Português RESUMO ESTENDIDO RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE NA PRÁTICA CLÍNICA Dr. SAFRA, Gilberto 1 A clínica contemporânea demanda que possamos fundamentá-la por perspectiva antropológica que supere modelos que nasceram de perspectivas excessivamente racionalistas, que muitas vezes levaram a uma concepção do ser humano mais reducionista. Essa demanda surge do fato que o excesso de abstrações e nomeação no campo sócio cultural tem favorecido o aparecimento de modos de subjetivação, que levam a um falseamento e artificialização da personalidade humana, aparecendo quadros descritos como personalidades como se, falso self, personalidade simulacro, personalidade espectral, personalidade avatar entre outras. Emergem discussões no campo das Ciências Humanas, nas quais é assinalado a importância de abordar a constituição da subjetividade humana, por meio do modelo de ser humano que o considera como ser aberto e em continua constituição com o outro. Essa visão assinala que, em decorrência do seu modo de ser, o ser humano é atravessado em sua interioridade pela transcendência, que surge como vazio e como anseio de ser. Estrutura fundamental, na qual se funda a condição humana de acontecer como ser desejante. O vazio que emerge na fundação da interioridade humana lhe outorga a instabilidade, a precariedade, o desamparo, a carência, o desterro. Habita na interioridade do ser humano o infinito potencial, que o faz ansiar pela totalidade (infinito atual) que realize a sua carência em experiência de encontro. 1 Instituto de Psicologia da USP iamsafra@usp.br ISSN 0000-0000 1
No campo psicanalítico encontramos autores que tematizam a questão da transcendência originária no ser humano, relacionando-a com a experiência da agonia ou ansiedades impensáveis. Dizer que o ser humano é transcendência significa afirmar que o ser humano está sempre aberto ao horizonte da existência; este é o registro mais frequente a partir do qual se aborda essa questão na filosofia. Na psicanálise de orientação winnicottiana, essa questão é abordada por meio da compreensão de que o bebê necessita da sustentação, para não despencar na experiência do cair para sempre. (infinito potencial) Por essa ser uma das facetas originárias da condição humana, temos que essa questão da instabilidade não se relaciona só ao bebê, mas é questão fundamental de todo homem. O ser humano necessita sempre da sustentação ofertada pelo outro. Conter o infinito em si implica em afirmar que o ser humano nunca está plenamente constituído. Parafraseando Rosa, podemos dizer que o ser humano é ente inacabado. Por outro lado, no campo da fenomenologia, Edith Stein 3 vai nos dizer que o ser humano é, não só, aberto para sua existência, mas também para baixo, porque ele é afetado pelos fenômenos que ocorrem no obscuro de sua própria corporeidade. Há uma interface da corporeidade com a consciência humana na qual acontece a tessitura do registro psíquico, que se organiza por meio de imagens e de palavras. Stein afirma: Essa autora assinala que o ser humano é aberto para baixo, e também para cima, ou seja, para o registro dos valores, das experiências do pensar as facetas essenciais da realidade como a beleza, a verdade, o bem. Para ela, é nesse registro que encontramos o campo das experiências do espírito humano. Temos, então, que o psiquismo humano tece uma teia representacional que não só se abre em direção ao outro, mas também para o abismo da corporeidade e para o campo da realidade do pensar e do contemplar, acessando assim o campo dos valores e dos pensamentos abstratos que escapam do registro sensorial. Perspectiva que se assemelha àquela apontada por Bion, no campo psicanalítico, quando menciona a realidade psíquica não sensorial. ISSN 0000-0000 2
No anseio do mais ser, a pessoa humana é sempre afetada pela presença ou pela ausência do outro. A abertura da pessoa em relação ao outro é ontológica. Questão importantíssima para se compreender dimensões fundamentais da situação clínica, pois há um anseio fundamental no ser humano de comunicação/comunhão com o outro. Motor originário não só do desejo humano, mas também de sua religiosidade e de sua espiritualidade. O psiquismo/espírito humano possui capacidade de mover-se no eixo da experiência de temporalidade, o que leva a pessoa estar sempre posicionada e atravessada pelo presente, passado e futuro. O ser humano sempre está remetido às experiências já vividas e às não vividas. O passado significa o presente, perspectiva que como analistas estamos habituados a observar por meio do fenômeno transferencial. Entretanto, o ser humano é também afetado por aquilo que está por vir, o que lhe acontece como um ainda não. Este é o anseio do futuro, da realização de si, campo no qual ocorre a expectativa do encontro com o absoluto, que surge psiquicamente, como horizonte utópico, como sonho final de si (ego ideal), como comunhão com o divino. Experiência que se relaciona não só como o modo como a esperança organiza-se no psiquismo humano, mas também como matriz estruturante da experiência de religiosidade. Compreender o ser humano como um ser aberto é observá-lo em contínuo devir, ao lado de Winnicott poderíamos dizer que ele estaria em percurso de transicionalidade.. A interface psíquica com a corporeidade tem sido abordada, ao longo dos anos, pelos estudos psicanalíticos desde Freud. Do mesmo modo, a perspectiva do psiquismo aberto ao outro foi também amplamente investigada pelas escolas das relações objetais. No entanto, a perspectiva do psiquismo aberto às facetas não sensoriais da experiência humana é aquela que se encontra ainda por ser mais profundamente investigada. Essa terceira abertura fundamental do ser humano foi abordada no campo psicanalítico principalmente por Bion, ao referir-se à realidade psíquica não sensorial, e por Winnicott, quando enfoca o fato de que na maturidade é necessário que a pessoa possa crescer para baixo. Aspecto da condição humana que possibilita o que poderíamos nomear, na situação clínica, como fundação da espiritualidade. ISSN 0000-0000 3
Enquanto a religiosidade de apresenta como anseio de comunicação/comunhão com a divindade ou absoluto (re-ligare), a espiritualidade, na situação clínica, se mostra como possibilidade de superar a dimensão representacional do psiquismo e pelo acolhimento da experiência da morte do si mesmo, que situa a pessoa na experiência de humildade. Se do ponto de vista a religiosidade poderia, de modo breve ser apresentada por meio da palavra comunhão, a espiritualidade poderia ser assinalada pela palavra humildade. Se abordarmos a questão da religiosidade do ser humano, veremos que há um conjunto de experiências que ocorrem relacionadas a esse tipo de fronteira que são as imagens do divino que emergem no psiquismo do ser humano. O homem é ser finito, mas com a possibilidade da consciência de si, ele pode vir a conceber o infinito e também conceber a possibilidade de um ente que poderia fruir da plenitude do ser. Surgem no psiquismo humano como resultado desse movimento imagens de poder, imagens de beatitude, imagens do divino. Constitui-se nesse registro uma tessitura psíquica de imagens que supostamente presentificariam o divino. Essa rede será uma dimensão importante para que nós possamos compreender o modo singular da religiosidade de uma pessoa se constituir e se organizar por meio de seu idioma pessoal. Como parte do que será a constituição da religiosidade de uma pessoa, comparecem não só as imagens do divino que ela desenvolveu ao longo do seu percurso, mas inscrevem-se, também, as diferentes experiências do sagrado que ela viveu ao longo de sua existência. Ao falarmos das imagens do divino que estão presentificadas na vida psíquica de alguém, podemos reconhecer que elas estão figuradas, sendo, portanto, parte do registro representacional do psiquismo humano. No entanto, a experiência do sagrado está para além do campo das representações; emergem em um registro não representacional. A experiência do sagrado ocorre como um evento que suspende a capacidade de uma pessoa representar as suas experiências, seja em imagens ou em palavras. No campo da espiritualidade e da religiosidade, assinalamos também a experiência de sagrado, que acontece como um atravessamento do si mesmo, suspendendo, na maior parte das vezes, a possibilidade da pessoa subjetivar sua experiência. ISSN 0000-0000 4
Evidentemente, uma vez que a experiência do sagrado tenha ocorrido, o indivíduo buscará significá-la. Mas pelo fato de que o sagrado ocorre no campo do indizível, haverá sempre um transbordamento de experiência para além da representação utilizada. A experiência do sagrado reorganiza a matriz da religiosidade da pessoa, e ao mesmo também a destitui de qualquer organização psíquica excessivamente onipotente, pois esse fenômeno acontece como alteridade radical. Ele se apresenta como mistério, como fenômeno ético e como experiência estética. Ele está entre a experiência do belo e do tremendo. Vivemos em um mundo de cenários, no qual se cria, por meio da técnica, uma estética sem transcendência. Fenômeno muito diferente da experiência estética que se revela no sagrado. O sagrado acontece como visitação, afetando o ser humano em três vértices: do ponto de vista do conhecimento acontece como Mistério, no vértice ético como Bem, e no estético como Belo/Tremendo. O atravessamento do sagrado posiciona o indivíduo em experiência ontológica de humildade, possibilitando o caminhar como experiência de espiritualidade. Palavras-Chave: religiosidade, espiritualidade, ethos, sagrado, clínica psicanalítica. REFERÊNCIAS BION, R.W.- Estudos Psicanalíticos Revisados. (Second Thoughts). Imago Editora, Rio de Janeiro, 1988. JONES, W.J.- Contemporary Psychoanalysis. Religion. Transference and Transcendence. Yale University Press, New Haven, 1991. SAFRA, G. A face estética do self. Unimarco e Idéias e Letras. São Paulo, 2 edição. 2000. SAFRA, G. A pó-ética na clínica contemporânea. Idéias e Letras. Aparecida. 2004. SAFRA, G. Hermenêutica na situação clínica. São Paulo. Sobornost. 2006. STEIN, E. Obras Completas IV. Escritos antropológicos y pedagógicos. Burgos, Madrid. Ed. Monte Carmelo. 2003 ISSN 0000-0000 5