1 O SUJEITO FORACLUÍDO DA CIÊNCIA E O DISCURSO DO PSICANALISTA NA INSTITUIÇÃO Roseane Freitas Nicolau i, Alcione Alves Hummel Monteiro ii, Ingrid de Figueiredo Ventura iii, Jamile Luz Morais iv, Patrícia do Socorro Nunes Pereira v, Roseane Torres de Madeiro vi, Sandra Helena Gomes vii, Vanusa Balieiro do Rego Barra viii Este trabalho apresenta os resultados parciais da pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Pará (UFPA), intitulada A Psicanálise, o Sujeito e a Instituição, a qual objetiva discutir o lugar do sujeito na instituição, considerando o discurso do analista e os outros discursos que nela circulam. Para tal, investigamos junto à instituição, particularmente o Hospital Universitário Bettina Ferro, de onde muitos pacientes são encaminhados para a Clínica de Psicologia da UFPA, o que pensam os profissionais a respeito do tratamento psicológico de sintomas e queixas que não se inserem na lógica do saber médico. A partir daí pensamos estabelecer um trabalho conjunto, pois consideramos que os pacientes podem se beneficiar do encontro com um psicanalista, no sentido de se posicionar de outra forma em relação ao seu próprio corpo. Desse modo, questionamos como o discurso do analista pode operar em um contexto onde o saber da ciência abole o sujeito do desejo, pois como nos diz Alberti (2000: 39), o hospital é um campo de entrecruzamentos discursivos, o que nos remete à teoria dos quatro discursos postulados por Lacan (1969-1970/1992) para estabelecer os laços sociais: o discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso do psicanalista e o discurso do universitário. Na instituição hospitalar estão presentes os discursos do médico, que identificamos com o do mestre, e o do universitário. Como articular aí o discurso do psicanalista, que leva em conta a dimensão subjetiva do doente? Em princípio, o intuito primordial desta pesquisa é mapear os limites e as competências da psicanálise, da medicina e dos saberes afins, visando entender como é possível trabalhar com esses diversos campos sem que partilhem a mesma opinião em relação a determinado caso clínico. Não visamos com isso promover o que seria uma pseudo-posição psicanalítica para uso dos médicos, dos tratadores, confrontados com seus pacientes, mas buscamos depreender de que modo a psicanálise permite esclarecer certas posições subjetivas que poderiam ser levadas em conta. Ou seja, visamos demarcar certas complexidades nas diversas formas de se formularem demandas de
2 tratamento, que não devem ser confundidas com demandas de análise. Essa demarcação exige a atenção de todo aquele que exerce a função de cuidar, seja qual for seu estatuto, a partir do momento em que se encontra na situação de ter que escutar uma demanda ou uma queixa. Quando o saber médico falha em responder ao sofrimento do corpo, o saber psicológico é convocado. Assim, a partir do fracasso, percebe-se que a ordem médica não pode imperar sozinha, necessitando da introdução de outra ordem. Dessa forma, abre-se um espaço na instituição para o discurso psicanalítico. É nesse ponto que os psicanalistas procuram inserir o dispositivo analítico, com sua ética própria, por intermédio de uma clínica que visa o sujeito e não sua doença, o sujeito que não pode ser tratado pelo saber médico, o sujeito que traz em si sua essência de faltante. É o sujeito do inconsciente em sua dimensão de alienação ao Outro. Do ponto de vista da psicanálise, algo do sujeito aparece em seu sintoma e o que se demanda numa análise é resgatar um sentido para a verdade que se bifurca entre duas posições: a verdade do sintoma e a verdade do sujeito, verdade esta tomada de um ponto constitutivo, como nos afirma Lacan (1965-66/1998): Uma retomada da experiência segundo uma dialética que melhor se define como aquilo que o estruturalismo, mais tarde, permitiu elaborar logicamente; ou seja, o sujeito, e o sujeito tomado numa divisão constitutiva (p. 870). Ou seja, é onde algo escapa que o discurso do psicanalista aparece para causar o surgimento de um saber singular, próprio deste sujeito, dividido entre o saber e a verdade. Daí a importância de pensarmos a inserção da psicanálise em um hospital universitário. No entanto, como inserir o discurso da psicanálise neste contexto? Quais as dificuldades enfrentadas pelos psicanalistas que avançam na direção do que Lacan (1964/2003) designou psicanálise em extensão, ao exercer sua prática nas instituições e sustentar o desejo do analista? Como se dão os encontros e desencontros entre o discurso médico e o discurso psicanalítico? Ou melhor, como se articulam os discursos do médico e do analista no hospital? Poderá o analista assumir o lugar de agente do discurso e promover uma mudança no laço social num local referido ao discurso médico? Quais as possibilidades de transmissão da operação analítica sem que o psicanalista precise reivindicar a sua especificidade? Como podemos pensar a direção do tratamento no espaço coletivo? São questões que procuramos responder com esta pesquisa, onde pretendemos verificar as formas de abordar o sofrimento.
3 Freud (1910) se mostrou sensível à entrada da psicanálise no espaço institucional e à interlocução dos psicanalistas com outras disciplinas, no sentido de estender a clínica à população. Entretanto, ao mesmo tempo se mostrou cauteloso ao sugerir a inclusão de algumas inovações no campo da técnica, temendo os desvios daquilo a que a psicanálise visa: a dimensão ética do sintoma. Por isso, não podemos esquecer que no confronto com outros saberes, é preciso manter nossa especificidade de escuta clínica. Se o psicanalista é aquele que se dirige ao sujeito do inconsciente, haveria lugar para ele em uma instituição marcada pelo discurso médico, cuja ênfase é o corpo como organismo? Muitos psicanalistas inseridos nos serviços de atenção à saúde têm pensado a inserção da psicanálise neste campo (ALBERTI, 2000; FIGUEIREDO, 2002; RINALDI, 2005; FULCO, 2005), tentando fugir a uma idealização pela via da massificação dos atendimentos. A psicanálise se constitui e se firma teorizando cada situação particular, levando em conta as singularidades dos sujeitos envolvidos. É esta especificidade que lhe dá consistência, e é isso que não devemos esquecer. Querer fazer da psicanálise uma ferramenta a mais para lidar com o sofrimento é uma falácia, pois ela não se presta a tamponar a falta, seja dos outros discursos, seja do profissional que intervém nas instituições. Por outro lado, a psicanálise nos ensina que para um ato clínico ser simbolicamente eficaz, ele tem que remeter a algo que seja imanente ao próprio contexto sobre o qual se propõe a produzir efeitos. Isso significa que nenhum ato é eficaz, se não se remeter a algo prévio da situação. Se tal não acontecer, não haverá ato analítico, mas uma pura e fria intervenção, que apesar de apaziguar, não terá nenhuma eficácia simbólica. É por isso que nós analistas aprendemos a escutar tanto. Para que o momento do ato, que é um momento de decisão, parta da situação, seja determinado por ela. Pensamos nesta pesquisa em delinear pontos significativos que estão em jogo nos distintos casos clínicos, bem como elaborar elementos que possibilitem uma formalização teórica mais precisa, permitindo sustentar a direção da cura em intervenção multidisciplinar. Para a psicanálise, teoria e prática são indissociáveis, por isso discutimos a problemática da cura no interior mesmo do tratamento. A escuta clínica articulada às reflexões teóricas permite apreender as regulações da relação do sujeito com seu corpo e os modos como esse sujeito vem a adoecer. Dessa forma, aprofundamos o estudo teórico das principais construções freudianas e lacanianas
4 referentes às relações entre sintoma e corpo, para forjar dispositivos clínicos institucionais que possam circunscrever a possibilidade de uma escuta que opere na redução dos sintomas. Para tanto, estabelecer uma aliança de trabalho com a equipe é fundamental, investigando, em primeiro lugar, as ideias dos profissionais a respeito desses sintomas inexplicáveis e o valor que eles atribuem ao atendimento psicológico. Em segundo lugar, é importante analisar como as ideias da equipe atravessam os atendimentos e a escuta dos pacientes, visando possibilitar um giro discursivo. O certo é que, quando aparece a relação particular do paciente com sua doença, aparece também um não saber o que fazer, na condução do tratamento. E é neste momento que o técnico da equipe médica depara-se com seu não-saber, provocando muitas vezes uma paralisia na condução do tratamento. O psicanalista sabe que o conhecimento de como tratar um paciente específico não está nos livros, é preciso construí-lo a cada caso, apontando o efeito de sujeito na lesão do corpo. Partindo da ideia de que o sofrimento humano, seja do corpo ou da alma articula-se na ordem do psíquico, nos propomos resgatar alguns pontos essenciais no desafio que hoje nos apresenta o trato às doenças do corpo e da alma. Buscamos subsídios para a proposta de ação profissional que se encontra na interface entre a medicina e a psicanálise, que não pode ser outra que não a de uma intervenção transdisciplinar. Inserir na equipe do hospital o discurso da psicanálise é uma proposta que visa levar em conta a dimensão subjetiva da doença. Acreditamos que a adesão da equipe a esse aspecto permitirá a abertura do paciente ao inconsciente. É isto que nos leva a propor esta investigação. Partimos da hipótese de que a dificuldade do paciente em considerar a dimensão subjetiva não se restringe apenas ao que é intrínseco ao tratamento, mas estende-se a questões institucionais, localizada nas relações da equipe de saúde com o saber psicológico. Relativamente à escuta clínica de sujeitos acometidos por enfermidades que a medicina classifica como psicossomáticas, constatamos uma certa labilidade na elaboração simbólica e um certo predomínio do imaginário na realidade psíquica destes sujeitos, resultando em grande dificuldade de subjetivação. Podemos dizer que, nesses casos, o corpo se coloca como a principal queixa do sujeito. Isso os mantém colados à doença, ao real do corpo, tornando difícil incluí-la no registro simbólico, onde uma
5 história é possível de ser contada e decifrada. Esta é uma dificuldade inerente à clínica, que implica muitas vezes em abandono do tratamento. A análise dos resultados da pesquisa citada nos mostra que esta dificuldade engendra-se na própria constituição do sintoma, que é preciso delimitar. Se para a medicina, uma doença atípica, qualquer que seja, é classificada como psicossomática, para a psicanálise há um sujeito implicado que se apresenta de diferentes modos nas manifestações corporais. Ou seja, há distintas formas de constituição subjetiva implicadas com a queixa orgânica, que podem dificultar ao sujeito incluir a doença em sua história. Por isso consideramos importante escutar como o sujeito se posiciona em relação ao seu sintoma, na medida em que a psicanálise pensa o adoecimento corporal em duas vertentes: a conversão histérica (da ordem do sintoma, portanto, inscrito no registro simbólico) e o Fenômeno Psicossomático (da ordem do real, fora das construções simbólicas). Para escutar o sofrimento do sujeito e possibilitar que sua fala se dirija a algo subjetivável é fundamental estabelecer esta diferença durante as entrevistas preliminares, pois disso depende a direção do tratamento (NICOLAU, 2008). Por outro lado, observamos que a dificuldade de desprender-se da doença, embora se constitua também como uma resistência inerente a um certo modo de organização subjetiva, pode ser acirrada pelas concepções médicas que geralmente permeiam a equipe de saúde e que são transpostas aos pacientes por ocasião do encaminhamento, ou mesmo resultam em não encaminhamento. Se o profissional da equipe de saúde percebe que o entrave na condução de um tratamento não é técnico, e sim subjetivo, ele pode solicitar a ajuda do psicólogo. Ocorreria esta percepção por parte da equipe de saúde do Hospital Bettina Ferro, de onde vem grande parte dos pacientes? Como lidam ali os profissionais diante de pacientes que sofrem de alguma doença atípica? Eles consideram o aspecto subjetivo da doença? Isso é o que pretendemos verificar, pois encontramos dificuldades que se somam à compreensão teórica e à condução do tratamento, dificuldades estas que dizem respeito ao modo como são feitos os encaminhamentos pela equipe de saúde, ou ainda pela falta de esclarecimento relativamente ao tratamento psicológico. Diante dos impasses na condução do tratamento de uma doença que não responde ao saber médico, o profissional de saúde pode ter diferentes atitudes, conforme observou Fulco (2005) em uma pesquisa sobre a questão da multidisciplinaridade. A autora aponta duas atitudes do profissional de saúde frente ao funcionamento do corpo
6 doente que foge ao padrão: interpretar a falta de resultados satisfatórios no tratamento como sendo responsabilidade do paciente, ou endereçar um pedido de ajuda a outro profissional, uma vez que já havia utilizado as cartas de que dispunha, sendo o encaminhamento para o psicólogo a última opção. Será isso o que ocorre no Hospital Bettina Ferro? Apesar das dificuldades e dos obstáculos enfrentados para responder o problema colocado, salientamos que o trabalho foi realizado e atingiu parcialmente seus objetivos. As questões propostas foram respondidas, apresentamos um panorama acerca da inserção do saber psicanalítico em instituições, constatando que muitos ignoram os efeitos da psicanálise e desconsideram a especificidade da direção do tratamento psicanalítico, dificultando a transferência de trabalho em uma atuação multidisciplinar. Referências Bibliográficas ALBERTI, Sonia. Psicanálise: a última flor da medicina. In, ALBERTI, Sonia e ELIA, Luciano (org.) Clínica e pesquisa em psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. FIGUEIREDO, A.C. Vastas Confusões e Atendimentos Imperfeitos - a clínica psicanalítica no ambulatório público, Rio de Janeiro, ed. Relume-Dumará, 1997, 3ª edição 2002. FREUD, S (1910). As perspectivas futuras da terapia psicanalítica. ESB, Vol. X. FULCO, Ana Paula Lettieri. Psicanálise e reabilitação: a questão da multidisciplinaridade na instituição. In, ALBERTI, Sonia e ELIA, Luciano (org.) Clínica e pesquisa em psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. LACAN, J (1964) O Seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. (originalmente publicado em 1973). (1969-1970) O Seminário, Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. (1965-66). A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 855-892.
7 NICOLAU, Roseane. F. A psicossomática e a escrita do real. REVISTA: Mal-Estar e Subjetividade, Vol. 8, Nº 4 (dezembro de 2008). Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2008, p. 959-990. RINALDI, D. Clínica e Política: a direção do tratamento psicanalítico no campo da saúde mental In: Altoé, S. e Lima, M. M. Psicanálise, Clínica e Instituição, Rio de Janeiro, Ed. Rios Ambiciosos, 2005, p.87-106. i Psicanalista, Professora-Doutora do Programa em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e coordenadora do Grupo de Pesquisa Psicanálise, Sujeito e Instituição, cadastrado no CNPQ. Endereço residencial: Rua dos Mundurucus, 1553, apt. 501. Bairro: Batista Campos. CEP: 66035-360. Endereço eletrônico: rf-nicolau@uol.com.br. ii Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA, membro do Grupo de Freitas Nicolau. Endereço residencial: Tv.: Chaco Conjunto Guanabara, 2502 cs48, Bairro Marco, Belém PA. CEP: 66093-410. Endereço eletrônico: cy_hummel@yahoo.com.br iii Psicóloga, mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA, membro do Grupo de Pesquisa Psicanálise, Sujeito e Instituição, cadastrado no CNPQ e coordenado pela Profª Drª Roseane Freitas Nicolau. Endereço residencial: Rua Ó de Almeida, 1322, apt. 102. Bairro: Reduto. Belém PA. CEP: 66053-190. Endereço eletrônico: ifigueiredoventura@gmail.com. iv Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA, membro do Grupo de Freitas Nicolau. Endereço: Av. Governador José Malcher, nº 534, aptº 301. Bairro: Nazaré, Belém-PA. CEP: 66035-100. E-mail: jamile.luz.morais@gmail.com. v Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA, membro do Grupo de Freitas Nicolau. Endereço residencial: Tv. São Francisco, 437, Bl. 7, apt. 202. Bairro: Batista Campos. Belém PA. CEP: 66033-185. Endereço eletrônico: patnunespereira@yahoo.com.br. vi Psicóloga, mestranda do programa de pós-graduação em psicologia da UFPA, membro do Grupo de Freitas Nicolau. Endereço residencial: Trav. Pe. Eutíquio, 1940. Apto 1102. Bairro: Batista Campos. Belém-PA. CEP: 66033-170. Endereço eletrônico: rose_madeiro@yahoo.com.br. vii Psicóloga, membro do grupo de pesquisa Psicanálise, Sujeito e Instituição, cadastrado no CNPQ e coordenado pela Profª Drª Roseane Freitas Nicolau. Endereço eletrônico: shandrinha@yahoo.com.br. viii Psicanalista, mestranda do programa de pós-graduação em psicologia da UFPA, membro do Grupo de Freitas Nicolau. Endereço residencial: Av. Alcindo Cacela, 1490 Alameda Cheden Bitar, casa 137 Bairro: Nazaré. Belém-PA. CEP: 66040-080. Endereço eletrônico: vanusarego@gmail.com.
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