RESENHA * PODERÁ A ESCOLA SER JUSTA E EFICAZ? Todos os direitos, inclusive de tradução, são reservados. É permitido citar parte de artigos sem autorização prévia desde que seja identificada a fonte. A reprodução total de artigos é proibida. Os artigos só devem ser usados para uso pessoal e não comercial. Em caso de dúvidas, consulte a redação: revistafacitec@facitec.br. A e-revista Facitec é a revista eletrônica da FACITEC, totalmente aberta, inaugurada em Janeiro de 2007, com perfil acadêmico, é dedicada a professores, pesquisadores e estudantes. Para mais informações consulte o site. e-revista Facitec 2007 Faculdade de Ciências Sociais e Tecnológicas * Vice-diretora da Faculdade de Ciências Sociais e Tecnológicas - FACITEC/DF. Doutoranda e Mestre em Educação pela Universidade Católica de Brasília. E-mail: janete@facitec.br.
Marcel Crahay é Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Liège. É professor das Faculdades de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Liège e da Universidade de Genebra. É também presidente da Associação Internacional para a Avaliação do Rendimento Escolar. É autor, entre outros, das obras Peut-on lutter contre l échec scolaire? (1996), Une école de qualité pour tous (1997) e Pshychologie de l education (1999). Além disso, publicou vários artigos, especialmente sobre o tema da desigualdade escolar. Antes de aprofundar a leitura do livro Poderá a escola ser justa e eficaz?, é preciso lembrar o objetivo da obra, citado pelo autor já na introdução: reunir o máximo de dados empíricos a fim de possibilitar um ensino ao mesmo tempo justo e eficaz. Ele acrescenta que a obra não é composta apenas por questões científicas, mas há também debates ideológicos, afinal, à ciência cabe esclarecer os pressupostos axiológicos, ao mesmo tempo em que clarifica as investigações empíricas. O livro está estruturado em oito capítulos, além da introdução e da conclusão. Na introdução, intitulada Os desafios da escola democrática, o autor inicia as questões a serem trabalhadas no decorrer da obra, apontando aspectos históricos sobre a democratização da escola. Crahay afirma que a escola existe desde a antiguidade, mas até o século XIX, estava reservada a uma minoria de crianças. A massificação do ensino (escola obrigatória para todos) só se desenvolveu de fato após a Segunda Guerra Mundial. Para Crahay, a escola tem duas funções básicas: socializar e educar o indivíduo. Aliás, é desta forma que todos os sistemas de ensino estão organizados. A escola básica é o nível em que as funções de educação e de socialização predominam e precede a escola de especialização, nível em que predomina a função de qualificação dos indivíduos e de distribuição das posições sociais.
O primeiro capítulo, Que justiça para a escola básica?, apresenta alguns conceitos necessários ao bom entendimento da obra. Inicialmente, o autor explica a diferença entre as questões de fato e questões de direito. As primeiras são aquelas de natureza empírica e as outras são as questões valorativas. Em seguida, difere a justiça meritocrática da justiça corretiva. A justiça meritocrática é fundamentada no princípio da igualdade proporcional ou geométrica, de Aristóteles. Assim, todos na sociedade devem ser recompensados ou valorizados segundo seus próprios méritos. Dessa forma, é válido dar notas maiores aos alunos de melhor desempenho. A justiça corretiva é fundada no princípio da igualdade aritmética, de Aristóteles. Neste caso, não são consideradas as contribuições e os méritos dos indivíduos para a sociedade. Ao contrário, deve-se evitar aumentar as desigualdades naturais e sociais entre eles. A escola, então, deve promover a igualdade máxima para todos ao nível das competências dominadas. O autor apresenta, em seguida, três formas principais de justiça em educação: igualdade de oportunidades; igualdade de tratamento; e igualdade de conhecimentos. A igualdade de oportunidades ou o justo reconhecimento dos méritos prevê a existência de aptidões naturais, admite resultados desiguais, desde que sejam proporcionais às aptidões iniciais e defende a igualdade de acessos para as crianças com aptidões iniciais iguais, sejam elas de meios favorecidos ou não. A igualdade de tratamento tem por objetivo oferecer igual qualidade de ensino pelas escolas de um mesmo sistema, homogeneizar as condições de ensino e, consequentemente, tornar equivalentes, de uma escola para outra, a taxa de enquadramento dos alunos, a qualidade e a diversidade dos locais e dos equipamentos pedagógicos (manuais, biblioteca, computadores etc.). A premissa da igualdade de conhecimentos é que o ensino deve ser organizado conforme os objetivos a serem atingidos por todos. A
igualdade de conhecimentos afirma que as características individuais, sejam elas cognitivas ou afetivas, são modificáveis. Defende-se a discriminação positiva, a Pedagogia do Domínio dos Conhecimentos, a avaliação formativa, bem como outros mecanismos que visam reduzir as desigualdades iniciais. No capítulo dois, Escola e Classes Sociais, o autor faz algumas considerações sobre o Relatório Coleman. Esta foi uma pesquisa realizada por determinação legal, conduzida em 1965. A conclusão de Coleman foi que todos os alunos de minorias étnicas, com exceção das minorias de origem asiática, tiveram resultados mais fracos nos testes. Houve ainda um agravamento das diferenças, principalmente entre alunos brancos e negros, confirmando a teoria de que a escola amplia as diferenças relacionadas com a origem social. Ressalta-se que o Relatório Coleman não concluiu que a escola e o ensino são ineficazes, mas que a escola é incapaz de garantir a igualdade de oportunidades. Há várias críticas ao Relatório Coleman, especialmente no que se refere à forma como a análise de regressão foi aplicada, mas apesar das críticas, a principal conclusão de Coleman ainda é tida como verdadeira. Ainda no capítulo dois, o autor afirma que as desigualdades relacionadas às origens sociais são reforçadas pela escola: as crianças com status socioeconômico mais elevado frequentam as melhores escolas que, por sua vez, são melhores porque têm alunos de origens sociais mais elevadas. Dessa forma, confirma-se a teoria da reprodução, de Bourdieu e Passeron, segundo a qual a escola é uma reprodução da sociedade. Sobre a reprovação, Crahay conclui, a partir da ampla revisão de literatura, que há mais efeitos negativos que positivos, pois ela torna-se um dispositivo de amplificação das diferenças iniciais de competências. No terceiro capítulo, intitulado Poderá a escola reduzir as desigualdades de êxito, o autor apresenta três possíveis soluções na luta
contra a desigualdade escolar. São elas: a supressão da reprovação ao longo da educação básica (passagem automática); a criação de um tronco comum no início do ensino secundário (estrutura única) e a setorização do campo escolar para limitar a liberdade de escolha das escolas pelos pais (mapa escolar). O autor afirma que essa setorização só tem efeito sob duas condições: 1) que a distribuição populacional no território não seja muito marcada pelas diferenças sociais (variável impossível de ser controlada). 2) que a rede de escolas privadas seja de pouca densidade para não interferir na organização do conjunto do sistema. Pesquisas demonstraram que os países que adotaram essas ações são tão eficazes quanto os outros e se mostraram claramente mais igualitários. Esses parâmetros de organização do sistema escolar possibilitam reduzir as desigualdades sem afetar de forma negativa a eficácia do conjunto e sem prejudicar os melhores alunos. Ressalta-se que os dados empíricos parecem demonstrar a necessidade de combinação dos três aspectos. O capítulo seguinte, Será que a escola oferece a todos as mesmas ocasiões de aprender, apresenta pesquisas sobre a gestão do tempo escolar em diferentes turmas de um mesmo sistema de ensino nos contextos anglo-saxônico, belga e de Genebra, em diferentes níveis escolares (pré-escola, primário e secundário). Supõe-se que todos os alunos devem beneficiar-se do mesmo ensino, ou seja, ser submetidos ao mesmo currículo. Todos os alunos devem ter a possibilidade de construir as competências definidas pelo programa. Ademais, considera-se o tempo letivo como indicador do princípio de igualdade de tratamento entre escolas. As conclusões das investigações apontam para consideráveis variações do uso do tempo escolar segundo a turma, conforme tanto pesquisas de observação direta quanto de declaração dos próprios professores. Para o autor, a desigualdade de tratamento apontada pelos
dados empíricos preocupa no sentido de que se supõe ser transformada em desigualdade de conhecimentos. O autor inicia o quinto capítulo, Tempo de ensino e aprendizagem dos alunos, apresentando dois conceitos para oportunidades de aprendizagem. O conceito surgiu na ciência durante a década de 60. Carroll conceitua o termo como a quantidade de tempo que se concede a um aluno para realizar determinada aprendizagem. Para Husén, as oportunidades de aprendizagem são medidas por meio da adequação entre o conteúdo ensinado aos alunos e o aplicado por um teste. O capítulo apresenta estudos sobre a relação entre o conteúdo ensinado, o tempo atribuído, o tempo investido e a aprendizagem dos alunos. A conclusão a que chega é que o professor que motiva um grande número de aprendizagens por parte dos alunos é aquele que dedica um tempo importante aos conhecimentos que serão avaliados e, para isso, organiza atividades ao alcance dos alunos; estes, por sua vez, empenham-se nestas atividades e apresentam sucesso nas suas contribuições verbais ou escritas. Outra conclusão importante foi que o tempo de dedicação dos alunos nas atividades de ensino é maior quando o professor gere o grupo de forma coletiva, em detrimento dos trabalhos individuais. No capítulo seis, Como gerir a heterogeneidade dos alunos, Crahay argumenta que, quanto mais os alunos determinarem o ritmo de suas aprendizagens, maior será o risco de se ampliar as diferenças entre eles, pois os alunos mais rápidos progredirão cada vez mais depressa e os mais lentos não se beneficiam das contribuições dos mais rápidos. Por outro lado, quanto mais o ensino for adaptado às características do aluno, mais ele aprenderá. O autor afirma ainda que a homogeneização do grupo de alunos em função das suas competências no domínio de aprendizagem visado
aumenta a eficácia do ensino colectivo (p. 345). Se o objetivo é aumentar a igualdade de resultados de aprendizagem, é propício colocar os alunos no mesmo nível, de modo que todos possuam conhecimentos e competências necessários à aprendizagem que será iniciada (conceito de pré-requisito ou conhecimentos cognitivos de partida ou conhecimentos anteriores). Assim, são constituídas classes homogêneas de acordo com os conhecimentos cognitivos de partida dos alunos. Para compor grupos homogêneos, é preciso submeter os alunos a provas ou testes regulares com função de colocação, cuja finalidade é diagnosticar criteriosamente onde cada aluno se situa na sequência de aprendizagens. No sétimo capítulo, Porquê a Pedagogia de Domínio é eficaz, são apresentadas algumas questões relativas à Pedagogia de Domínio (PD). A premissa dessa metodologia é que todos os alunos são capazes de aprender o que está previsto no plano de estudos. Para o autor, a PD possibilita a igualdade da aquisição de conhecimentos, pois, apesar de admitir a desigualdade de aptidões iniciais, essa desigualdade não pode determinar os níveis de competência que podem ser atingidos pelos indivíduos. A PD apresenta as seguintes características: ensino coletivo, que visa às competências que o aluno deve dominar (com elevado critério de domínio), com aplicação regular de testes formativos, e o fornecimento de feedbacks, para a realização de procedimentos corretivos. Um esquema de prática PD eficaz e econômica em relação ao tempo de ensino pode ser observado no esquema a seguir:
Pesquisas empíricas verificaram que, regra geral, a PD aumenta a média geral e diminui a variância de resultados entre os alunos. Outra constatação sobre as experiências da Pedagogia de Domínio indica que é possível para a maior parte dos alunos regular a sua aprendizagem sem valer-se da utilização de procedimentos corretivos. Para possibilitar a eficácia desta pedagogia, os professores devem conduzir o ensino rigorosamente conforme os objetivos estabelecidos e apenas abordar novas aprendizagens depois de se garantir que os alunos dominam as aprendizagens anteriores. O capítulo oito, Cooperação e Aprendizagem, traz pesquisas que mostraram o efeito positivo da cooperação para as aprendizagens individuais em detrimento aos contextos competitivos ou individualizados. Algumas pesquisas demonstraram que, independente das condições de explicação, seus efeitos médios são positivos, tanto para os alunos que explicam como para aqueles que recebem as explicações. Em grande parte dos casos, os alunos que recebem lições particulares e ajuda dos colegas mais competentes que eles nas áreas em que têm dificuldades são
bastante beneficiados. Quanto aos que ensinam, na maior parte dos casos, aumentam o grau de domínio das competências que explicam. Na Conclusão, o autor afirma que não mais existe igualdade das oportunidades. É necessário estabelecer uma justiça corretiva na escolaridade básica. Para ele, o primeiro modo de agir é setorizar a matrícula escolar, para impedir a tendência natural dos pais para a consangüinidade sociológica. A segunda forma sugerida é abolir as repetições, pois elas são um fator de discriminação social. A terceira é suprimir as áreas do nível do ensino secundário inferior, estabelecendo uma estrutura única. Ademais, é preciso definir as competências indispensáveis à escolaridade básica, propor aos docentes um currículo estruturado, e aplicar testes concebidos nacionalmente. Por fim, o autor sugere a estruturação da escola por níveis equivalentes de competências, e não por idade e série. Ao finalizar-se a leitura, confirma-se a impressão que se tem desde o início: uma obra abrangente sobre a questão da desigualdade e do sucesso escolar. O autor apresenta uma ampla revisão da literatura sobre o tema, descrevendo importantes estudos e pesquisas desenvolvidos mundialmente sobre a questão da justiça e da eficácia escolar. Indica os obstáculos a evitar e aponta caminhos sobre como proceder para evitar a reprodução social e a violência simbólica dentro dos muros da escola. Trata-se, enfim, de uma obra essencial para estudantes, professores e pesquisadores da área de Educação preocupados com os problemas sociais e educacionais. Deveria ser lida pelos gestores de sistemas educacionais, antes de elaborar suas políticas, a fim de tentar possibilitar entre os estudantes a igualdade de conhecimentos.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA CRAHAY, Marcel. Poderá a escola ser justa e eficaz? Da igualdade das oportunidades à igualdade dos conhecimentos. Tradução de Vasco Farinha. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.