O MOVIMENTO FEMINISTA E O FEMINICÍDIO COMO REFLEXO DO DIREITO PENAL SIMBÓLICO

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Transcrição:

O MOVIMENTO FEMINISTA E O FEMINICÍDIO COMO REFLEXO DO DIREITO PENAL SIMBÓLICO Ana Claudia da Silva Abreu, Mestre em Direito do Estado - UFPR anaclaudia.silva@gmail.com Othon Raphael Sacks Burak, Acadêmico do 8º Período othonburak28@gmail.com Faculdade Campo Real Guarapuava-PR Resumo: O movimento feminista, visando a emancipação das mulheres e a igualdade de direitos entre os sexos, atua através de várias frentes. No afã de proteger as mulheres, sobretudo quando são vítimas da violência de gênero, o movimento feminista advoga o uso do Direito Penal máximo, incrementando o discurso punitivista. São exemplos, a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) que coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher e, mais recentemente, a Lei nº 13.104/2015 que alterou o Código Penal para tornar qualificado o homicídio quando praticado por razões da condição de sexo feminino, além de tê-lo incluído no rol dos crimes hediondos. Pretende-se avaliar se o Direito Penal é um meio adequado para a proteção e emancipação dos direitos das mulheres ou se, na verdade, estariam os movimentos punitivistas fazendo-se uso, tão somente, do Direito Penal simbólico. Palavras-chave: Movimento Feminista, Feminicídio, Direito Penal Simbólico. Introdução Recentemente, a Lei 13.104/2015, de 9 de março de 2015, alterou o artigo 121 do Código Penal passando a prever, no inciso VI, a prática de homicídio qualificado quando praticado por razões da condição de sexo feminino, além de tê-lo incluído no rol dos crimes hediondos. Desde a edição da Lei nº 11.343/2006 (Lei Maria da Penha) observa-se o uso do Direito Penal para a proteção das mulheres, sobretudo quando vítimas de violência, a qual ocorre, na maioria dos casos, no âmbito doméstico e familiar. Inobstante as alterações legislativas supracitadas, pretende-se, com o presente trabalho, avaliar se o Direito Penal é, de fato, um instrumento eficiente para a proteção dos direitos das mulheres e para coibir a discriminação de gênero. Dessa forma, com suporte em pesquisa bibliográfica e com aporte teórico na Criminologia Crítica, objetiva-se avaliar se os movimentos feministas estariam ou não se utilizando do discurso punitivista de forma meramente simbólica. Objetivos Visando alcançar o fim proposto, o trabalho foi dividido nos seguintes objetivos: inicialmente, ainda que de forma breve, será analisada a evolução da proteção jurídica das mulheres, dando enfoque à proteção penal e à legislação recente; depois, será apresentada a Lei 13.104/2005 e analisado o crime de feminicídio; por fim, o enfoque será nas funções do Direito Penal (declaradas e não declaradas) e no seu uso meramente simbólico pelos movimentos feministas.

Método e técnicas de pesquisa Para abordar o presente tema, utiliza-se o método dedutivo e a técnica de pesquisa documental indireta, visando, com base na doutrina especializada sobre o tema, avaliar a relação entre os movimentos feministas e o Direito Penal simbólico. Resultados A mulher, no que tange à dimensão das relações sociais, sempre é colocada em uma posição inferior em relação ao homem. Isso se deu, sobretudo, em razão de uma cultura patriarcal, segundo a qual o homem é o provedor do lar, sendo à mulher reservado tão somente o ambiente doméstico cuidado com o lar e com os filhos. Dessa forma, por intermédio na divisão de papeis sociais, foi estruturada essa distinção entre os sexos, em que o público cabia ao masculino enquanto o privado coube às mulheres, sendo-lhes destinado um papel de inferioridade, criando-se, assim, os estereótipos do masculino e do feminino. Obviamente que o Direito, como um reflexo da sociedade, não ficou alheio a essas distinções. Segundo Alessandro Baratta (1999, p. 28), as distorções androcêntricas da ciência e do direito vêem o seu fundamento na própria estrutura conceitual dos dois sistemas, como demonstra a própria análise histórica. Ao escrever sobre o tema, Maria Lucia Karam (2015) assinala que, em pleno século XX, a ideologia patriarcal e a diferença entre gêneros não restaram plenamente superadas. Pelo contrário, (...) em muitas partes do mundo, especialmente em alguns países da Ásia e da África, a discriminação contra as mulheres e sua posição de subordinação ainda se fazem intensamente presentes. O Direito nada mais é do que um dos instrumentos que legitimam essa divisão entre o homem e a mulher. Desde o início, a lei civil preocupou-se em limitar os direitos da mulher, sobretudo o seu poder de decisão que era, na verdade, confiado ao seu pai ou ao seu marido. Como não lhe cabia a esfera pública, tampouco o Direito Penal preocupavase com a sua proteção. A maioria dos crimes praticados contra as mulheres ocorria, justamente, no campo social em que lhe foi confiado: o âmbito doméstico e exatamente por isso, não havia a intervenção estatal. O sistema de controle dirigido exclusivamente à mulher (no seu papel de gênero), é o informal, aquele que se realiza na família (BARATTA, 1999, p. 46). Para explicar a menor atuação do Direito Penal em relação às mulheres, Alessandro Barata (1999, p. 49-50) acentua: O fato de o sistema de justiça criminal possuir como destinatários, sobretudo, sujeitos desempenhadores de papéis masculinos e, somente com caráter excepcional, de papéis femininos esclarece o porquê, de modo muito melhor do que qualquer teoria etiológica ou biológica, de sua infinitamente menor incidência sobre a população feminina. A partir do reconhecimento da igualdade entre homens e mulher, na Constituição Federal de 1988, esse cenário começa a sofrer paulatinas mudanças. A violência de gênero, que até então estava dentre as cifras ocultas da criminalidade, confiada à esfera privada, passa a ter um tratamento diferenciado pelo Estado. Pode-se apontar como o ápice desse movimento o surgimento da Lei n. 11.340/2006, que pretende ser o principal instrumento legislativo de proteção contra a violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei veio atender ao estabelecido

na Convenção de Belém do Pará e Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, das quais o Brasil é signatário. O movimento feminista visa a consagração dos direitos das mulheres, luta pela direito à cidadania, pela conquista do âmbito público, pela emancipação das mulheres e, sobretudo, pela igualdade de gênero. A Lei Maria da Penha nasce com o objetivo de atender a essa demanda do movimento feminista e apresenta-se como uma importante arma no combate à violência contra a mulher. Inobstante, a luta pela intervenção estatal no combate à violência de gênero fundamenta um discurso criminalizador e a utilização máxima do Direito Penal. Apreciando o tema, Maria Lucia Karam (2015) exalta a opção criminalizadora centralizada constante da Lei Maria da Penha, motivada pela pressão dos movimentos feministas. Tal sistemática privilegia: (...) a sempre enganosa, danosa e dolorosa intervenção do sistema penal como suposto instrumento de realização daqueles direitos fundamentais, como suposto instrumento de proteção das mulheres contra a discriminação e a opressão resultantes de relações de dominação expressadas na desigualdade de gêneros. O movimento feminista utiliza o Direito Penal como uma forma de empoderamento do feminino e advoga o recrudescimento das normas penais e processuais penais para o enfrentamento da violência. Sob o ponto de vista de que a violência contra a mulher é banalizada, fundados em um sentimento de impunidade e fomentados pelo discurso midiático que requer uma máxima intervenção penal, advoga-se a emancipação feminina por meio de um discurso criminalizador e recrudescedor. Nesse sentido, é possível apontar a Lei 13.104/15, que passa a considerar hipótese de homicídio qualificado ter sido o crime praticado contra mulher por razões da condição de sexo feminino. Essas razões estariam presentes quando o crime envolver violência doméstica e familiar ou quando houver menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Inicialmente, cumpre que se faça a seguinte distinção: feminicídio não se confunde femicídio, termos que são comumente empregados como sinônimos, mas que têm significados distintos. Enquanto aquele significa matar uma mulher pelo simples fato de ser mulher este (por motivo de gênero), o femicídio é o homicídio de mulher, ou seja, recebe essa denominação por ser a vítima do sexo feminino. A partir da Lei 13.104/2015 o homicídio praticado contra a mulher que envolva violência doméstica e familiar ou o menosprezo à condição da vítima (ser mulher) passou a ser qualificado, além de ter sido incluído no rol dos crimes hediondos. Avaliada a distinção entre feminicídio e femicídio e apontadas as principais alterações promovidas pela novel legislação pergunta-se: Essa mudança era efetivamente necessária? A resposta penal irá, de fato, diminuir os casos de violência contra a mulher? A intervenção punitiva representa um meio efetivo de combate à discriminação de gênero? A resposta só pode ser negativa. Inicialmente e mais especificamente em relação à Lei 13.104/15, essa alteração legislativa é manifestamente desnecessária. Matar uma mulher pelas simples condição de ser ela mulher nada mais é que preconceito e, como tal, configura um motivo vil, repugnante, que já estava abrangido pela qualificadora do motivo torpe e como tal já era crime hediondo. Ainda, matar a mulher em situações que envolvam violência doméstica e familiar já configura uma circunstância agravante, que foi inclusive acrescentada pela Lei Maria da Penha.

A previsão específica do feminicídio nada trouxe de novo ou muito pouco acrescentou à legislação vigente. Trata-se de um exemplo claro de uso simbólico do Direito Penal. A Lei foi publicada em março deste ano, apresentando-se como um presente simbólico no mês em que se comemora do Dia Internacional da Mulher. As pretensões de criminalização tão festejadas pelo movimento feminista nada mais são que o uso simbólico do Direito Penal o qual traz, inicialmente, uma sensação de tranquilidade e segurança o que é, na verdade uma ilusão. Ao invés de diminuir os crimes, criam-se mais delitos e, como o Estado não dá conta, incrementa-se ainda mais a sensação de impunidade e com ela a insegurança, tratase, na verdade, de um ciclo vicioso. Ao conceituar o Direito Penal simbólico, Vera Pereira Regina de Andrade (2003, p. 293) frisa que (...) trata-se precisamente de uma posição entre o manifesto (declarado) e o latente ; entre o verdadeiramente desejado e o diversamente acontecido; e se trata sempre dos efeitos e consequências reais do Direito Penal (...). E continua: (...) Afirmar assim que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções latentes predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica (e não empírica) destas. A função simbólica é inseparável da instrumental à qual serve de complemento e sua eficácia reside na aptidão para produzir um certo número de representações individuais ou coletivas, valorizantes ou desvalorizantes, com função de engano (...). Não é função do Direito Penal fazer política social, ou seja, não é ele um instrumento idôneo para a efetivação da emancipação feminina pois só deve intervir quando estritamente necessário. Nilo Batista (2001, p. 86), citando Munoz Conde, defende a pena como a ultima ratio: (...) o direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica são objeto de outros ramos do direito (...). Isso sem contar que o Direito Penal, na verdade, realizada a função velada de reprodução das mazelas sociais e a criminalização fomentada pelos movimentos feministas contribui para essa nefasta reprodução. Alessandro Baratta (2000, p. 12), sobre o atuar simbólico, destaca o risco de transformá-lo em um instrumento de administração de situações particulares, de riscos excepcionais, ou melhor, em um instrumento de resposta contingente a situações de emergências concretas. Sobre a ação do movimento feminista e o discurso criminalizador, Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p. 47) assevera que: O sistema penal não pode, portanto, ser um fator de coesão e unidade entre as mulheres, porque atua, ao contrário, como um fator de dispersão e uma estratégia excludente, recriando as desigualdades e preconceitos sociais. O que importa salientar, nesta perspectiva, é que redimensionar um problema e reconstruir um problema privado como um problema social, não significa que o melhor meio de responder a este problema seja convertê-lo, quase que automaticamente, em um problema penal, ou seja, em um crime. Enquanto as funções declaradas do Direito Penal são a proteção de bens jurídicos e a pretensa ressocialização do condenado, na verdade, a intervenção penal realiza as funções veladas de aumento da criminalidade e, como pode-se inferir dos altos índices de reincidência, está bem longe da ressocialização. Eugenio Raúl Zaffaroni (2013, p. 103/104) assinala que a pena, para atingir os seus objetivos previamente estipulados, deve cumprir uma função de natureza

preventiva particular, eis que quando esta se limita a função simbólica, de prevenção geral, tem-se sanção (...) inconstitucional, violadora de direitos humanos, e, consequentemente, não se justifica a sua imposição (...). A Lei 13.104/2015, com o fim de coibir a discriminação de gênero, criou a figura do crime de feminicídio e introduziu no ordenamento jurídico brasileiro uma diferença de tratamento entre os gêneros, mesmo quando praticado o mesmo crime. Esse empoderamento via Direito Penal, ao invés de evitar a violência contra a mulher apenas a fomenta. Marcus Valério XR (2014) destaca que: O conceito de Feminicídio, como uma pretensão de vitimar e eliminar mulheres por conta apenas de seu gênero se relacionando até ao Genocídio, é uma falsificação histórica, uma fraude sociológica e uma impostura intelectual que subverte por completo a estrutura da realidade em nome de uma ideologia que parte de pressupostos absolutamente falsos e só pode levar a resultados nefastos. (Entre elas querer, em nome da igualdade, declarar que a vida feminina é um bem jurídico mais valioso que a masculina, um verdadeiro ratiocídio, um assassinato da razão!) A colocação da mulher em constante posição de vítima dificulta que ela seja vista como sujeito de direitos e, pior ainda, apenas reproduz e fortifica a imagem que o papel social que foi conferido às mulheres: de sexo frágil, carente de especial proteção por parte do Estado. Discussões O fato de haver um grave problema social discriminação de gênero, não significa que ele seja necessariamente um problema penal e que encontre a sua solução por intermédio da intervenção penal. O uso do Direito Penal máximo não é apropriado para problemas domésticos e familiares e, por essa razão, acaba por representar seu uso de forma meramente simbólica, dando a falsa aparência de que a partir dessas leis as mulheres estariam protegidas. Não cabe ao Direito penal a função pedagógica de ensinar o respeito às mulheres e ao feminino. Salutar as reflexões de Vera Regina Pereira de Andrade (1997, p. 48): Até que ponto é um avanço para as lutas feministas a reprodução da imagem social da mulher como vítima, eternamente merecedora de proteção masculina, seja do homem ou do Estado? É óbvio que nós somos vítimas, mas até que ponto é produtivo, é progressista para o movimento, a reprodução social dessa imagem da mulher como vítima recorrendo ao Estado? ou, em outras palavras, de que adianta correr dos braços violentos do homem (seja marido, chefe ou estranhos) para cair nos braços do Estado, institucionalizado no sistema penal, se nesta corrida do controle social informal ao controle formal, as fêmeas reencontram a mesma resposta discriminatória em outra linguagem? Deve-se buscar soluções para além do sistema penal, rompendo-se com o paradigma penalista tradicional (e patriarcal) de que a mulher é sempre a vítima e de que seus problemas são resolvidos com um maior rigor penal. Considerações Finais Os movimentos punitivistas têm uma importância indiscutível no combate à violência contra a mulher. Porém, no afã de promover a defesa às mulheres e

combater a discriminação de gênero inutilmente recorrem ao discurso criminalizador como uma forma de empoderamento do feminino, representando um falacioso discurso de emancipação da mulher. O resultado é o seu oposto: o Direito Penal oferece uma resposta meramente simbólica e apenas abranda a sensação de insegurança por alguns instantes. O problema continua sem solução até porque a solução não será encontrada via Direito Penal. Mas há um efeito ainda mais nefasto: a reprodução legal da mulher em constante condição de vítima e em posição de inferioridade. A Lei 13.104/15 mostra-se, portanto, inútil e desnecessária, não traz nada de novo, pelo contrário, reproduz um discurso punitivista e paternalista que em nada contribui ao movimento feminista e menos ainda ao Direito Penal. Referências ANDRADE, Vera Regina Pereira de. AIlusão de Segurança Jurídica Do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2003.. Criminologia e Feminismo: Da Mulher como Vítima à Mulher como Sujeito de Construção da Cidadania. Sequência. UFSC, Florianópolis, 1997. n. 35. p. 42-49. BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal: lineamentos de uma teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. ano 8. n. 29. jan-mar.. O paradigma de gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 19-80. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro. Editora Revan, 2001. ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIRANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2013. KARAM, Maria Lúcia. Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas. Disponível em: http://justificando.com/2015/03/13/osparadoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas/. Acesso em março de 2015. XR, Marcus Valério. O Feminicídio é um Ratiocídio. Disponível em http://br.avoiceformen.com/cultura-misandrica/o-feminicidio-e-um-ratiocidio/. Acesso em julho de 2015.