O Caminho Novo, a Serra da Estrela e a Vila de Inhomirim* Afonso José de Almeida-Manso Nos séculos XVIII e XIX, o Caminho Novo da estrada da Província de Minas Gerais, ligando a cidade do Rio de Janeiro a Vila Rica, apresentava duas principais variantes, conforme registros feitos por diferentes historiadores: o Caminho Novo do Tinguá ou do Garcia Rodrigues e o Caminho Novo de Inhomirim ou do Proença. A primeira foi aberta ao tráfego em 1704, quando o fazendeiro Garcia Rodrigues Paes concluiu as obras que lhe foram encomendadas pelas autoridades do Reino. Embora com travessias fluviais, essa variante seguia um traçado em terra firme desde a cidade do Rio de Janeiro, razão porque também costumava ser chamada de a estrada de terra, segundo cronistas da época. Partindo do Rio, a estrada alcançava Irajá, Iguassu (v.g., Nova Iguaçu), Pilar, serra do Tinguá, (Paty do) Alferes, Avelar, Paraiba do Sul e Registro do Paraibuna, onde se entroncava com a segunda variante do Caminho Novo, para alcançar (o Registro da Rocinha de) Simão Pereira, (Registro de) Matias Barbosa, (Fazenda do) Juiz de Fora, Chapéu d Uvas, Mantiqueira, Borda do Campo e o Registro Velho/Encruzilhada do Campo, nas proximidades de Barbacena, onde ocorria uma bifurcação, com um ramal para São João d el Rey (de onde seguia uma estrada para Lagoa Dourada, Ouro Branco e Vila Rica) e o outro diretamente para Ouro Branco e Vila Rica. A propósito, no relato da sua primeira viagem à Província de Minas Gerais, em 1817, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire anotou que a variante do Tinguá, a estrada de terra, era a preferida dos mineiros que temiam o mar. E esses medrosos não eram poucos dizia o francês. A segunda variante, chamada de Caminho Novo de Inhomirim ou do Proença, transpunha a serra do Mar no trecho então conhecido por Serra da Estrela, denominação tomada de empréstimo à grande cadeia de montanhas de Portugal. Conforme historiografia, a construção dessa variante foi contratada pelo governo da Capitania do Rio de Janeiro ao fazendeiro Bernardo Soares Proença, em 1721. O percurso completo envolvia um segmento marítimo-fluvial: partia-se do Porto dos Mineiros, nas proximidades do centro comercial do Rio de Janeiro, singrava-se a baía de Guanabara até o noroeste da ilha de Paquetá e subia-se o baixo curso do rio Inhomirim, aonde se alcançava o Porto da Estrela. A partir do Porto da Estrela, tomava-se a estrada para Inhomirim, situado nos sopés da serra da Estrela, galgava-se essa elevação e chegava-se à Fazenda do Padre *Parte integrante da coletânea Geleiras, flores e velhos caminhos. Direitos Autorais - BN/EDA/DF 2011 nº 234
2 Correia às margens do rio Piabanha, já no planalto. Continuava-se, então, para Secretário, Paraiba do Sul e Registro do Paraibuna, onde se dava o entroncamento com o Caminho Novo do Tinguá, conforme apontado anteriormente. Caberia observar que do povoado de Secretário também partia uma estrada para São João d el Rey, denominada Caminho do Rio Preto ou do Comércio, a qual fora mandada construir pela Junta de Comércio do Rio de Janeiro - segundo anotações de Saint-Hilaire. O Caminho Novo pela serra da Estrela tornou-se cada vez mais frequentado, as atividades comerciais da povoação de Inhomirim cada vez mais intensas, enquanto o porto da Estrela transformava-se num próspero ponto de movimentação e transbordo de cargas e baldeação de passageiros, tal como mostram diferentes ilustrações e indicam os relatos feitos naquela época. Tais progressos tornaram-se ainda maiores com o estabelecimento da Fábrica de Pólvora da Estrela em Inhomirim, mandada construir por D. Pedro I, em 1826. Os incentivos às atividades locais foram acrescidos com a fundação de Petrópolis pelo Imperador D. Pedro II, o que implicara em numerosas construções civis, contínua movimentação de pessoas do governo e de emissários estrangeiros entre o Rio e a nova cidade, além do estabelecimento de uma colônia de imigrantes alemães, que se promovia nas suas cercanias. Desse modo, para muitos cronistas, o Caminho Novo acabou por ser identificado com a própria variante de Inhomirim. E, de fato, assim aparece nos mapas ilustrativos da Estrada Real - uma designação contemporânea, idealizada para o resgate da memória de fatos e episódios da história do ciclo do ouro mineiro, relacionados com os principais caminhos usados naqueles tempos. Todo aquele desenvolvimento do Caminho Novo veio culminar na segunda metade do século XIX, com a construção da primeira ferrovia brasileira e a implantação dos primeiros serviços hidro-ferroviários integrados do país. Surgia, então, uma nova via de transportes na serra da Estrela. Em 1854 foram inaugurados os serviços de navegação marítima entre o Rio de Janeiro e Porto Mauá, situado nos fundos da baía de Guanabara, bem como a sua integração com os serviços ferroviários que então se passava a oferecer entre Porto Mauá, Piabetá e Fragoso, os quais foram estendidos até Inhomirim dois anos mais tarde. A primeira locomotiva a vapor, a primeira estrada de ferro e os primeiros serviços hidro-ferroviários integrados do país aí tiveram lugar, portanto. No Porto Mauá, especialmente construído para esses novos serviços, o cais de atracação, dotado de via férrea e acoplado à estação ferroviária denominada Guia de Pacobaíba, avançava centenas de metros sobre as águas da baía, permitindo que os passageiros desembarcassem do vapor vindo do Rio e prontamente embarcassem no trem para seguir viagem. Esse feito pioneiro foi realizado
3 pelo notável empresário Irineu Evangelista de Souza, mais tarde agraciado pelo Imperador com o título de Barão de Mauá. Esse mesmo empresário pretendia estender os serviços ferroviários de Inhomirim até Petrópolis, com a construção de uma estrada de ferro para locomotivas com tração de cremalheira, tais os fortes aclives e declives a serem vencidos na serra. Em 1883 a E. F. Príncipe do Grão-Pará, nova concessionária dos serviços públicos, concretizava aquele projeto idealizado pelo Barão de Mauá e assim estabelecia outro marco do pioneirismo empresarial no país. Contudo, a posterior conexão ferroviária direta Rio de Janeiro - Piabetá levou, com o tempo e a concorrência de mercado, à descontinuação dos serviços de conexão marítima entre o Rio de Janeiro e Porto Mauá e à desativação da ferrovia entre Porto Mauá e a estação de Piabetá. A pioneira ferrovia de cremalheira Inhomirim-Petrópolis foi desativada, também, ficando-se privado das fantásticas vistas que, certamente, desfrutavam os seus passageiros quando o trem galgava ou descia a estrada nas suas curvas e pontilhões pendurados nas beiradas da serra: Um passeio ideal em qualquer época do ano, anunciava uma propaganda da E. F. Leopoldina, onde figurava uma veloz composição ferroviária cumprindo uma curva num pontilhão da estrada. Hoje, a primeira locomotiva empregada no tráfego regular entre Porto Mauá e Inhomirim, então apelidada de Baroneza, encontra-se exposta no Museu Imperial de Petrópolis; enquanto a infraestrutura metálica do cais do Porto, com a sua via férrea, enferruja-se e se desaba, e o simpático edifício da estaçãozinha de Pacobaíba deteriora-se paulatinamente. Entretanto, ainda se mantêm os serviços ferroviários entre Inhomirim e o Rio de Janeiro, os quais ora se acham a cargo da concessionária SuperVia. Atualmente, pouco uso se faz da denominação serra da Estrela, porquanto uma larga extensão da serra do Mar, junto às divisas do município petropolitano, passou a ser chamada de serra de Petrópolis. Contudo, o trecho do Caminho Novo na serra acha-se identificado pelos marcos de referência da Estrada Real, colaborando para a manutenção da memória histórica do lugar. Com o mesmo propósito, outro marco da Estrada Real foi fixado junto ao entroncamento da rodovia RJ-107 com a BR-116; um ponto que indica o rumo para o local, junto à margem direita do baixo do curso rio Inhomirim, onde se situava o antigo porto da Estrela. Da vila de Inhomirim até Petrópolis, no topo da serra da Estrela, o Caminho ora se apresenta largo, com pavimento de pedra ou asfalto, ainda mostrando velhas muradas de alvenaria, curvas e inclinações que demandam atenção, além de oferecer vistas memoráveis das serras, das suas rochas e da sua vegetação, da grande baía e das cidades lá embaixo.
4 Outrora uma próspera propriedade agrícola que hospedara Dom Pedro I em certa ocasião, a Fazenda do Padre Correia veio dar lugar ao nascimento de um povoado. Com a fundação e o crescimento de Petrópolis, o povoado acabou por se transformar num movimentado bairro da cidade, pouco restando do seu passado. A Vila de Inhomirim, hoje um distrito do município fluminense de Magé, exibe recantos pitorescos e aprazíveis, a par de algumas significativas relíquias de valor histórico. No entanto, essas riquezas parecem ser pouco consideradas e, muito frequentemente, até mesmo o topônimo Vila de Inhomirim vê-se substituído pela designação Raiz da Serra, decorrente das referências que se costumava fazer quanto à localização do povoado. Conforme já lembrado, em 1826, objetivando suprir as necessidades do Exército Imperial e livrar-se da dependência das importações, Dom Pedro I mandou estabelecer uma Fábrica de Pólvora em Inhomirim. Dessa fábrica subsiste um edifício claramente identificado e atualmente utilizado para a prestação pública de serviços médicos. Nesses mesmos sítios o Exército Brasileiro mantém a sua presença histórica, agora com instalações pertencentes à IMBEL Indústria de Material Bélico. Também nesse local, em 1926 foi erigido um obelisco para celebrar o centenário da data de fundação da Fábrica de Pólvora. A par da placa alusiva à Fábrica, esse monumento exibe, em grandes algarismos feitos de metal, a data da chegada da Corte portuguesa ao Brasil. E nas redondezas, outras relíquias: as ruínas da antiga Fazenda da Mandioca, que pertenceu a Georg Heinrich von Langsdorff, o ilustre Barão de Langsdorff, valoroso naturalista alemão e cônsul do Czar da Rússia junto à Corte Real no Rio de Janeiro. Nos começos do século XIX, numerosos naturalistas e outros estudiosos europeus vieram hospedar-se na Fazenda da Mandioca e participar de expedições promovidas pelo Barão, uma quais chegou ao Amazonas. A exemplo de outras fazendas da época, também a sua propriedade mantinha um rancho para acolher e dar apoio aos tropeiros e suas tropas de passagem pelo Caminho Novo. Johann M. Rugendas, nos seus preciosos registros ilustrados sobre a vida brasileira, incluiu três dos seus desenhos testemunhando os arredores de Inhomirim nos começos dos Oitocentos: um retrata a grande atividade do Porto da Estrela, do qual porto, aliás, hoje não parece restar nem mesmo ruínas; o outro, uma cena de caça a um jacaré no baixo Inhomirim, vendose construções do porto ou de uma fazenda, numa curva do rio; enquanto o terceiro exibe terrenos da Fazenda da Mandioca e as fortes elevações da Serra da Estrela, as quais ainda podem ser admiradas pelo visitante da Vila.
5 Thomas Ender, autor de igualmente valiosas ilustrações do Brasil antigo, deixou uma pitoresca aquarela intitulada 1766, Vista do Porto da Estrela. Nos seus relatos, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire comenta, admirado, o intenso movimento de tropas de carga que presenciara na Vila de Inhomirim em 1818, bem como a raridade de se contar com uma estrada larga e pavimentada para a subida da serra. Tais características desse trecho do Caminho Novo também foram anotadas pelo naturalista inglês C. J. Fox Bunbury, quando da sua visita ao Brasil em 1833-34. Ilustrações Descendo-se de Petrópolis a Inhomirim Marco da Estrada Real na Serra da Estrela Esboço de mapa de situação dos lugares e caminhos
A Guanabara vista dos altos da serra 6
7 Sopés da serra: Inhomirim, arredores de Magé e a margem carioca A serra da Estrela vista da praça de Inhomirim O chafariz da praça
8 As majestosas elevações da Estrela O alto curso do Inhomirim A antiga Fábrica de Pólvora
9 Duas datas: a chegada da Corte portuguesa e...... e o centenário da Fábrica Manhã de sábado na Vila