Margarida Calafate Ribeiro: A Europa deu soluções coloniais para situações pós coloniais

Documentos relacionados
prodep Surge a 1 a equipa

Estrangeirismos: Influências que enriquecem a Língua Portuguesa ou invasões impertinentes?


Dados internacionais de catalogação Biblioteca Curt Nimuendajú

EU VIM PARA SERVIR? Autor: Tiago Ferro Pavan

OFERTA FORMATIVA 2015/2016. Vem descobrir a EUROPA. com o Centro de Informação Europeia Jacques Delors

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Ficha Técnica: Design e Impressão Mediana Global Communication

Na escola estão Pedro e Thiago conversando. THIAGO: Não, tive que dormi mais cedo por que eu tenho prova de matemática hoje.

Eixo Temático ET Desenvolvimento de Estratégias Didáticas

24/06/2010. Presidência da República Secretaria de Imprensa Discurso do Presidente da República

Maria Luiza Braga (UFRJ)

Anexo 2.8- Entrevista G2.3

Programa para a Inclusão e Desenvolvimento - PROGRIDE. ParticipAR - Inovação para a Inclusão em Arraiolos. Acção: Banco de Recursos para a Inserção

Caro Paulo Lopes Lourenço, Consul Geral de Portugal em São Paulo. Estimado Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto

Entrevista Professor Lauro Antônio 1 fala sobre filmes e festivais

EAA Editora ARARA AZUL Ltda Revista Virtual de Cultura Surda ENTREVISTA. Carilissa Dall Alba

SUGESTÃO DE LITURGIA PARA O DOMINGO DE RAMOS E O DIA DO/A PASTOR/A 2014.

À CONVERSA COM UMA PROFISSIONAL

INTERNET: FACILIDADE PARA OS ALUNOS, OU PREOCUPAÇÃO PARA OS PAIS

VALORES CULTURAIS (INDÍGENAS) KAINGANG

Diversidade. Linguística. na Escola Portuguesa. Projecto Diversidade Linguística na Escola Portuguesa (ILTEC)

NEWSLETTER nº1 FEVEREIRO PROPOSTA REGIME JURÍDICO DA PROMOÇÃO IMOBILIÁRIA Novas Regras em 2008

Intervenção da Presidente da Câmara Municipal de Almada na Inauguração do 2º troço da 1ª fase da Rede do Metro Sul do Tejo. 15 de Dezembro de 2007

E- Queria começar por te perguntar quanto tu soubeste que ias para o teatro como é que foi a tua reação, ficaste entusiasmado, não ficaste E4- Fiquei

3. FALAR SOBRE A VOCAÇÃO

CONGRESSO DEMOCRACIA PORTUGUESA. Painel Portugal e o Mundo. Sinopse da comunicação Das Fronteiras. Autor: Helder Macedo

CATEQUESE 10 JESUS ENTREGA A SUA VIDA

CIÊNCIA, CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: CONCEPÇÕES DE PROFESSORES DO 1º CICLO

PROGRAMA APRENDIZ COMGÁS

ZA4894. Country Specific Questionnaire Portugal

Treinamento sobre Progress Report.

Learning by Ear Aprender de Ouvido Globalização 07 Migração interna em África

DIA MUNDIAL DA CRIANÇA

Seminário Bibliotecas Escolares - NÓS da rede Auditório Municipal de Montalegre 6 de Junho de 2009

Curriculum Vitae. 1- Dados Pessoais. 2- Habilitações Académicas

Margarita Barreto. Grabum, N. [et al.]. Turismo e antropologia: novas abordagens. Campinas: Papirus, 2009.

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA GRAVIDEZ: A EXPERIÊNCIA DA MATERNIDADE EM INSTITUIÇÃO DADOS SÓCIO-DEMOGRÁFICOS. Idade na admissão.

O Questionário RX. 1 - Você está acima do peso? E se está, sabe exatamente quantos quilos tem hoje?

OFICINA DE ORGANIZAÇÃO PESSOAL MARCIA NOLETO PERSONAL ORGANIZER

ANUALIZAÇÃO 2015/2016

Deus nos dá amigos. Um lugar especial. 5anos. Edição do aluno. Estudos bíblicos Pré-escolar. Ano CIV Nº 389

Caderno de atividades

Perfil Sociolinguístico Questionário para pais e mães:

NOVIDADES MULHERES EM ACÇÃO - CABINDA

AS INSTITUIÇÕES EUROPEIAS

Reformas em Portugal: As verdades que os Portugueses desconhecem. 25 de Novembro de 2008

ATIVIDADE 02 O CONJUNTO ARQUITETÔNICO DA PAMPULHA: UM CARTÃO-POSTAL DA CIDADE

IGUALDADE DE GÉNERO Margareta Winberg: As mulheres não são livres sem dinheiro

Êta bicho curioso! Sempre tentamos entender como funcionam as coisas?

Apontamento de Despesas

UNIÃO EUROPEIA. Col. Sta. Clara Prof. Marcos

CADERNO DE ATIVIDADES. História

Vila Praia de Âncora Monopólio privado do 3º ciclo com escola pública disponível do outro lado da Rua.

O QUE SABEMOS: O QUE QUEREMOS SABER: ONDE PODEMOS SABER: O QUE É O CINEMA? O QUE É PRECISO PARA FAZER FILMES? O QUE CONTAM OS FILMES?

Entrevista coletiva concedida pela Presidenta da República, Dilma Rousseff, após visita à Universidade de Coimbra

CENTRO DE BEM ESTAR INFANTIL NOSSA SENHORA DE FÁTIMA ANO LECTIVO 2007/2008

Associação Fundo Jovem Tsedaká

Tipos de investigação educacional diferenciados por:

Cluster Habitat Sustentável

40 Anos da Independência de Cabo Verde- O Olhar da Diáspora

Estudo de Caso: Futebol Brasileiro no Facebook. Aha, uhu, o Maraca é nosso!

A IMIGRAÇÃO EM PORTUGAL E NO ALENTEJO. A SINGULARIDADE DO CONCELHO DE ODEMIRA.

Segmentos da Entrevista do Protocolo 5: Alunos do Pré-Escolar

PROJECTO DE RESOLUÇÃO N.º 95/VIII COMBATE À INSEGURANÇA E VIOLÊNCIA EM MEIO ESCOLAR

CURRICULUM BREVE. Desempenhou funções docentes no ensino secundário no Lubango (Angola).

Anexo Entrevista G1.1

Discurso. (Em Defesa da Autonomia)

EVANGELHO Lc 20,27-38

ESCOLA SECUNDÁRIA/3 DE FELGUEIRAS Matemática para a Vida EFA Nível B3 ACTIVIDADE

Portugal e o Fim do Colonialismo, de Miguel B. Jerónimo e António C. Pinto, por Francisco Martinho

CONCORDÂNCIA NOMINAL. Página 172

R I T A FERRO RODRIGUES

LETRAS E CIFRAS DO CD VAI COMEÇAR A MISSA

Education and Training

Projectos de vida de jovens com baixas qualificações escolares

BALANÇO PATRIMONIAL AMBIENTAL - EXERCÍCIO COMENTADO Prof Alan

ANEXO 14 FICHAS DE AVALIAÇÃO SOCIAL

Agradeço a atenção e espero a aprovação desta petição e a criação do DIA NACIONAL DOS SONHOS.

BUSCAPRONTA

Formação à distância do Centro Virtual Camões do Instituto Camões Ensino e Aprendizagem do Português Europeu L2, 6 créditos ECS.

O que há por trás do véu?

500 anos: O Brasil - Império na TV

CONTRIBUTOS DA NOVA REGULAMENTAÇÃOPARA A EFICIÊNCIA ENERGÉTICA EM EDIFÍCIOS. alinedelgado@quercusancn.org quercus@quercus.pt

M U L H E R E S D O B R A S I L. Setembro2015

TEMA I A EUROPA E O MUNDO NO LIMIAR DO SÉC. XX

Ensino Técnico Integrado ao Médio FORMAÇÃO GERAL. Ensino Médio

A HISTORIA "INUMANA. 3 2 iro f 3 MASSACRES E GENOCÍDIOS DAS ORIGENS AOS NOSSOS DIAS GUY RICHARD DIRECÇÃO DE: Autores:

Imagine com Munhoz e Mariano. Feito por uma fã muito apaixonada, que estava afim de compartilhar com as outras fãs!

Doutoramento ès Sciences Économiques et Sociales, Université de Genève, Suíça,

PORTARIA DAAE Nº 0031/10 ANEXO I MANUAL DE INSTALAÇÃO: PADRONIZAÇÃO DAS LIGAÇÕES DE ÁGUA

Decreto do Governo n.º 6/84 Acordo Europeu sobre o Regime da Circulação das Pessoas entre os Países Membros do Conselho da Europa

Redes de Computadores

RELATÓRIO FOTOGRAFICO. Fevereiro e Março / 2016

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de"como Educar Meu Filho?" (Publifolha)

COLÉGIO VICENTINO IMACULADO CORAÇÃO DE MARIA Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio Rua Rui Barbosa, 1324, Toledo PR Fone:

GUIA PRÁTICO SUBSÍDIO DE LAR

Transcrição:

WEEKEND (/WEEKEND) Margarida Calafate Ribeiro: A Europa deu soluções coloniais para situações pós coloniais Margarida Calafate Ribeiro foi pioneira em Portugal dos estudos pós coloniais e, sobretudo, dos estudos que olham para a pós memória. Lançou o projecto Memoirs: Filhos de Império e Pós memórias europeias e o livro Geometrias da memória: configurações pós coloniais Susana Moreira Marques 30 de dezembro de 2016 às 12:30 No Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra, começou recentemente um projecto ambicioso, com financiamento europeu, o projecto "Memoirs: Filhos de Império e Pósmemórias europeias", que olha para a maneira como está a ser Bruno Simão construída a pós memória dos impérios e do seu fim. Debruça se sobre o caso de Portugal mas também da França e da Bélgica. Acaba de publicar um primeiro livro no âmbito dessa investigação: "Geometrias da memória: configurações pós coloniais" (Edições Afrontamento). Essas pós memórias, de guerras coloniais, de processos de descolonização, de processos de migrações de ex colónias, de questionamentos de nacionalidade, identidade, http://www.jornaldenegocios.pt/weekend/detalhe/margarida calafate ribeiro a europa deu solucoes coloniais para situacoes pos coloniais 1/5

raça, parecem ser mais importantes do que nunca para a Europa. São essas memórias que estão na base da Europa multicultural, tão amada, tão incompreendida, tão confusa consigo mesma. 1. Na morte da última testemunha, o que fica é a pós memória e a pós memória, a memória das gerações seguintes, tanto a nível artístico, como a nível historiográfico, como a um nível mais académico ou ensaístico, etc. é uma recusa em pôr um ponto final na História e na interrogação sobre aquilo que de facto se passou. A memória dos filhos é uma memória muito fragmentada e composta, por vezes, de memórias próprias, da infância; de memórias de narrativas contadas pelos adultos, pelos pais; de objectos; de fotografias; e, também, de narrativas públicas. Ainda agora estive na Bélgica, porque este projecto no qual estou a trabalhar, "Memoirs: Filhos de Império e Pós memórias europeias", tem uma dimensão comparativa e estuda também a Bélgica e a França. No caso da Bélgica e do Congo, há uma série de memórias muito semelhantes nos ex colonizadores e nos ex colonizados. Mas reparei que os ex colonizadores têm muitos objectos em casa: mesas, estátuas, fotografias. Os ex colonizados normalmente não têm. Isso foi uma coisa que me sensibilizou bastante. Porque mostra percursos muito diferentes, eventualmente ambos em fuga, ambos fora do paradigma narrativo principal da História, mas em situações de subalternidade muito diferentes. Isto quer dizer que os filhos de congoleses, que vivem na Bélgica, os belgocongoleses, e os belgas filhos de ex colonizadores têm instrumentos completamente diferentes para construir a sua memória. Por exemplo, aqui em Portugal, como em França, a casa do ex combatente costuma ter muitos objectos e as crianças crescem com esses objectos. A casa dos retornados ficou lá, em África. E, portanto, a casa é um espaço de imaginação total. 2. Eu vivi primeiro em França, porque sou de estudos franceses, e depois fui para Londres, para o King's College. Voltei de Inglaterra para vir para o CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) começar o primeiro http://www.jornaldenegocios.pt/weekend/detalhe/margarida calafate ribeiro a europa deu solucoes coloniais para situacoes pos coloniais 2/5

doutoramento em Pós Colonialismos e Cidadania Global. Isto foi em 2002. Na altura, era uma área bastante nova em Portugal e tinha uma dimensão um bocadinho importada. Os estudos pós coloniais projectam se com uma dimensão muito anglo saxónica, esquecendo um pouco o lastro de outras Histórias. Mas o CES era um centro muito virado para o mundo de língua portuguesa e para a América Latina e era um lugar com um ambiente muito internacional. Havia ali uma mistura de influências muito grande. Interessou me logo abordar estes temas de um ponto de vista comparativo. Essa abordagem faz questionar, por exemplo, a questão do excepcionalismo. Todos os impérios se afirmaram pelo excepcionalismo. Os franceses são excepcionais. Os italianos são a "brava gente". Os portugueses, excepcionais com o seu lusotropicalismo. Os ingleses, com a sua especificidade de colonialismo mundial. Na realidade, quando comparamos, há uma série de gramáticas comuns. Estou a falar de modelos imperiais europeus ultramarinos. Mas há outros modelos imperiais europeus que vão da Alemanha até à Rússia, e que, de uma forma muito genérica, são modelos de anexação de território próximo. Mas a retórica em nome da qual se faz isso é a mesma. A Alemanha invade a Polónia porque eles eram selvagens. As gramáticas de ocupação são muito semelhantes. Há o modelo germânico, há o império russo que dá o império soviético, há o modelo austrohúngaro, há o modelo nórdico... Esta é uma questão que eventualmente une a Europa: de Portugal até à Rússia, a herança imperial, seja como colonizadores ou como ex colonizados, compõe nos. 3. Há um lastro histórico muito concreto nas migrações para França ou nas migrações para o Reino Unido ou nas migrações para Portugal que tem a ver com as dimensões imperiais destes países. Normalmente, os impérios ultramarinos refluíam na Europa através de dinheiro, através de artefactos, de arquivos, de exposições, mas não desta forma tão clara que é o ser humano. O ser humano que transporta a sua família, que transporta a sua cultura, as suas outras línguas, outras crenças, outras formas de olhar. Isso modificou o terreno europeu. E a ideia do que é ser europeu. http://www.jornaldenegocios.pt/weekend/detalhe/margarida calafate ribeiro a europa deu solucoes coloniais para situacoes pos coloniais 3/5

As segundas gerações dessas migrações pós coloniais são gerações europeias. O [pensador] Tariq Ramadan deu uma vez uma definição muito interessante; disse que se definia como um "europeu de memória egípcia". Acho absolutamente legítimo que um jovem luso angolano se defina assim: como um europeu de memória angolana. Tal como acho absolutamente legítimo que um filho de um retornado se defina assim. O trabalho sobre a pós memória, sobre a construção da memória pelas segundas gerações, parece me um trabalho importante, politicamente, na Europa, neste momento. A política é a vida das pessoas: a maneira como interagimos uns com os outros. A Europa, durante muitos anos, deu soluções coloniais para situações póscoloniais. E isso tem o seu preço. 4. A descolonização foi traumática. Penso que uma grande parte dos retornados esteve de luto. Há essa dimensão do silêncio: é um silêncio que fala. Esse silêncio, durante muito tempo, ultrapassava se apenas em grupos, comunidades de memória: grupos de ex combatentes, grupos de ex retornados, e não perpassava para a sociedade, porque ninguém queria saber. Foi um pouco como o que aconteceu na Europa após a Segunda Guerra Mundial: alguém queria saber o que é que tinha acontecido nos campos de concentração nazis? Há, de facto, um momento de luto, de silêncio. Depois, a geração do testemunho envelhece e fazem se os balanços. E há o recordar de um período que acaba também por ser muito imaginativo, porque a memória tem essa dimensão, felizmente para nós, que nos faz esquecer as coisas piores e recordar as coisas melhores: que, normalmente, têm a ver com os momentos de juventude. E não é por a pessoa ter estado, digamos, do lado errado da História, que deixa de ter direito a esse trauma. A segunda geração, em Portugal, como noutros países da Europa, é já um pouco descomprometida. E depois é interessante ver um certo conflito de memórias inter familiares. No outro dia, na Bélgica, entrevistando uma filha de uma ex http://www.jornaldenegocios.pt/weekend/detalhe/margarida calafate ribeiro a europa deu solucoes coloniais para situacoes pos coloniais 4/5

colonizadora, ela dizia me: "Mas já viu: a minha mãe tinha um 'boy!' Acha normal ter um 'boy'? É uma coisa que eu não consigo imaginar." http://www.jornaldenegocios.pt/weekend/detalhe/margarida calafate ribeiro a europa deu solucoes coloniais para situacoes pos coloniais 5/5