Introdução Em três de março, na ONG Ação Educativa, o Centro Cultural da Espanha, em parceria com a Rede Kultafro, realizou o quarto AFROLAB, workshop livre que visa orientar formas de tornar um empreendimento ou projeto sustentável, além de fomentar informações sobre assuntos relacionados à iniciativa da rede. Em processo de construção desde maio de 2011, com o objetivo de estabelecer conexões com empreendedores, pesquisadores, produtores e outros atuantes no cenário da cultura afro, a Kultafro busca alternativas para fortalecer seus trabalhos e torná-los cada vez mais viáveis. No último encontro, o tema foi Formas Organizativas, com a participação de Juan Lozano, coordenador de programação do Centro Cultural da Espanha (AECID), Eleilson Leite, programador cultural da ONG Ação Educativa e Hugo Ney, integrante da Rede Fora do Eixo, respectivamente. Com duração média de quatro horas, o dia teceu discussões sobre como estabelecer contatos em uma rede internacional, o papel das ONGS na sociedade, formas de se posicionar no mercado, os prós e contras de se assumir como pessoa jurídica ou não, entre outros assuntos. Com suas experiências e percepções, os convidados fizeram sua exposição e, ao final, abrimos um debate com os participantes. No documento abaixo, resumimos o conteúdo da discussão. Boa leitura Juan Lozano - Centro Cultural da Espanha O Centro cultural da Espanha (AECID) Com sua unidade brasileira localizada em São Paulo, a AECID é uma agência estatal submetida ao Ministério de Assuntos Exteriores e de Cooperação da Espanha, por meio da Secretaria do Estado para a Cooperação Internacional. A agência coordena uma rede de centros culturais descentralizados. Presente em 16 países, com um total de 19 centros culturais na Iberoamérica e Guiné Equatorial, outros três em processo de construção e seis com uma gestão mista, as redes estabelecem contato, principalmente, com a prefeitura do local para uma parceria. O objetivo da rede é desenvolver a política de cooperação cultural científica da AECID no exterior, fortalecer a ação cultural como fator para o desenvolvimento, apoiar a promoção e a ação cultural no exterior, promover o intercâmbio cultural e fortalecer a cultura espanhola, junto com as demais. Quando há uma gestão mista, o gasto é compartilhado entre o governo da Espanha e o governo municipal, sempre seguindo o plano diretor, definido pela Cooperação Internacional para o Desenvolvimento. Nesse documento, são estabelecidas as
prioridades básicas de trabalho AECID. Para o plano anual, que compreende o período de 2009-2012 a prioridade é trabalhar as seguintes frentes: Horizontais e transversais: Assuntos como gênero e respeito à diversidade cultural. Setoriais: Assuntos como educação, saúde e construção da paz. Geográficas: Avaliar questões como associações possíveis no país, potencial do país como sócio de desenvolvimento, entre outros detalhes. Segundo Juan Lozano, o Centro Cultural da Espanha atua de forma descentralizada e com base em parcerias, grande parte das atividades acontecem fora da sede do centro cultural. Trabalhamos com projetos artísticos e multidisciplinares e fazemos questão de estabelecer parcerias com outros grupos e organizações, desde que a proposta seja condizente com as nossas diretrizes, explica. Mesmo em lugares diferentes, todos os centros têm um ponto central e uma coordenação, localizada em Madri (AECID), responsável também por enviar uma verba anual. Todos os anos, os centros elaboram seus planos, contemplando os projetos que querem desenvolver. Enviamos para a rede central e recebemos de volta com as sugestões. Depois, com nossas considerações, enviamos de novo. Assim que aprovado, começamos a trabalhar. Lozano conta que essa autonomia, preza pela diversidade cultural. Além disso, existem outras formas de desenvolver atividades, como, por exemplo, parcerias com instituições espanholas ou locais e projetos elaborados e sugeridos pelo ponto central na Espanha. Nesse perfil, se enquadram o catálogo anual de itinerância e projetos em caráter plurianual que podem envolver até três centros. O objetivo é otimizar recursos, já que uma pequena parte da verba é do centro local e a diferença é encaminhada pela sede, em Madrid. Comunicação e coordenação Para manter todos os centros conectados, existem reuniões anuais com diretores dos Centros Culturais, que podem acontecer em Madrid ou em um evento que reúna esses colaboradores. Semanalmente, diretores ou programadores culturais participam de uma reunião virtual para compartilhar as atividades e trocar experiências. É dessa forma que os centros sabem o que acontece em outros países e trocam ideia, além de ser uma forma de dar visibilidade. A rede é horizontal, mas o AECID não. Por isso, As reuniões são dirigidas e coordenadas pelo chefe, direto de Madrid, comenta Lozano. Os cargos de diretores de cada centro são concursados, com um limite de cinco anos de atuação, podendo ser desligado ou direcionado para outro centro após esse período. Os demais colaboradores também são selecionados por concurso. Mas o concurso é diferente, sem as regras que têm no Brasil, é como se fosse um trabalhador normal.
Eleilson Leite - ONG Ação Educativa Conceito histórico Pra contextualizar os participantes, Eleilson aproveitou sua palestra para contar um pouco sobre o nascimento das OGNS no Brasil. As ONGS são fundamentais para os processos da democracia e é interessante saber como tudo começou. A partir da constituição de 1988 o Brasil reconheceu o sentido de direito, houve avanços na área do trabalho, reconhecimento das terras indígena, entre outros pontos. Foi aí que percebemos a existência das ONGs, que lutaram para que isso acontecesse. A partir daí, uma ONG se tornou um ato político. Segundo Eleilson, as ONGs eram internacionalizadas. Em 1980, recebiam financiamento internacional. Por definição, ONG significa instituição sem fins lucrativos, o que a determina com um nome social e não jurídico. No final dos anos 90, o Brasil tinha mais que 270 mil ONGs. Em 91, reconhecemos a primeira ONG, a ABONG, com perfil político e caracterizada pela resistência ao autoritarismo. Fundada pelo Albertinho, a organização é muito representativa e não se enquadra em uma associação de massa, com uma média de 300 colaboradores, disse. Depois, surgiram as fundações, com a finalidade de proteger um grupo, uma causa e etc. Por lei, as fundações são fiscalizadas pelo ministério público. E em 99, decorrente da lei 9.790 ou Lei do Terceiro Setor, reconhecida como um marco, surgiu a OSCIP, titulo dado a uma ONG que estabelece uma parceria com o poder público federal, exigindo o cumprimento de determinados requisitos burocráticos. Para ter essa qualificação, é necessário cumprir alguns pré-requisitos que a legislação estabelece. Parecido a OSCIP, temos a OS, que também é um título concedido pelo poder executivo, mas com regras menos acirradas. O papel das OS é fazer a gestão de equipamentos públicos, junto ao governo. Para finalizar, Eleilson contou que, para ter uma ONG, é preciso ter uma representação mínima, diretoria, um estatuto e um advogado. Montar uma ONG é fácil, mas manter é muito difícil. A Ação Educativa, criada em 94, tem um orçamento médio de 6 milhões,vindo de fontes como venda de livros didáticos para o governo e 60 mil anual por ser ponto de cultura. Como poucas, a ONG tem sede própria. A luta é diária. É preciso fazer projeto atrás de projeto para manter a sede e as pessoas que aqui trabalham. Só para manter os colaboradores e o prédio, são, em média, 600 mil reais por ano. E conseguir verba é muito difícil. Últimos dados sobre as ONGs no Brasil
Abrindo sua fala com um cenário geral, Eleilson traz o cenário das ONGs no Brasil. Com base no cadastro de empresas de 2005, uma pesquisa desenvolvida pela ABONG (Associação Brasileira de ONGs), em parceria com a IPEA (Instituto de Pesquisa Econômicas e Aplicadas) e IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), constatou que o Brasil tem 338 mil organizações sem fins lucrativos, divididas em cinco categorias : 1. Privadas, não integram o aparelho do Estado; 2. Não distribuem eventuais excedentes; 3. Voluntárias; 4. Possuem capacidade de autogestão; 5. Institucionalizadas. A maioria delas tem viés social. No campo da cultura, houve um crescimento significativo de organizações culturais, com cerca de 40 mil com foco em cultura, arte e sustentabilidade. Suspeita-se que essa emergência tenha acontecido por conta do aumento de editais durante a atuação de Gilberto Gil como ministro da cultura. Então, no caso da Kultafro, uma rede com viés cultural afro, é comum considerar a possibilidade de se estabelecer como ONG, comentou Eleilson. Ele exemplifica esse boom com os jovens da periferia, que têm conseguido seu primeiro incentivo, no município de São Paulo, com o programa VAI (Valorização de Iniciativas Culturais). Depois, eles tentam o PROAC, até virar um ponto de cultura. De acordo com o MinC, existem no país mais de três mil pontos de cultura. O ponto de cultura é um fenômeno recente. O primeiro edital foi em 2004, com o primeiro ponto em 2005. Pena que os últimos acontecimentos não são favoráveis para esse projeto. Hugo Ney - Fora do Eixo O Fora do Eixo Card Ney Hugo, do circuito Fora do Eixo, falou sobre organização e sustentabilidade financeira. Em nosso segundo Afrolab, tivemos a participação de outro integrante da rede. Para conhecer mais a fundo sobre o nascimento, proposta e estrutura do Fora do eixo, clique aqui e consulte o relatório anterior. Pautados na economia solidária, Hugo conta que o Fora do eixo Card, antigo Cubo card, surgiu em Cuiabá com o objetivo de suprir a necessidade que as bandas da rede têm para se manter com a divulgação, circulação de material e etc. As coisas precisavam acontecer, mesmo sem ter um recurso. A troca de serviço fui uma das soluções encontradas. Desde o início, o objetivo era criar uma moeda complementar, para manter os coletivos na ativa, mas não para concorrer ou combater com a moeda oficial, o real. A ideia era contar com as pessoas e estabelecimentos conhecidos ou não, na base da confiança, da brodagem, do faça isso todo mundo junto.
Cada participante do FDE tem uma habilidade extra, como design, técnico de som, profissional de comunicação e etc. Isso virou a nossa moeda de troca. Então, se você compra 100 cards, o comprador pode trocar por um serviço de assessoria de imprensa, por exemplo, explica Hugo. O avanço da internet facilitou a divulgação do projeto, contemplando a proposta da rede como um todo e a nova moeda. Após um debate com a participação de Paul Singer, Secretário Nacional de Economia Solidária no Ministério do Trabalho e Emprego, houve uma expansão da moeda para outros mercados. Assim, começou um ciclo. O dono do restaurante em que almoçavam, em card, gastava em uma papelaria, também adepta, com material escolar para seus filhos. O capital para investir nem todo mundo tem, mas a vontade de trabalhar sim, comenta Hugo. A princípio, o card tinha uma função artística, hoje, ele atingiu o nível social. Internamente, a maioria das transações do FDO é realizada em card. Estrutura horizontal Hugo conta que o Fora do Eixo não se enquadra em nenhuma das estruturas que já existem, como uma fundação, ONG, associação e etc. Nenhuma delas define o que somos. Mas o circuito tem uma assessoria jurídica para evitar cair em armadilhas. Além disso, há um banco de CNPJs, dos coletivos envolvidos, permitindo acesso a determinadas coisas, sem se tornar pessoa jurídica. Ter um CNPJ se tornou necessário e não uma opção. A falta de um é limitador para muitas situações. São burocracias necessárias. É preciso ter um CNPJ, se estruturar juridicamente, mas ter um projeto político é ainda mais essencial. Ele reforça que a rede trabalha com a horizontalidade e protagonismo, dando a mesma abertura para os integrantes antigos e para quem acabou de chegar. Na hora das tomadas de decisão, o que acontece é um nivelamento de debate. Qualquer pessoa pode participar, desde que solicite e tenha condições de entender e ter posições condizentes com a nossa proposta do circuito. Existem diferentes níveis de discussão e reuniões: aos domingos acontece uma reunião para apresentar pautas e todos podem comentar, o Congresso anual Fora do Eixo, que terá seu nome alterado para Juntos e o PAN (Ponto de Articulação Nacional), que acontece aos sábados com os integrantes mais antigos, mas aberto para outros membros, desde que solicitado. O objetivo central é andar em blocos. Se isso não acontecer, perdemos força e entramos em contradição com a nossa real intenção, que é a horizontalidade, disse. O fora do eixo tem representatividade em 26 estados brasileiros, no distrito federal, em três países da América Central e um na América do Sul. São mais de 100 coletivos e mais de 2 mil pessoas que integram e colaboram para o circuito.
Nesse cenário, a autonomia é outro fator predominante na gestão, quando o assunto diz respeito à cidade. Quem está em Cuiabá, entende de Cuiabá. Quem está em São Paulo, sabe as melhores soluções para São Paulo. Os coletivos têm essa autonomia, sempre dentro da proposta da rede. Nesse contexto, as reuniões acontecem para compartilhar iniciativas e trocar ideias. E quando uma decisão envolver todo o projeto, a questão é lavada para discussão, por exemplo, no PAN. O consenso e o voto vencido, com base em argumentos e defesa de ideias, são as formas para decidir por um caminho ou não.