de aula para perceber de que maneira a recuperação do contexto de produção influencia no texto produzido pelo aluno. Desejamos confirmar que o contexto de produção serve de base orientadora para a ação de linguagem e exerce um papel decisivo nas tomadas de decisões sobre a organização do texto. Investigamos também o agir do professor, mais especificamente o trabalho real dele, dentro dessa perspectiva. Segundo Bonckart (1999), a língua apresenta dois aspectos: um interno (regras fonológicas, lexicais e morfossintáticas) e um externo (ações de linguagem, condições de produção dessas ações e seus efeitos no meio humano). De acordo com o autor tanto para a análise como para o ensino das produções linguísticas, as condições de produção do texto devem vir antes do estudo dos seus aspectos internos. Para entendermos o processo pelo qual uma pessoa produz um texto, segundo o ISD, é necessário analisar três parâmetros, a saber, a situação de ação de linguagem, a ação de linguagem e o empréstimo do intertexto 1. 1 Atividade e Ação de linguagem O ISD pretende ser mais do que uma ciência linguística, psicológica ou sociológica, ele quer ser uma corrente da ciência do humano. Um dos seus postulados é que as práticas de linguagem situadas (ou os textos-discursos) são os principais instrumentos do desenvolvimento humano tanto em relação às capacidades do agir quanto aos conhecimentos. Para o ISD, a linguagem humana é percebida em duas dimensões: de um lado é constitutiva do psiquismo especificamente humano, ou seja, está relacionada aos mecanismos de construção das experiências individuais do homem em interação social; e de outro lado é constitutiva das relações sociais por fornecer um ponto de vista contextual e social das experiências humanas. Essa visão sobre a linguagem é respaldada pelas teorias derivadas de uma psicologia orientada pelos princípios epistemológicos do Interacionismo Social. O ISD aborda quatro problemáticas centrais que são: a análise epistemológica e metodológica do estatuto, da pertinência e das condições de descrição dos fenômenos ou 1 Segundo Bronckart (1999), o intertexto é constituído pelo conjunto de gêneros de textos elaborados pelas gerações precedentes e são construídos sócio-historicamente.
2399 unidades de natureza praxiológica (agir, atividade, ação, etc.); a análise das condições de formatação do agir humano em diferentes gêneros de textos produzidos sobre situações de trabalho (documentos de prescrição, entrevistas, textos produzidos em autoconfrontação etc.); a análise lingüística das unidades, estruturas e processos textuais que desempenham um papel particular na expressão das diferentes dimensões do agir; o desenvolvimento de dispositivos e processos de formação explorando os resultados dessas pesquisas empíricas. As atividades e as produções de linguagem, em ambiente social, desempenham um papel central, pois são elas que levam o desenvolvimento humano na direção de um pensamento consciente. No quadro dessa atividade social de linguagem e no quadro da formação social, desenvolvem-se ações de linguagem dos indivíduos particulares. A ação de linguagem desenvolve-se em dois níveis. No primeiro, sociológico, como uma porção da atividade de linguagem do grupo, recortada pelos mecanismos gerais das avaliações sociais e imputadas a um organismo humano individual. No segundo nível, psicológico, como o conhecimento disponível no indivíduo particular das diferentes facetas da sua própria responsabilidade na intervenção verbal. Em síntese, podemos definir atividade de linguagem e ação de linguagem da seguinte forma: O ISD define atividade de linguagem como um fenômeno coletivo de elaboração e prática de circulação de textos, cujo objetivo é estabelecer uma compreensão do contexto e das propriedades das atividades em geral. Quanto à noção de ação de linguagem, o ISD a define como uma parte dessa atividade, cuja responsabilidade é imputada a um ato singular. (BALTAR, 2007, p.147) A ação de linguagem integra as representações dos parâmetros do contexto de produção 2 e do conteúdo temático 3, tais como um agente determinado as mobiliza quando realiza uma intervenção verbal. Essas ações estão intimamente ligadas à utilização das formas comunicativas que se encontram em uso numa determinada formação social. 2 O agir 4 do professor O ISD analisa as condições das práticas de linguagem com o intuito de procurar as relações entre o domínio da linguagem e do agir humano. Bronckart (2006) considera duas maneiras de agir (geral e de linguagem). Elas mantêm uma relação de reciprocidade e de trocas constantes. O agir geral é constituído de atividades coletivas que organizam as interações dos indivíduos com o meio ambiente (BRONCKART, 2006, p. 138). Elas são diversificadas e se transformam ao longo da história em razão das necessidades de sobrevivência do homem e dos instrumentos disponíveis no social. 2 O contexto de produção pode ser definido como o conjunto dos parâmetros que exercem influência sobre a forma como um texto está organizado. (...) Esses parâmetros estão reagrupados em dois conjuntos: o primeiro refere-se ao mundo físico e o segundo, ao mundo social e ao subjetivo. (BRONCKART, 1999, p. 93). 3 Conforme Bronckart (1999), o conteúdo temático de um texto pode ser definido como o conjunto de informações que nele são explicitamente apresentadas, isto é, que são trazidas no texto pelas unidades declarativas da língua natural. 4 O termo agir foi proposto por Bronckart como um termo neutro no sentido de que apenas a partir da análise, receberá conotações diversas dependendo da posição que o protagonista do texto ocupar.
2400 O agir de linguagem é a atividade de linguagem em uso. Na dimensão social, este tipo de atividade serve para criar normas, valores, bem como para planejar, regular e avaliar as atividades coletivas. Ela possibilita, na dimensão individual, a apropriação e a interiorização da linguagem. Esse conceito do agir de linguagem favorece a interpretação do agir do homem no contexto, sempre localizado no tempo e no espaço, constituído de atividades sociais (história, cultura, trabalho, economia etc) e de atividades individuais (pensamento consciente e subjetividade). O agir da linguagem (texto) ao ser criado é permeado de valores históricos e socioculturais que dão origem aos gêneros de determinada língua. O agir de linguagem é agir no texto (no sentido de discurso). Dessa forma o homem, ao proferir um texto, reflete as atividades coletivas (econômicas, sociais e interativas da sociedade) e as ações individuais de quem fala ou escreve. Portanto o texto, como entidade coletivamente constituída, não pode ser estável, porque os contextos social, histórico e linguístico, em determinado tempo e lugar, condicionam o discurso e as formas de interação. Dentro dessa perspectiva, Bronckart (2006) considera o trabalho como eixo central da existência humana, isto é, uma das formas de agir da espécie humana. A atividade de ensino tem sido considerada como um trabalho e suas características passaram a ser objeto de pesquisas tanto de caráter didático como científico. Resultados acerca do trabalho do professor evidenciam a especificidade desse trabalho e, sobretudo, a sua relativa opacidade, isto é, a dificuldade de descrevê-lo, caracterizá-lo e, até mesmo, de simplesmente fala dele. (BRONCKART, 2006, p.204) Segundo Bronckart (2006), a análise do trabalho envolve quatro dimensões. A primeira dimensão analisada é o trabalho real, dos comportamentos verbais e não verbais que são produzidos durante a realização de uma tarefa; a segunda dimensão é a do trabalho prescrito. Ela é abordada com base na análise de documentos prefigurativos oriundos das instituições ou empresas, que visam planificar, organizar e regular o trabalho que os actantes devem realizar; a terceira dimensão é a do trabalho interpretado pelos actantes, que é abordado no quadro da análise de entrevistas: entrevistas anteriores à realização da tarefa e entrevistas posteriores a essa realização; a quarta dimensão é a do trabalho interpretado por observadores externos. Ela é abordada a partir da análise dos textos de descrição do trabalho real produzidos pelos pesquisadores. (BRONCKART, 2006, P.216) Bronckart e Machado (2004) apresentam procedimentos de como analisar o agir nos textos. Resumidamente os tipos de agir são o agir-situado, o agir-canônico, o agir-evento passado e o agir-experiência. O agir situado é contextualizado na proximidade do espaço-tempo com a situação presente, colocando em cena os elementos que antecedem o agir e os elementos do agir que está para acontecer. O agir-canônico não se apresenta contextualizado. Ele é apresentado através do destaque das características próprias da prática do agente como um modelo teórico do agir. Desse tipo de registro de agir, os contextos, o professor e o aluno são indefinidos. Esse agir parece se embasar em uma espécie de lógica interna à ação ou por referência a uma norma. O agir-evento passado é uma história ilustrativa do agir de que se fala. O grau de contextualização é forte, o locutor faz um apelo a uma situação anterior, relacionando-a com os elementos do contexto. O agir-experiência incide sobre dimensões pessoais implicadas internas e próprias à prática do agente. Dependendo do texto analisado, as categorias podem sofrer ainda subdivisões.
2401 Nossa pesquisa leva em consideração as quatro dimensões, mas centraliza-se no trabalho real do professor. Nos estudos de Pereira e Graça (2007), foi constatado que o texto realizado pelo aluno em sala de aula é influenciado pelos determinismos escolares. Ele produz o texto não em função do contexto real para que o texto seria produzido, na realidade, produz quase que exclusivamente em função do desejo do professor. O estudo do agir do professor nessa didática de escrita está verificando até que ponto seu trabalho real pode influenciar nesses determinismos. 3 Metodologia e cenário da pesquisa A pesquisa etnográfica pode ser definida como um modelo de investigação qualitativo que considera o ambiente natural como fonte direta e primária de seus dados. Optamos assim por realizar uma pesquisa qualitativa, de base etnográfica. O material de coleta, nesse tipo de pesquisa, direciona o seu foco no sentido de compreender e interpretar um determinado processo e não o produto ou o resultado de certo fenômeno e/ou fenômenos associados a esse processo. Na nossa prática como professora de língua portuguesa de ensino fundamental e médio durante cinco anos e através dos depoimentos de professores de escolas da rede particular e municipal de ensino de Fortaleza/Ce, verificamos que há uma grande dificuldade no ensino de produção textual; uma vez verificada essa problemática e realizadas leituras acerca do assunto, vimos que é preciso diagnosticar quais são os elementos envolvidos. Após entrevistas com diversos professores, optamos por assistir e gravar às aulas do 6º ano do Ensino Fundamental em uma escola municipal de Fortaleza. Os alunos nessa série enfrentavam, segundo o professor, muitas dificuldades na escrita. Consideramos pertinente investigar possíveis fatores desse problema nessa série. Por se tratar de uma questão complexa, delimitamos como principais categorias de análise o contexto de produção no ensino da escrita e o agir do professor, principalmente, como esse agir está relacionado com a realização dos textos dos alunos. O corpus utilizado em nossa pesquisa é constituído de dez aulas, cada uma de cinqüenta minutos, de língua portuguesa cujo foco é a produção textual. Os textos dos alunos corrigidos pelo professor no final da etapa também farão parte do corpus de nossa pesquisa. Queremos investigar todo o processo do ensino da escrita até chegar ao produto final, texto corrigido. Contudo nossa ênfase, por se tratar de uma pesquisa etnográfica, é no processo e não apenas no texto final produzido pelo aluno. Atualmente estamos no período da pesquisa que consiste no tratamento dos dados. Considerações preliminares Resultados parciais apontam que a explicitação do contexto de produção e o trabalho real do professor no ensino da escrita são determinantes para a apropriação e produção do gênero textual solicitado em sala de aula. Não podemos esquecer que, em situação escolar, ocorre um desdobramento dos gêneros, pois deixam de ser apenas um instrumento de comunicação e passam também a ser um objeto de ensino/aprendizagem. (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004). Parcialmente também se verifica que as orientações do professor para a produção textual são desconsideradas durante o estabelecimento dos critérios de correção dos textos. Ao finalizar nossa pesquisa que está em andamento, teremos mais conhecimentos acerca da relação entre o trabalho real do professor, os alunos e os textos produzidos por eles. Essa pesquisa nos possibilitará obter mais elementos para entender os processos envolvidos no ensino/aprendizagem de língua materna. Acreditamos também que nossa pesquisa pode proporcionar um melhor entendimento do trabalho docente na atual sociedade e pode apontar novos olhares para verificar a influência do
2402 agir do professor nos seus alunos e mais especificamente nas suas produções textuais. Por último, acreditamos que esta pesquisa pode contribuir para a Lingüística Aplicada com relação à discussão que vem se construindo no Brasil sobre o papel do professor em sala de aula Referências ABREU TARDELLI, L.S. Aportes para compreender o trabalho do professor iniciante em EAD. 2006. 196p. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada e Estudos da linguagem) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. AMIGUES, R. Trabalho do professor e trabalho de ensino. In: MACHADO, A. R. (org.). O ensino como trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina, Eduel, 2004, p.167 197. BALTAR, M. O conceito de tipos de discurso e sua relação com outros conceitos do ISD, in: MACHADO, A.R.; GUIMARÃES, A.M.M.; COUTINHO, A. (orgs). O interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007. p.145 160. BRONCKART, J. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sóciodiscursivo. São Paulo, EDUC, 1999. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006. ; MACHADO, A. R. Procedimentos de análise de textos sobre o trabalho educacional. In: MACHADO, A. R (org.). O ensino como trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina: Eduel, 2004. p. 131-165. DE SOUSA, L.V; MOTA, T.M.F. O agir do professor no trabalho com crianças do I e II ciclos. In: INTERCÂMBIO DE PESQUISAS EM LINGÜÍSTICA APLICADA, 16, 2007, São Paulo. Cadernos de Resumos. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. Simpósio. Disponível em http://www.pucsp.br/inpla. DIAS, D.L. O trabalho do professor de língua materna na universidade.. In: INTERCÂMBIO DE PESQUISAS EM LINGÜÍSTICA APLICADA, 16, 2007, São Paulo. Cadernos de Resumos. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. Comunicação. Disponível em http://www.pucsp.br/inpla. DOLZ, J.; SCHNEUWL. B. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. GUIMARÃES, A.M.M. A importância de uma visão micro na análise do agir docente. In: INTERCÂMBIO DE PESQUISAS EM LINGÜÍSTICA APLICADA, 16, 2007, São Paulo. Cadernos de Resumos. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. Simpósio. Disponível em <http://www.pucsp.br/inpla.> PEREIRA, L.A; GRAÇA, L. Da conceptualização do contexto de produção e da sua produtividade na Didáctica da Escrita. In: MACHADO, A.R.; GUIMARÃES, A.M.M.; COUTINHO, A. (orgs). O interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas. Campinas, SP, Mercado de Letras, 2007.