HISTÓRIA DA APELAÇÃO: O RECURSO POR EXCELÊNCIA Rogério Guimarães Frota Cordeiro*

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HISTÓRIA DA APELAÇÃO: O RECURSO POR EXCELÊNCIA Rogério Guimarães Frota Cordeiro* Resumo O trabalho tem como objetivo descrever a evolução histórica do recurso de apelação e como ele se transformou até nossos tempos. Realizou-se um levantamento bibliográfico da doutrina a fim de resgatar sua evolução através do tempo. Abordou-se sua origem, seus três períodos no Direito Romano período das ações da lei, período formulário, período da cognição extraordinária, mostrou-se esses períodos relacionados aos regimes políticos e direito romano interno. Apresentou-se o recurso na sua fase de declínio e ascensão na Idade Média. Conclui-se que passou definitivamente para o ordenamento jurídico das nações. Palavras-chave: Apelação. Recurso. Apelação à Corte. Advogado; Doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo; Especialista em Direito Processual Civil/ Escola Paulista da Magistratura. E-mail: roco47@gmail.com Abstract The purpose of this paper is to describe the historical evolution of the appeal and how it has changed up to our times. A bibliographical research of the doctrine was made in order to rescue its evolution through time. Its origins, its three periods in the Roman Law - period of the actions of the law, period form, period of extraordinary cognition, were shown, these periods were related to the political regimes and internal Roman law. The resource was presented in its phase of decline and rise in the Middle Ages. It is concluded that it has definitively passed into the juridical order of the nations. Keywords: Appeal. Recourse. Court appeal. 108 // Revista da Faculdade de Direito // número 4 // segundo semestre de 2017

1 INTRODUÇÃO Para enfrentar o tema Apelação faz-se necessário descrever resumidamente o iter do procedimento ordinário a fim de situar este recurso. O processo 1 inicia-se por provocação do judiciário por meio da petição inicial e termina a fase de conhecimento por meio da sentença. Após a petição inicial, é necessário que a parte contrária seja citada. Ulterior à citação, a parte contrária pode contestar, reconvir ou excetuar, e, após vários procedimentos, será julgado o objeto ou mérito conforme o estado do processo. Se não houver julgamento conforme retro mencionado, haverá audiência preliminar; se não houver conciliação, serão realizadas as perícias e haverá audiência de instrução e julgamento, e o passo seguinte é a sentença, exarada pelo juiz (veja-se Anexo I). Ainda no nível ordinário, a Apelação é recurso que ataca a sentença motivadora de irresignação: (...) o recurso, como direito subjetivo do vencido de provocar o reexame da sentença, surgiu em Roma com o instituto da appellatio (FONTES: 2007, p.87). Na passagem da sentença para a possível apelação, verifica-se um feixe de potenciais motivações para que se acione o instrumento por meio do qual se apela à instância superior em prol de reformular a decisão lavrada. Trata-se de inovação histórica que exigiu a criação de um espaço para sua existência: desde tempos remotos têm-se preocupado as legislações em criar expedientes para a correção dos possíveis erros contidos nas decisões judiciais (Barbosa Moreira: 1993, p. 204, apud Fontes: 2007, p. 86-7). 2 FASES HISTÓRICAS A Apelação é instrumento que, no Ocidente, teve sua raiz no Direito Romano: sem dúvida, um dos mais completos de toda a história. Temos que muitos dos institutos, que hoje permeiam o direito brasileiro, são frutos da genialidade romana (Costa: 2007, p. 65). Conforme escorço realizado por Fontes (2007, passim), a respeito do desenvolvimento histórico dos recursos, o processo no Direito latino divide-se em três grandes períodos: legis actiones em vernáculo, período das ações da lei, per formulas período formulário e cognitio extraordinaria período da cognição extraordinária. A lei das XII Tábuas (Lex Duodecim Tabularum) 2 (veja-se Anexo II), de 450 a.c., motivou o nome do período das ações da lei, provavelmente escritas, porque foi por meio dessa lei que se diminui a discricionariedade no julgamento das questões entre patrícios e plebeus, pois as leis não eram escritas, o que gerava iniquidade. Esse período se estende desde a fundação de Roma (754 a.c.) até 149 a.c., o que permite entender que o nome foi consagrado tardiamente, caracterizado pela oralidade e pelo rigor no procedimento; dividia-se em duas fases: in iure que ocorria perante o 109

pretor 3 (Assis: 2013, p. 400), necessariamente presentes o autor e o réu, acompanhados de parentes e amigos e in iudicio que ocorria perante árbitro (arbiter) ou iudex, ou mesmo perante jurados (termo adotado por Fontes: 2007, p. 87), produzindo-se a prova testemunhal, discutindo as partes o direito aplicável, não sendo permitido às partes ser representadas por intermediários ou por advogados, na época inexistentes, e proferindo a sentença o iudex. Em 149 a.c., com a Lei Aebutia 4, estendendo-se até o século III d.c., inaugurou-se o período formulário, coincidente, pois, com a expansão romana. Este período também apresentava as fases in iure e in iudicio, e foi marcado por progressos que o fizeram ficar conhecido como o período clássico do Direito Processual Civil Romano. Segundo Amaral Santos (2001b, p. 42-3, apud Fontes: 2007, p. 88), o procedimento era todo oral [assim como no período anterior], inclusive a sentença, salvo a formula, que era escrita; dividia-se em duas fases distintas in iure e in iudicio [assim como no período anterior], aquela perante o magistrado, esta perante o juiz, ambas isentas da prática de solenidades que caracterizavam o procedimento anterior; na fase in iure, concedida a ação, se elaborava a formula escrita, característico que da [sic] nome ao sistema, e pela qual se pautava a missão do juiz na fase in iudicio; as partes compareciam pessoalmente [assim como no período anterior], mas podiam ser orientadas por juristas e assistidas por cognitores ou procuradores; os atos processuais se desenvolviam com audiência e contrariedade reciproca [sic] das partes (princípio do contraditório); a prova dos fatos incumbia à parte que os alegava; o juiz, a quem se destinavam as provas dos fatos, as apreciava e nelas formava livremente a sua convicção (princípio da livre convicção do juiz); a sentença, acolhendo a pretensão do autor, condenava o réu numa soma em dinheiro, ainda quando a causa versasse sobre coisa certa e determinada. No século III, nomeadamente no ano 294, sob Diocleciano, inicia-se o período da cognição extraordinária, que avança até o século VI, com a codificação de Justiniano, 528-534. Neste período, houve contraposição ao ordo iudiciorum privatorum 6, que caracteriza os períodos anteriores e em que, segundo Silva Filho (s.d., s.l.), a declaração do direito era um ato de autoridade estatal (pretor) que afirmava qual era a lei (sentido lato norma jurídica) aplicável à controvérsia, enquanto a resolução da causa, ou seja, o exame do conflito e a pacificação do litígio através da aplicação da lei determinada pelo pretor, era realizada [sic] pelo iudex, cidadão romano, que não fazia parte da magistratura (grifo nosso). A cognição extraordinária era procedimento civil que, nas palavras de Amaral Santos (2001b, p. 44, apud Fontes: 2007, p. 89-90), apresentava as seguintes características: desenvolvia-se [o período] todo perante o juiz, suprimida a divisão do procedimento em duas fases, como o era no período formulário; aplicação da escrita: escritos eram o libellus conventiones, o libellus contradictiones, ou libellus responsionis, a litis denuntiatio, a sententia; a citação (litis denuntiatio) fazia-se por meio de funcionário do Estado, auxiliar da justiça; possibilidade da instauração e prosseguimento do processo à revelia do réu: uma vez citado, o 110

não-atendimento do réu à convocação judicial não impedia a instauração e o desenvolvimento da instância; a litiscontestatio, não mais com o sentido que tinha no procedimento formulário, mas apenas correspondendo ao momento em que se encerrava a fase postulatória, ou seja, aquela em que o autor formula o seu pedido e o réu oferece sua defesa; força autoritária da sentença, por provir de uma autoridade do Estado; admissibilidade de interposição de recursos contra a sentença; execução da sentença por via de medidas coativas do Estado, penhorando-se bens do vencido suficientes para garantia da execução (pignus in causa iudicati captum 7 ) (grifo nosso). Na expressão dos professores Cintra, Grinover e Dinamarco (2002, p. 23), (...) Com ela [cognitio extra ordinem] completou-se o ciclo histórico da evolução da chamada justiça privada para a justiça pública: o Estado, já suficientemente fortalecido, impõe-se sobre os particulares e, prescindindo da voluntária submissão destes, impõe-lhes autoritativamente [sic] a sua solução para os conflitos de interesses. À atividade mediante a qual os juízes estatais examinam as pretensões e resolvem os conflitos dá-se o nome de jurisdição. [ ] Pela jurisdição, como se vê, os juízes agem em substituição às partes, que não podem fazer justiça com as próprias mãos (vedada a autodefesa); a elas, que não mais podem agir, resta a possibilidade de fazer agir, provocando o exercício da função jurisdicional. E[,] como a jurisdição se exerce através do processo, pode-se provisoriamente conceituar este como instrumento por meio do qual os órgãos jurisdicionais atuam para pacificar as pessoas conflitantes, eliminando os conflitos e fazendo cumprir o preceito jurídico pertinente a cada caso que lhes é apresentado em busca de solução. Dada a referida força autoritária da sentença proveniente de autoridade estatal, admitiu-se a interposição de recurso, nomeadamente appellatio, apelação, nesta fase da cognitio extraordinem. 2.1 Períodos da Apelação, Regimes políticos e Direito Romano Interno Embora haja previsível divergência entre os historiadores nas datações das fases do Direito Romano, Corrêa (2001, p. 37) traz tabela bastante elucidativa das fases relacionadas com os diferentes regimes políticos e com o Direito Romano Interno. Assim, é possível ter visão clara da partição: Classificação Processual [sic] Legis actiones 754aC 149aC Formulario 149aC 209dC Extraordinário [sic) cognitio 209dC 568dC Classificação do Direito Romano sob [sic] o ponto de vista dos regimes políticos Realeza 754aC 510aC República 510aC 27aC Principado 27aC 285dC Dominato 285dC 565dC Direito Romano Interno Pré-Clássico 754aC 149 126aC Clássico 149 ou 126aC 305 dc Pós-Clássico 305dC 527dC Justinianeu 527dC 565dC A apelação é recurso que experimentou uma ascensão e um declínio no decorrer da trajetória do direito. O surgimento do recurso da apelação corresponde à criação de espaço na 111

máquina estatal para que se desse voz à parte sucumbente. Esfacelado o império romano, os reinos bárbaros, segundo Fontes (2007, p. 92), promoveram certa reconfiguração do direito, já no procedimento, o que comprometeu o espaço antes conferido ao uso do recurso da apelação: a submissão aos senhores feudais inibia a utilização de tal recurso, considerado perigoso aos recorrentes que se dispunham a enfrentar o prestígio e força dos prolatores das decisões (Amaral Santos: 2001a, apud Fontes: 2007, p. 92). Por sua vez, a ascensão do recurso de apelação se deu na Idade Média, em função da perda do poder dos senhores feudais, equivalente à centralização do poder nos reis; proposta por estudiosos do direito canônico, a volta ao sistema recursal romano se deu a partir do século XII. Fontes (2007, p. 93) lembra que houve abuso na utilização dos recursos, o que promoveu novo declínio no seu acionamento, por motivo de que os juízes passaram a agir como se fossem proprietários dos cargos, e o significativo aumento do número de recursos lhes rendia pecuniariamente, o que levou a uma trivialização do instituto do recurso, a ponto de em sede da Assembleia Constituinte Francesa sugerirem a supressão total dos recursos; deliberou-se, porém, manter os recursos em sistema de duplo grau de jurisdição: A aparição da pluralidade de instâncias foi seguida por lenta e pertinaz investigação da melhor técnica para a composição dos tribunais e, conseqüência, da admissão dos recursos e do processo dos recursos (Pontes de Miranda: 1975, apud Fontes: 2007, p. 94). Em conclusão, Fontes (2007, p. 94) considera Fácil perceber que com a consolidação do princípio do duplo grau de jurisdição no mundo ocidental a instituição recursal concretizou-se indelevelmente, passando logo (...) a compor o ordenamento jurídico das nações. (...). A Apelação é um recurso de grande importância que existe a fim de defender-se cuja sentença causou irresignação. REFERÊNCIAS ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 5 ed. ver. e atual. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2013. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini ; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2002. CORRÊA, Josel Machado. Recurso de apelação: história e dogmática. São Paulo: Iglu, 2001. COSTA, Elder Lisbôa Ferreira da. História do Direito: de Roma à história do povo hebreu muçulmano: a evolução do direito antigo à compreensão do pensamento jurídico contemporâneo. Belém: Unama, 2007. FONTES, Márcio Schiefler. Noções histórico-conceituais dos recursos e do duplo grau de jurisdição. Revista da Emesc. V. 14, nº 20, 2007. Disponível em:< www.esmesc. com.br/upload/arquivos/3-1247226500.pdf.> Acesso em 05 agosto 2014. 112 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

ANEXO I HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. 3.0. 2001. APELAÇÃO (arts. 513-521) Petição ao juiz da causa* (art. 514) MACIEL, José Fábio Rodrigues. História do Direito: Processo Formular evolução do Direito Romano. Disponível em : <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/ processo-formular---a-evolucao-do-direito-romano/156.> Indeferimento Juiz recebe a apelação, declarando seus efeitos (art. 518) Acesso em 23 ago 2014) SILVA FILHO, Antônio José Carvalho da. Primórdios da Cabe agravo de instrumento Vista ao apelado, para contra-razões em 15 dias (art. 508) Jurisdição. S.d. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/ abdpc/artigos/primordios%20da%20jurisdicao%20 Antonio%20Jose%20Carvalho%20da%20Silva%20Filho. pdf.> Acesso em 24 ago 2014) Apelação adesiva (art. 500, I) Contra-razões (art. 518) TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Li- Contra-razões, em 15 dias ções de História do Processo Civil Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de História do Reapreciação da admissibilidade do recurso Apreciação do pedido de relevação da deserção Direito. 8. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2014. D Trancamento da apelação Remessa ao Tribunal 113 Encerramento do feito em 1º grau Julgamento do recurso pelo Tribunal * Oportunidade: 15 dias, a contar da intimação da sentença.

Notas 1 O processo é, em última análise, uma luta dialética. Pela mesma razão porque [sic], no duelo bíblico, Golias não pode ser antecipadamente declarado vencedor, tampouco se pode conceber ordenamento jurídico algum que possa declarar vencedor antecipado aquele que apresenta um direito aparentemente mais convincente. Freire (2001, p. 56) 2 (...)Lei das XII Tábuas, cujo texto, gravado em 12 placas de madeira, teria sido afixado no fórum da cidade de Roma por volta de 451-449 a.c. O seu propósito era o de resolver certos conflitos entre plebeus e patrícios. O texto original foi destruído por ocasião do saque de Roma pelos gauleses em 390 a.c. No entanto, como escreve Gilissen, alguns fragmentos chegaram até nós graças as [sic] citações de Cícero e de Gélio e por comentários, escritos por Labeo e por Gaio no Digesto. A Lei das XII Tábuas não chegou a formar um código, no sentido moderno do termo, tampouco um conjunto de leis; parece antes uma redução, em forma escrita, de costumes então vigentes (Wolkmer: 2014, p. 204). 3 Segundo Houaiss (2001), magistrado que administrava a justiça, na antiga Roma. 4 O pretor, como magistrado, tinha amplo poder de mando, denominado imperium. Utilizou dele, de forma mais ampla, a partir da Lei Aebutia, no século II a.c., que, modificando o processo, permitiu que atuasse com mais arbítrio. A partir dessa lei, o pretor, ao fixar os limites da demanda, podia dar instruções ao juiz sobre como ele deveria apreciar as questões de direito. Fazia isto por escrito, pela fórmula. Podia deixar de admitir ações perante ele propostas ou, também, admitir novas ações até então desconhecidas no direito antigo romano. Essas reformas completavam, supriam e corrigiam as regras antigas, adaptando-as às novas realidades sociais. As fórmulas eram utilizadas na primeira fase do processo, denominada in iure, que ocorria perante o pretor. Sua função era organizar a controvérsia, transformando o conflito real num conflito judicial. A segunda fase, a in iudicium, era o momento em que a controvérsia desenvolvia-se perante um juiz ou árbitro (cidadão particular), com base nas fórmulas apresentadas na in iure. As fórmulas que o pretor ia seguir eram publicadas por meio de Editos, veiculados antes de sua posse. Como o cargo de pretor tinha mandato de um ano, os editos se sucediam, normalmente aproveitando-se dos anteriormente publicados, mas sempre com uma nota de originalidade, buscando adaptar o direito civil às mudanças nas condições de vida da cidade. [ ] A fórmula foi uma criação espetacular. Era uma espécie de decreto pretoriano, em forma de carta dirigida ao juiz, resumindo a causa, estabelecendo os limites subjetivos e objetivos da lide processual, indicando as provas a serem produzidas. Ao gerar uma decisão revestida da coisa julgada material, sem decisão de mérito, funcionava como um relatório definitivo. Quem julgava a causa era o juiz ou o árbitro, resolvendo-se a fórmula. Com o processo formular o pretor passa a se impor para resolver com eqüidade os casos concretos, antes submetidos ao rigorismo das formalidades. É um processo mais rápido, menos formalista e escrito. [ ] É a partir do processo formular que se dá a flexibilização do direito civil romano. As fórmulas resumem em termos jurídicos os detalhes da lide. O processo formular tem a vantagem de acompanhar a evolução social. [ ] Ex de fórmula, Extraída da obra Manual de Direito Romano, v. I, de Alexandre Correia e Gaetano Sciacia, publicada pela Editora Saraiva (1953, p. 80): 1. Nomeação do juiz: Tício seja juiz. 2. Demonstração: Desde que Aulo Agério vendeu um cavalo a Numério Negídio 3. Pretensão: Provar que Numério Negídio deve dar a Aulo Agério dez mil sestércios. 4. Condenação: O juiz condenará Numério Negídio a pagar a Aulo Agério dez mil sestércios; se não provar, absolverá Numério Negídio. (Maciel: 2005). 5 Nos textos que compulsamos não se pode perceber qual era a matéria na qual se manteria o procedimento oral e em qual matéria se lançaria mão da fórmula. 114 6 Ordo iudiciorum privatorum: iurisdictio dos magistrados e bipartição de instâncias Formal e substancialmente antinômica ao processo penal romano (iudicia publica), a ordem dos juízos privados (iudicia privata) englobava os dois primeiros apontados períodos [o das legis actiones e o per formulas]. [ ] A civitas romana em seu período de formação, a exemplo de toda a sociedade em aurora, também depositava no misticismo religioso significativa parcela da técnica e da praxe judiciária, ainda de organização arcaica, não obstante aspirar fortalecer-se para, em seguida, lograr obediência de seus concidadãos. Por esse fato, foi atribuído aos pontífices o mister de dar forma ao procedimento, através de simbolismos e rituais. [ ] Nasce, assim, em Roma a jurisdição como atividade exclusiva dos pontífices, vocacionada a disciplinar a autotutela

dos litigantes. [ ] Daí, por certo, o motivo determinante de que a estrutura jurídica das legis actiones o mais antigo sistema processual romano fosse por demais formalista, mormente com aquela casta de sacerdotes detentora do monopólio do direito, que, auxiliando o rex, ditava o comportamento dos cidadãos, bem como o solene ritual a ser observado pelos demandantes. [ ] Não se pode, assim, desconhecer o íntimo relacionamento entre direito (ius) e religião (fas) nos primeiros tempos de Roma. Devido a tal circunstância, agravada pelas trevas que envolvem a história legendária, dada a obscuridade e fragmentação das fontes esclarecedoras desse período, verifica-se uma acentuada incerteza entre os romanistas quanto à delimitação dos poderes do rei. [ ] Todavia, reduzindo os limites entre a fábula e a história, recentes e valiosas pesquisas sobre esse tema demostram que, como chefe supremo e vitalício, o rex, único depositário da potestas publica, reunia em suas mãos, por força de seu imperium, além dos poderes militares e religiosos, poderes civis, legitimando-o a julgar em primeira e última instância.[ ](...)[ ] Ademais, afastada a obsoleta ideia de que o processo romano teria sua origem na vingança privada, a doutrina romanística contemporânea admite que a intervenção estatal de época histórica impunha às partes a observância de atos, refletindo um estádio já mais avançado, que, tão somente, representava simbolicamente a antiga luta entre os litigantes. [ ] Pressupondo, então, que o processo arcaico tenha-se desenrolado integralmente frente a uma única autoridade: o rex, magister populi, com o andar dos tempos, em decorrência do rápido desenvolvimento da riqueza, do comércio e de outros setores da vida social de Roma, os litígios privados tornam-se sempre mais complexos e numerosos reclamando a criação de magistraturas com específicas funções jurisdicionais. [ ] Consoante a história tradicional (Dionísio de Halicarnasso, 4.25), perdendo terreno o elemento religioso com a progressiva laicização do direito e com o incremento quantitativo da prática judiciária, o rei Sérvio Túlio (578-534 a.c.) desmembrou a justiça em pública (reservando para si o imperium sobre as causas de conotação penal crimina) e privada (v., a propósito, Emilio Costa, Profilo storico del processo civile romano, Roma, Athenaeum, 1918, p.1; James Muirhead, Historical introduction to the privates law of Rome, Edinburgh, Adam and Charles Black, 1886, p. 73). [ ] Assim, a predominância desfrutada durante mais de dois séculos pelos sacerdotes, cederá passo, nas derradeiras décadas da realeza e na sucessiva constituição política republicana, aos magistrados públicos (magistratus publici populi romani). [ ] Saliente-se que o imperium, até então exclusivo do rex, é transferido, de forma mais limitada e restrita, aos novos órgãos. Esse poder, no entanto, não pode ser tido como sinônimo de iurisdictio, porquanto o conceito desta é distinto daquele de imperium. [ ] Enquanto imperium é considerado pela doutrina como um poder unitário e indeterminado, a iurisdictio podia ser delegada, como ocorria com os magistrados municipais, que, desprovidos de imperium, detinham aquela por delegação do pretor (v., a respeito, De Martino, La giurisdizione, cit., p. 255 e ss.; Armando Torrent, La iurisdictio de los magistrados municipales, Salamanca, s. ed., 1970, p. 129). V., ainda, Antonio Fernadez de Bujan, Jurisdiccion [sic] voluntaria em Derecho romano, Madrid, Reus, 1986. [ ] É de ter-se, ainda, presente que a função jurisdicional era faculdade inerente à condição de magistrado, não existindo um poder judicial autonomamente estruturado, porquanto os romanos encartavam o mister de distribuir justiça entre as funções de natureza administrativa. [ ] E, por isso, mesmo sendo uma das formas de manifestação da potestas publica, a iurisdictio, possuindo característica peculiar ao sistema do ordo iudiciorum provatorum, consistia no poder atribuído a certos magistrados, de declarar (não de julgar) a norma jurídica aplicável a um determinado [sic] caso concreto. [ ] É provavelmente a partir desse momento que o procedimento, apresentando uma discrepância qualitativa de funções, se desenrolava em duas fases distintas: in iure, diante do pretor, incumbindo-lhe organizar e fixar os termos da controvérsia; e, em seqüencia, apud iudicem, perante o iudex unus ou, nas controvérsias entre romanos e estrangeiros, diante do tribunal dos recuperatores; ou, ainda, nas questões sobre sucessão hereditária, perante o tribunal dos centumviri. O iudex, cidadão romano, tomando conhecimento do litígio a ele submetido, julgava soberanamente, em nome do povo romano, não estando, por isso, subordinado a qualquer órgão postado em superior grau hierárquico. (Tucci e Azevedo: 2013, p. 36-8) 7 O penhor do julgado é tomado na causa. Tradução do autor. 115