Documento para o CEDAW sobre o cumprimento do Brasil das obrigações contraídas como Estado-parte da Convenção em relação à violência contra as mulheres Violência contra as Mulheres: o caso Maria da Penha Apresentação O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) e a AGENDE - Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento oferecem - no contexto da apresentação do Relatório Nacional Brasileiro ao Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Comitê CEDAW) - informações sobre o não cumprimento do Brasil de suas obrigações internacionais em relação à prevenção e erradicação da violência contra as mulheres. O presente documento pretende prover informações adicionais ao relatório alternativo da sociedade civil à CEDAW, "O Brasil e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Documento do Movimento de Mulheres para o Cumprimento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher CEDAW pelo Estado Brasileiro: Propostas e Recomendações, elaborado por significativas redes e articulações de mulheres brasileiras, entidades e pessoas, e chamar a atenção do Comitê CEDAW a respeito da falta de implementação por parte do Estado brasileiro das disposições relativas à prevenção e erradicação da violência contra as mulheres. CEJIL-Brasil Av. Mal. Câmara, 350/707 CEP: 20020-080, Centro Rio de Janeiro, RJ, Brasil Tel. (55-21) 2533-1660 Fax.(55-21) 2517-3280 E-mail: brasil@cejil.org
CLADEM, área de violência Rua Oscar Freire, 1967/122 A CEP: 05409-011, Cerq. César São Paulo, SP, Brasil Tel. (55-11) 3086-1681 Fax.(55-11) 3062-1874 E-mail: violencia@cladem.org AGENDE SCLN 315, Bl. B, sala 101 CEP: 70.774 Brasília, DF, Brasil Tel. (55-61) 273-3551 Fax. (55-61) 273-5801 E-mail: agende@agende.org.br
Resumo Executivo Em abril de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH) publicou o Relatório No. 54/01 (anexo) no caso No. 12.051 (Maria da Penha vs. Brasil), em que declara a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação dos artigos 8, 25 e 1.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos e do artigo 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). A decisão da CIDH foi emitida no marco de uma denúncia individual sobre violação aos direitos humanos da vítima Maria da Penha, a qual, em 1983, sofreu uma tentativa de assassinato por seu então marido, que lhe desferiu um tiro nas costas deixando-a paraplégica. Por mais de 15 anos o Estado brasileiro não havia sido capaz de concluir a investigação e punição do agressor. Na sua decisão, a CIDH estabeleceu que o caso fazia parte de um "padrão geral de negligência e falta de efetividade do Estado para processar e condenar os agressores", considerando que não só foi "violada a obrigação de processar e condenar, como também a de prevenir essas práticas degradantes". Essa falta de efetividade judicial geral e discriminatória, segundo a CIDH, "cria o ambiente propício à violência doméstica, não havendo evidência socialmente percebida da vontade e efetividade do Estado, como representante da sociedade, para punir esses atos" (parágrafo 56 do Relatório). Em resposta a tais violações, a CIDH declarou, portanto, a responsabilidade do Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra mulheres no país. Nesse sentido, também recomendou a reparação integral das violações provadas incluindo não só reparações econômicas, mas também, e principalmente, a adoção de medidas e implementação de políticas públicas como "garantia de não repetição" das violações provadas no caso, e com o fim de evitar a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil. Passados mais de dois anos, o Estado brasileiro ainda não cumpriu com a decisão proferida pela Comissão em relação ao caso, tendo atendido apenas - e tão somente - a uma das recomendações nela estabelecidas, deixando de implementar todas as demais recomendações. Assim mesmo só o fez mediante a pressão internacional exercida pela CIDH, por meio de demandas das organizações peticionárias. O não cumprimento das recomendações contidas na decisão da CIDH viola a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em especial, em seus artigos 1 º 2 º, 15 e 16, bem como a Recomendação Geral No. 19 do Comitê CEDAW, na medida em que deixa de implementar medidas destinadas a prevenir e erradicar a violência contra as mulheres, assim como de reparar integralmente os danos ocasionados. Assim sendo, as organizações signatárias do presente documento solicitam ao Comitê que, na sua avaliação dos progressos do Brasil na implementação da Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, expresse sua profunda preocupação e recomende ao Estado a adoção das medidas adequadas para a reparação integral dos direitos violados, em especial, aqueles referidos à implementação das medidas de prevenção e garantias de não repetição estabelecidas no decisório do Caso 12.051 CIDH, OEA. Violência contra as Mulheres: o caso Maria da Penha O caso Em 29 de maio de 1983, Maria da Penha Maia Fernandes, brasileira, foi vítima em sua casa, em Fortaleza, Estado do Ceará, de uma tentativa de assassinato por parte de seu então marido, Marco Antonio Heredia Viveiros, quem lhe desferiu um tiro nas costas enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica. O caso demorou 8 anos para chegar a uma decisão do Tribunal do Júri que, em 4 de maio de 1991, condenou o agressor a 15 anos de prisão, reduzidos a 10 por sua primariedade. A defesa apresentou recurso de apelação contra a decisão do Júri. Em 15 de março de 1996 um segundo julgamento foi realizado, no qual o agressor foi condenado a 10 anos e 6 meses de prisão. Nova apelação foi apresentada pela defesa e, desde então, sucessivos recursos foram interpostos. Devido à demora do sistema judicial não era possível obter uma decisão final sobre este crime. A justiça brasileira tinha passado mais de 15 anos sem chegar a uma sentença definitiva contra o ex-marido de Maria da Penha, numa demonstração da tolerância com que o Estado trata essas graves situações. A denúncia O caso de Maria da Penha, infelizmente, era - e segue sendo - um exemplo do padrão sistemático da impunidade em relação à violência doméstica contra mulheres no Brasil. Esse padrão sistemático de impunidade é devido, em especial, à falta de empenho do Estado em atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e punir a violência contra as mulheres; estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes que incluam um julgamento oportuno e o acesso efetivo a tais procedimentos, assim como estabelecer mecanismos judiciais e administrativos para assegurar um acesso efetivo a ressarcimento, reparação do dano ou outros meios de compensação justos e eficazes. Não representava, pois, o caso, uma situação isolada no país, pelo qual, o CEJIL, o CLADEM e a vítima, Maria da Penha, apresentaram denúncia individual perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA).
A decisão Baseada no exame de admissibilidade e mérito do caso, a Comissão publicou o Relatório No. 54, em abril de 2001, com as seguintes conclusões (parágrafo 60) e recomendações (parágrafo 61) ao Estado brasileiro (Caso 12.051, em anexo e disponível nos sites www.oas.org ou www.cladem.org ou www.cejil.org): CONCLUSÕES "60. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao Estado Brasileiro as seguintes conclusões: 1. Que tem competência para conhecer deste caso e que a petição é admissível em conformidade com os artigos 46.2,c e 47 da Convenção Americana e com o artigo 12 da Convenção de Belém do Pará, com respeito a violações dos direitos e deveres estabelecidos nos artigos 1(1) (Obrigação de respeitar os direitos, 8 (Garantias judiciais), 24 (Igualdade perante a lei) e 25 (Proteção judicial) da Convenção Americana em relação aos artigos II e XVIII da Declaração Americana, bem como no artigo 7 da Convenção de Belém do Pará. 2. Que, com fundamento nos fatos não controvertidos e na análise acima exposta, a República Federativa do Brasil é responsável da violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, assegurados pelos artigos 8 e 25 da Convenção Americana em concordância com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no artigo 1(1) do referido instrumento pela dilação injustificada e tramitação negligente deste caso de violência doméstica no Brasil. 3. Que o Estado tomou algumas medidas destinadas a reduzir o alcance da violência doméstica e a tolerância estatal da mesma, embora essas medidas ainda não tenham conseguido reduzir consideravelmente o padrão de tolerância estatal, particularmente em virtude da falta de efetividade da ação policial e judicial no Brasil, com respeito à violência contra a mulher. 4. Que o Estado violou os direitos e o cumprimento de seus deveres segundo o artigo 7 da Convenção de Belém do Pará em prejuízo da Senhora Fernandes, bem como em conexão com os artigos 8 e 25 da Convenção Americana e sua relação com o artigo 1(1) da Convenção, por seus próprios atos omissivos e tolerantes da violação infligida". RECOMENDAÇÕES "61. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao Estado Brasileiro as seguintes recomendações: 1. Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável da agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da Penha Fernandes Maia. 2. Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados que impediram o processamento rápido e efetivo do responsável, bem como tomar as medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes. 3. Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da agressão, as medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação simbólica e material pelas violações aqui estabelecidas, particularmente por sua falha em oferecer um recurso rápido e efetivo; por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos; e por impedir com esse atraso a possibilidade oportuna de ação de reparação e indenização civil. 4. Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil. A Comissão recomenda particularmente o seguinte:
a) Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica; b) Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo; c) O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqüências penais que gera; d) Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotálas dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais. e) Incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares". Sobre a relevância e o alcance da decisão A decisão neste caso é extremamente relevante e de alcance não só para a vítima Maria da Penha, mas também para todas as mulheres brasileiras. Isso porque, além de haver declarado a responsabilidade do Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra mulheres, recomendando a adoção de medidas relativas ao caso individual (parágrafo 61, itens 1, 2 e 3) inclusive estabelecendo o pagamento de uma indenização à vítima a Comissão recomendou também ao Estado a adoção de medidas de políticas públicas com o fim de evitar a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil. (parágrafo 61, item 4 a, b, c, d, e). Trata-se do primeiro caso em que foi aplicada a Convenção de Belém do Pará por um organismo internacional de direitos humanos, com decisão na qual um país é responsabilizado em matéria de violência doméstica. O caso de Maria da Penha converteu-se, pois, em caso emblemático ao constatar o padrão sistemático de violência doméstica contra as mulheres e estabelecer a responsabilidade do Estado em nível internacional devido à ineficácia dos sistemas judiciais em nível nacional. Sobre o "status" do cumprimento da decisão Passados mais de dois anos, o Estado brasileiro ainda não cumpriu com a decisão proferida em 2001 pela CIDH em relação ao caso, tendo atendido apenas - e tão somente - a uma das recomendações nela estabelecidas (conclusão do processo em nível nacional e prisão do agressor 19 anos depois da agressão), deixando de implementar todas as demais recomendações. Assim mesmo só o fez mediante a pressão internacional exercida pela Comissão, por meio de demandas das organizações peticionárias.1
Sobre o que não foi cumprido Entendemos que o não cumprimento - ou mesmo o cumprimento parcial e insuficiente - das recomendações de reparação emitidas no caso implica em reiterada violação do Estado brasileiro aos direitos humanos não só da vítima Maria da Penha neste caso concreto, mas de todas as mulheres brasileiras que se encontram em situação de violência doméstica e demonstra a falta de compromisso do Estado com milhares de mulheres em situação semelhante. Nesse sentido, também, a Plataforma Política Feminista, aprovada na Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, em 06 e 07 de junho de 2002, Brasília, DF, em seu parágrafo 200, expressa a reivindicação das mulheres brasileiras ao "demandar do Estado o cumprimento das decisões e recomendações das Cortes Internacionais e demais mecanismos, nacionais e internacionais, em casos de violações aos direitos humanos das mulheres, de maneira a dar efetividade ao cumprimento de tratados e convenções internacionais, notadamente a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher..." Por fim, os fatos colocados implicam uma violação à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em especial, em seus artigos 1 º 2 º, 15 e 16, bem como a Recomendação Geral No. 19 do Comitê CEDAW. O caso de Maria da Penha, portanto, ilustra claramente que o Estado brasileiro não tem cumprido efetivamente com seus compromissos internacionais em relação à violação de direitos humanos das mulheres no país, violando a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e demais tratados internacionais de direitos humanos. Solicitamos, pois, ao Comitê, tome em consideração as informações apresentadas no momento de examinar os progressos do Estado brasileiro na aplicação da Convenção. ANEXO: RELATÓRIO N 54/01* CASO 12.051 MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES BRASIL 4 de abril de 2001
NOTAS: 1. A propósito, apesar da repercussão do caso no cenário jurídico-político nacional e internacional, cumpre informar que, mesmo após decorrido um ano da decisão da Comissão, nenhuma iniciativa ainda havia sido tomada pelo Estado brasileiro em relação a seu cumprimento. Nem sequer o processo criminal contra o agressor em nível nacional havia sido concluído. Somente quando CEJIL solicitou uma audiência de seguimento perante a Comissão é que "subitamente" o caso seguiu seu curso. Em 8 de março de 2002, foi realizada a referida audiência de seguimento do caso perante a Comissão, em Washington. O governo apresentou então as medidas tomadas dentro da instância judicial para acelerar o processo. Como resultado da audiência, o governo reafirmou seu compromisso de cumprir com as recomendações da Comissão, especialmente para concluir o processo criminal em nível nacional, e as peticionárias se ofereceram para apresentar ao governo uma proposta para ajudar na implementação das recomendações. Alguns meses depois, o processo criminal foi finalmente concluído em nível nacional, e as peticionárias iniciaram a etapa de negociação com o governo sobre uma proposta para a implementação das recomendações da Comissão. Em 15 de outubro de 2002, uma reunião de trabalho ocorreu perante a Comissão, em Washington e, 15 dias depois, o agressor Marco Antonio Heredia Viveiros foi finalmente preso.