O TIRO E A CULATRA EM TROPA DE ELITE Marcelo Diana 1 Novamente, um filme que tem na trama favela, policiais e tiroteio tem na sua exibição para a opinião pública uma interessante pauta para o debate sobre a complicada relação entre a violência urbana e as instituições públicas no Brasil. Com a ressalva, no entanto, que nesse filme, ao contrário de Cidade de Deus e Falcão: meninos do tráfico, também sucessos de bilheteria, quem conta a história está do lado das forças de combate e repressão ao crime, isto é, está localizado no Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). A narrativa do filme é conduzida em primeira pessoa por Capitão Nascimento, um oficial do BOPE que após tomar a decisão de abandonar o Batalhão depara-se com a difícil tarefa de encontrar um substituto para ocupar o seu lugar. O detalhe de quem narra a história do filme é fundamental para não nos esquecermos de que ali está presente apenas uma versão dos fatos. No uso da voz em off de Capitão Nascimento para a montagem narrativa da história, o diretor pode usar do efeito de alguma verossimilhança entre as imagens e as falas que eram passadas no filme. Isso não quer dizer, por outro lado, que o filme não permita alguma outra interpretação ou não conheça descontinuidades elas estão repletas e, pelo contrário, precisamente porque o filme narra apenas um real que não é neutro, pois pessoal, observado do ponto de vista de um oficial do BOPE, vivido e sofrido por ele, é que o espectador pode tomar parte de que a história diz respeito a esse personagem e à sua perspectiva. Por meio dessa estratégia de narrativa, o diretor consegue criar o efeito de que a história será contada da maneira mais honesta e sincera possível, ao tomd e confessionário, porém sempre ressaltando que ali está apenas a perspectiva de uma das personagens. Narrando a história do tráfico e do crime a partir da personalidade do BOPE, o filme poderia ensaiar também a construção de outras personalidades, a partir de outras personagens, mas contudo não o faz, muito claramente porque a intenção ali é passar apenas uma versão dos fatos. Nesse sentido, o filme usa a própria fama e história do BOPE para trabalhar a sua crítica à instituição policial, às guerras do tráfico, ao comércio de drogas e à corrupção e violência urbana representadas na tela. Uma 1 Doutorando em ciência política no IUPERJ e pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade. 1
importante consideração a se fazer, portanto é a de que a opção narrativa do diretor não restringe necessariamente a posição ética que ele ou o público possa vir a assumir com essas temáticas apresentadas pelo filme. Se o efeito da narrativa em primeira pessoa parece levar o público a se identificar com a história que é ali contada porque tudo o que se conta é o que de fato se passa na tela porém a voz ao fundo, do oficial do BOPE, pode também inviabilizar a conclusão de que a única posição possível para se contar essa história seja aquela que se faz. Se uma parte do público por comodismo, oportunismo ou fidelidade elege a postura do Capitão Nascimento como a mais correta ou plausível para a narração do filme, não se pode derivar daí que o filme induz a isso e leva a essas conclusões, uma vez que é o público e não o diretor quem as declinou na sua exibição. Arrisco-me em algum exagero, mas garanto a dúvida: será que os espectadores que aplaudiram e ovacionaram o BOPE durante a exibição do filme já não indiciavam essa posição pró-caveira antes mesmo do lançamento do filme, encontrando na exibição de Tropa de Elite quase como um estimulante, um palco de cena, um contexto forjado para a explicitação das suas opiniões? Caso assim seja, José Padilha, diretor do filme, não poderia ser o responsável por essas opiniões pelo menos não sem o geral da sociedade. A fortuna crítica do filme deve ser generosa e compreender que embora uma obra artística seja sempre autoral, sua recepção será, em contrapartida, uma responsabilidade do público. O entendimento do filme por maniqueísmos ou simplificações designando-o de fascista ou coisa que o valha não facilita em nada a sua audiência crítica ou o seu sucesso. Na história narrada, aliás, não há polícia nem ladrão pré-definidos a não ser o BOPE, claro, na perspectiva de Nascimento, que tem a tarefa de separar o joio do trigo. Um outro aspecto que chama bastante a atenção em Tropa de Elite é a quase ausência da ação do Estado nos dramas encenados durante o filme. Tudo se dá como se vivêssemos em uma sociedade sem Estado. Políticas públicas e sociais são personagens inexistentes no filme, quase nunca faladas, a não ser quando se trata de oportunismo ou desinteresse por parte dos governantes com a pobreza e os moradores da favela (basta lembrar das falas sempre cortadas do Secretário de Segurança Pública quando é entrevistado sobre as situações de violência e de morte que acontecem na cidade do Rio). Seguindo ainda esse ponto, porém de outra ponta, o Estado comparece na favela o filme inteiro, porém na figura do policial. Por isso, a representação do Estado no filme existe como repressão, não como promoção social. 2
Sua figura está ligada indissociável à imagem do policial do BOPE que garante a ordem a qualquer custo, porque somente o BOPE é incorruptível, numa clara distinção entre a ordem honesta e a ordem corrupta. Para desdobrar um pouco melhor esse tema, talvez possa valer a pena investir um pouco mais detalhadamente na personagem André Matias, um aspirante a oficial do BOPE. André Matias é um aspirante a oficial do BOPE que dedica a sua vida, além do trabalho na Polícia, ao curso de Direito em uma universidade localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro. Essa localização do Direito na região mais favorecida carioca está em um lugar de destaque no filme, uma vez que na cena de maior discordância entre André e os seus colegas de faculdade aparece a acusação, por parte de André, de que os seus colegas de curso estão muito mal informados acerca dos problemas que o consumo de drogas acarreta para os habitantes do morro, tentando com isso alertá-los para as conseqüências caso não se coíba o uso de drogas e não se reprima os usuários e consumidores que financiam o tráfico; porém, ressalta André, do apartamentinho de vocês na zona sul não dá para ver quantas crianças morrem em conflitos por causa do tráfico, responsabilizando a indiferença e a ignorância dos seus colegas por essas mortes inocentes ocorridas nos morros. Esse argumento será reproduzido mais adiante no filme pelo próprio Capitão Nascimento, que incrimina um usuário da zona sul pela morte de um morador do morro durante uma operação do Batalhão. A partir dessa trama, a disputa por isenção e o jogo de acusações estão sempre presentes nos diálogos entre policiais, traficantes e consumidores. Enquanto o BOPE incorpora a missão de acabar com o tráfico de drogas por meio do desarmamento e da prisão ou morte de traficantes, os moradores da zona sul com consciência social são assassinados por traficantes que arbitrariamente assumem o poder das suas vidas e, por outro lado, a zona sul somente reconhece a perda de uma vida quando ela ocorre próximo a ela, no asfalto. No morro, toda a morte é quase invisível, anônima, desconhecida mesmo. Durante o filme circula uma lógica perversa entre BOPE, usuários e traficantes, na qual nem o BOPE, nem o traficante e tampouco o usuário parecem estar muito inclinados a reconhecerem o verdadeiro assassino das mortes no tráfico. Por quê? Esse é um ponto interessante apresentado pelo filme, porém restringir o debate ao discurso de André Matias e do BOPE é reduzir, também, as opções que podem ser articuladas para se combater e reduzir a violência urbana no Rio de Janeiro. Para que 3
algumas soluções possam ser pensadas, é preciso que se considere o problema da violência enfrentando os moralismos e os preconceitos de classe que geralmente nele se associam. Esses moralismos podem estar embutidos naquele ponto de vista que identifica na polícia a proteção ou a corrupção do sistema de segurança, assim como podem se camuflar na visão elitista que prejulga que na favela só tem traficante, assim como a de que todo consumidor de droga é conivente com o tráfico. A descriminalização das drogas poderia ser uma das iniciativas a ser discutida como estratégia à desmobilização do tráfico nas favelas, porém, de igual modo, empurra o comércio de droga para o ponto em que ele deveria ser discutido, ou seja, como uma questão de saúde pública que diz respeito à dinâmica do corpo social. Não se trata simplesmente de identificar o bandido e o mocinho dessa história, eliminando clinicamente a parte maldita. À medida que o filme caminha podemos perceber que se torna tarefa cada vez mais difícil distribuir os papéis de polícia e ladrão aos personagens que tomam a cena na cultura pública brasileira ali encenada: policiais, traficantes, consumidores de drogas, políticos omissos, cidadãos suspeitos e cidadãos honestos, todos esses personagens somados a uma boa dose de emoção que a vida tem, formam complicados enredos que dão à cultura pública no Brasil a sua fisionomia caracteristicamente desconcertada. Mesmo André Matias, o estudante de Direito aplicado e um racional aspirante policial, encontra-se dividido entre dois mundos que, ao fim e ao cabo, às vezes se refletem e se ignoram: de um lado a corrupção no batalhão militar, por outro lado a indiferença dos meios mais intelectualizados. Entre a força e a razão, Matias pensa na união de ambas, tentando conciliar o curso de direito com o treinamento para o BOPE. A trajetória dessa personagem pode ser mesmo paradigmática, se pensarmos no importante debate que deveria ser alimentado atualmente acerca da complicada relação entre o mundo do direito e a vida social. Cambaleando sempre entre uma ordem legal e o impulso de agir (e André é capaz de ser corrupto até mesmo quando o objetivo é ser honesto), o aspirante a oficial do BOPE e o seu amigo e companheiro na Polícia, Neto, descobrem o verdadeiro modo de funcionamento do sistema e, desse ponto, detectam a melhor forma de não se render a ele: entrando para uma outra categoria incorruptível, fazendo parte da ordem honesta dessa história. Ambos os personagens têm destino distintos na carreira do BOPE, não obstante estes destinos estejam sempre interligados. Essa ligação torna-se mais visível à medida que o 4
narrador, Capitão Nascimento, se aproxima de Matias e, por fim, em umas das cenas finais, revela a escolha de Sofia que o iniciante no BOPE terá que fazer. Tropa de Elite busca como um retrato não apenas a rotina aflitiva de um oficial do BOPE. Retrata também os lugares da favela e do tráfico, do policial e do bandido, da morte e da sua responsabilidade no nosso imaginário social e mostra que uma história violenta nunca termina aonde ela aparentemente parece começar. Tropa de Elite osso duro de roer, pega um pega geral, também vai pegar você, mote do filme, não entoa realmente uma fácil escapatória: fomos todos pegos pelo medo da violência urbana. O tiro final em Tropa de Elite, decisivo para André Matias, está apontado também para o espectador. Há uma arma engatilhada contra a nossa cara, numa situação tensa, possivelmente de morte, cujo desenlace acertará violentamente o público, que escapa impressionado por um clarão. Ou não seria uma escapatória e, sim, um tiro pela culatra? O que temos depois disso, porém, já não poderia ser mais tema somente da ficção. 5