Intervenção para o Debate Público Nacional para a Reforma do Sistema de Recursos em Processo Civil Em primeiro lugar quero agradecer em nome do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados (CDCOA) a oportunidade que nos é dada de participar neste Debate Público para darem o seu contributo para a Reforma do Sistema de Recursos em Processo Civil. A evidente conexão do tema escolhido Modificação da Decisão da Matéria de Facto pelo Tribunal de Segunda Instância com outras áreas do processo civil levou a que esta nossa intervenção extravase os limites a que inicialmente nos tínhamos proposto. I A Decisão sobre a Matéria de Facto e o acerto da mesma é um tema bem caro aos Advogados. Somos nós, Advogados, os porta vozes dos cidadãos que recorrem à Justiça e ninguém melhor do que nós sabe o que é o sentimento de um cidadão injustiçado mesmo quando nalgumas dessas situações o Tribunal tenha feito efectivamente Justiça. 1
Os cidadãos, mais do que ninguém, anseiam por justiça mas dificilmente haverá uma decisão justa sem uma acertada decisão da matéria de facto. O facto de ser uma área nuclear justifica a razão da nossa escolha por este tema, esperando nós que esta nossa participação nos trabalhos preparatórios da Reforma do Sistema de Recursos, quer seja sobre questões de direito quer sobre matéria de facto, possa ser um contributo válido para que se atinja o desiderato porque todos ansiamos: uma melhor JUSTIÇA. II Até à Reforma do Código de Processo Civil concretizada pelo DL 39/95, de 15 de Fevereiro, apreciação da matéria de facto efectuada, quer pelo tribunal colectivo quer pelo Juiz singular, não previa a redução a escrito das provas produzidas em audiência de julgamento em 1ª instância em obediência aos princípios da imediação e oralidade. No quadro anterior à reforma de 95, era alínea a) do artº 712 que conferia o poder-dever ao tribunal de 2º instância de alterar a decisão da matéria de facto impugnada, mas tal sucedia apenas quando 2
constassem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão e ainda quando, tendo havido gravação da prova produzida em audiência, a decisão sobre a matéria de facto tiver sido objecto de recurso. Nesse quadro muito restrito da possibilidade de alteração da decisão de facto, o recurso de apelação circunscrevia-se, pois, praticamente às questões de direito, diversamente do que acontecia na generalidade dos países em que havia um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto. A Reforma de 1995 veio estabelecer a possibilidade de documentação ou registo da prova produzida nas audiências de julgamento, o que teve como consequência a ampliação dos poderes cognitivos da 2ª instância quanto à reapreciação da decisão de facto proferida na 1ª instância. Foi um passo decisivo no estabelecimento de um segundo grau de jurisdição quanto á matéria de facto mas ainda assim tímido e insuficiente pelas razões que se seguida passamos a expor: Uma primeira razão - Nos recursos efectuados com base no nº 2 do artº 712º do CPC, a Jurisprudência da 2ª instância, analisando a matéria de facto impugnada com base nas transcrições das passagens 3
da gravação em que se funda, por força do disposto no nº 2 do artº 690ºA do CPC, na redacção dada pelo DL 39/95, firmou-se no sentido da alteração da matéria de facto se restringir aos casos que, nos concretos pontos objecto de recurso, fosse notória a desconformidade entre as provas disponíveis e aquela decisão, invocando em defesa desta orientação o princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 655º, nº 1 do CPC. Esta orientação jurisprudencial, que não partilhamos por a considerarmos demasiado defensiva, não contribuiu para que se pudesse falar de um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto, com claro prejuízo para a descoberta da verdade material; Uma segunda razão - A situação que aparentemente mais se aproxima de um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto é a prevista no nº 3 do artº 712º. Todavia não esqueçamos que a determinação da renovação dos meios de prova produzidos na 1ª instância é uma faculdade conferida à 2ª instância em casos absolutamente excepcionais para se ultrapassarem dúvidas insanáveis sobre a correcção da decisão por aquela proferida; ou seja, segundo grau de jurisdição em matéria de facto, sim, mas com pressupostos de aplicação a casos muito, mas muito, restritos; 4
A terceira e última razão - A repetição do julgamento ordenada pela 2ª instância com fundamento no nº 4 do artº 712º do CPC, tem um carácter perigosamente atomístico e delimitado dado que essa repetição se cinge à parte da decisão que não esteja viciada, esquecendo-se o legislador que na grande maioria das situações apreciação da matéria de facto deve ser incindível. Resumindo, a introdução pela Reforma de 1995 do segundo grau de jurisdição em matéria de facto foi feita de forma tímida e insuficiente não garantindo uma verdadeira reapreciação da matéria de facto pela 2ª instância. Para aqueles que tinham fundadas dúvidas sobre o eficaz funcionamento do sistema do segundo grau de jurisdição em matéria de facto, havia uma válvula de escape: requerer-se que o julgamento em 1ª instância fosse feito pelo Tribunal Colectivo porque tinha a vantagem, que era ao mesmo tempo uma garantia, de a matéria de facto ser apreciada por três juízes. Em 2000, com a publicação do DL 183/00 de 10 de Agosto, ou seja passados pouco mais de três anos da entrada em vigor da Reforma, entrada essa ocorrida em 1997, o próprio legislador veio de alguma forma a reconhecer a insuficiência do sistema do segundo grau de 5
jurisdição em matéria de facto por aquela instituído e a sua tímida aplicação. Neste diploma, o DL nº 183/00, é introduzida uma alteração no sentido de o aperfeiçoar, isto é, a introdução de um nº 5 no artº 690ºA do CPC mediante o qual, ao contrário do que acontecia até então em que apenas eram lidas as transcrições dos depoimentos apresentadas pelas partes, o tribunal de recurso passa a fazer a audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes permitindo-se que a mediação e a oralidade voltassem a estar presentes, ainda que de forma mitigada, na apreciação da matéria de facto pela 2ª instância. E a sensação que temos é que, com esta alteração, a jurisprudência da 2ª instância deixou de ser tão exigente quanto ao critério de ser notória a desconformidade entre as provas disponíveis e a decisão em matéria de facto da 1ª instância. Consequentemente, passou a ser mais frequente a alteração da matéria de facto pela 2ª instância em claro benefício da descoberta da verdade material que o mesmo é dizer, em benefício das partes e da justiça. 6
III Mas será que ainda é possível aperfeiçoar o Sistema de Recursos em Matéria Cível, sejam eles sobre questões de direito ou sobre matéria de facto? A resposta será obviamente afirmativa mas as alterações a propor mexem, desde logo, com o sistema de recursos e com a própria organização judiciária. Uma primeira sugestão prende-se com as acções de valor superior ao da alçada do Tribunal da Relação em que não se justifica a existência de uma dupla jurisdição em matéria de direito. Nestas situações, o artº 725º, nº 1, do CPC prevê já a possibilidade de o recorrente requerer que o recurso da decisão de mérito proferida pela 1ª instância suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, prevê já a possibilidade do recurso per saltum. Em vez de ser uma faculdade conferida às partes, porque não introduzir obrigatoriamente o recurso per saltum para o STJ sempre que se suscitem apenas questões de direito no recurso interposto das decisões proferidas pela 1ª instância tal como sucede no processo penal. 7
Esta alteração tinha a grande vantagem de conferir maior celeridade aos processos cíveis sem que houvesse perda de garantias para as partes. Uma segunda sugestão, esta directamente relacionado com o tema desta nossa intervenção - Modificação da Decisão da Matéria de Facto pela 2ª Instância - é o aperfeiçoamento do actual sistema criando-se um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Nas situações em que se repute insuficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre a matéria de facto ou quando se considere indispensável ampliação desta, a lei processual devia prever a possibilidade de a 2ª instância não só poder, mas também dever, determinar a renovação dos meios de prova produzidos na 1ª instância, prova essa a ser produzida perante o Juiz relator e os respectivos juízes adjuntos. O facto de ser a última sede de apreciação em matéria de facto justifica plenamente que o julgamento se faça perante o colectivo de juízes do Tribunal da Relação. Esta solução que passa pela realização de um segundo julgamento em matéria de facto tem como justificação a necessidade de a prova dever 8
ser apreciada globalmente e não de forma parcelar pelos riscos que esta apreciação sempre comporta. Não se podendo falar ainda de uma verdadeira segunda jurisdição em matéria de facto, somos de opinião que se deve manter a possibilidade dos julgamentos em 1ª instância serem realizados pelo Tribunal Colectivo devendo, para o efeito, repristinar-se o sistema em que, para que este tribunal se constituísse, bastava uma das partes o requerer. As alterações propostas confeririam maior celeridade processual combinada com um reforço das garantias das partes nomeadamente em sede de apreciação da matéria de facto. Não desconhecemos as implicações que obrigatoriamente estas propostas teriam, desde logo: - Alteração das alçadas dos Tribunais de 1ª instância e da Relação para valores não inferiores, respectivamente, a 20.000,00 e a 50.000,00 - A necessidade de uma alteração, talvez não tão profunda como à primeira vista pode parecer, dos quadros dos Tribunais da Relação e do STJ; - Alteração da do artº 712 do CPC de forma a instituir-se um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto. 9
A criação deste verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto implicaria a criação de novas contrapartidas necessárias para dar o sempre desejado equilíbrio ao sistema de recursos em matéria cível. Os inconvenientes da realização de um segundo julgamento seriam atenuados com o facto de ser pressuposto necessário, para que se repetisse o julgamento perante a 2ª instância, que o Advogado do recorrente tivesse reclamado das respostas dadas aos pontos da matéria de facto e que não só da reclamação, mas também das alegações de recurso resultasse com um mínimo de evidência que a decisão proferida sobre essa matéria de facto fosse deficiente, obscura ou contraditória ou ainda quando se considerasse indispensável a sua ampliação. Mas para que a reclamação da decisão sobre a matéria de facto fosse pressuposto necessário de um segundo julgamento feito pela 2ª instância, teria o advogado que ter um prazo não inferior a 10 dias para reclamar, após o conhecimento das respostas aos pontos da matéria de facto, prazo esse absolutamente necessário para uma análise serena das mesmas ao contrário do que acontece com o actual sistema previsto no nº 4 do artº 653º do CPC que não permite uma 10
sua apreciação ponderada nomeadamente nas causas de alguma complexidade. São estas as propostas que aqui lançamos para a discussão na convicção, passe a imodéstia, de que as mesmas são um contributo para uma melhor e mais célere Justiça. Termino parafraseando Benjamin Disraeli: Nem sempre a acção traz felicidade, mas sem acção não há felicidade. 11