Identificação precoce dos casos de abuso sexual e respectiva sinalização e encaminhamento

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Transcrição:

Identificação precoce dos casos de abuso sexual e respectiva sinalização e encaminhamento MÁRIO CORDEIRO* *Professor de Pediatria e de Saúde Pública INTRODUÇÃO EDITORIAIS O abuso sexual, na sua diversa tipologia, constitui uma forma grave de maus tratos na infância e na adolescência e um atentado aos direitos consignados na Convenção dos Direitos da Criança da ONU e na Constituição da República. Embora se desconheça ainda a sua verdadeira dimensão, contribuindo para este facto a natureza da agressão e das suas componentes psicológicas e sociais, a multiplicidade de manifestações, muitas delas pouco características, e a tipologia diversificada de casos que se englobam nesta entidade, crê-se que se trata de um problema frequente, noção esta que tem sido consubstanciada nos diversos estudos realizados não apenas em Portugal como noutros países do mundo. São inúmeros os constrangimentos epidemiológicos de um assunto que é ainda um tabú social. Os problemas que se levantam a um completo conhecimento da situação são do foro metodológico mas também ético. No entanto, a pouco e pouco está-se a passar cada vez mais de «sensações» meramente empíricas, para dados de crescente rigor científico. Um estudo realizado pela DGS, em 1997, que consistiu num inquérito aos profissionais dos centros de saúde e ao qual responderam 3.465 profissionais (60% médicos, 37% enfermeiros e 2% de outras categorias) revelou que 11% (384) referiram ter contactado com pelo menos um caso de abuso sexual, no ano anterior. É de crer que se fosse repetido um estudo idêntico, actualmente, dada a sensibilização crescente para o problema, os resultados fossem ainda mais elevados. Sabe-se também que as consequências do abuso sexual, a curto, médio e longo prazo, são grandes e por vezes indeléveis (para além dos efeitos físicos, psicológicos e do traumatismo sobre a vivência de uma sexualidade adequada e normal, e do stress pós-traumático que pode perdurar a vida toda, há um risco comprovadamente acrescido de doenças de transmissão sexual, gravidez, prostituição, consumos nocivos, entre outros), pelo que é fundamental fazer um investimento na prevenção primária, secundária e terciária, com destaque para a identificação precoce dos casos e respectiva sinalização e encaminhamento. Para os profissionais de saúde, designadamente os médicos de clínica geral/médicos de família, o reconhecimento de um caso de abuso sexual é bastante mais difícil do que o dos casos de negligência ou de maus tratos físicos. Para além da ausência frequente, numa primeira abordagem, de sinais ou sintomas que constituam evidência objectiva, as dificuldades relativa na Rev Port Clin Geral 2003;19:163-71 163

abordagem do assunto, o qual constitui ainda um tabú social, dá a esta situação características e contornos únicos, com várias dificuldades e obstáculos do ponto de vista da actuação profissional. Muitas vezes, aliás, a pessoa a quem o caso é confidenciado é um amigo, um educador ou professor ou qualquer outra pessoa que não o profissional de saúde, com o qual a criança contacta geralmente na companhia dos pais, logo menos à vontade. EDITORIAIS TIPOLOGIA TIPO DE ABUSOS O abuso sexual pode expressar-se de várias formas: desde o estupro e a violação (muitas vezes no decurso de relações incestuosas) até formas mais subtis, como a utilização de crianças e adolescentes para prostituição, produção de material pornográfico e outras formas de exibicionismo ou exploração sexual. Um tipo de abuso sexual que começa a ser melhor conhecido diz respeito às relações forçadas e ao desrespeito pelo ritmo da evolução da sexualidade que se observam, com alguma frequência, nos estabelecimentos de ensino, constituindo uma forma cada vez mais evidente de violência interpares. De uma forma geral, podemos considerar estar em face de um abuso sexual sempre que existe um atentado à expressão ou progressão normal da sexualidade, levando a criança ou o adolescente a comportamentos forçados e inadequados à sua idade e à sua personalidade, designadamente para satisfação e prazer dos adultos. AS VÍTIMAS EDITORIAIS E OS ABUSADORES A análise dos casos permite afirmar que, apesar de mediaticamente não ser esta a mensagem, cerca de 90% dos abusos acontecem no meio familiar e que mesmo na maioria dos restantes a vítima conhece o agressor. Assim, só em 1-2% dos casos o agressor é um indivíduo completamente estranho. Com todas as dificuldades existentes e sublinhando a falta de sensibilidade e de especificidade que permitam fazer destes parâmetros métodos de rastreio, pode-se no entanto desenhar um «retrato-robot» das vítimas, as quais podem ser de qualquer idade e de ambos os sexos (embora os abusos sejam muito mais frequentes no sexo feminino, observa-se um crescente número de casos envolvendo vítimas do sexo masculino), mas que estão frequentemente em situação de vulnerabilidade, com imaturidade ou em condições de isolamento, com ausências prolongadas da mãe e personalidade de características dependentes. Quanto ao «retrato-robot» do abusador e apesar de ser muito variável, desde o pedófilo bem-definido ou do psicótico comprovado até ao homem comum, por exemplo sob a influência do álcool, podem sintetizar-se algumas características psicológicas: gosto pelas situações de poder de controlo sobre as pessoas, com um sentimento de impunidade ou de estar acima da lei e da censura social; grande imaturidade sexual, com problemas não resolvidos ou mal resolvidos ao nível da sexualidade e da gestão dos afectos; dificuldades de integração social, com vivências consideradas pelo próprio como humilhantes e geradoras de uma auto-estima baixa; uso comum da violência como argumento (por razões educacionais ou culturais); inibições (religiosas e por outras causas) dos comportamentos e da expressão da vontade; formas várias de frustração mal gerida e má gestão do stress; insatisfação com a vida/qualidade de vida; 164 Rev Port Clin Geral 2003;19:163-71

antecedentes de ter sido abusado física ou sexualmente; falta de apoio psicológico com isolamento e solidão; conceitos errados sobre sexualidade machismo, sexo reduzido a relações sexuais, etc; falta de respeito pelas pessoas e pelos direitos e regras de convivência democrática; falta de conhecimento das consequências a longo prazo do acto, designadamente para a criança. Se bem que os casos evidentes sejam apenas a ponta do iceberg, os profissionais de saúde encontram-se frequentemente bem colocados para poder identificar, sinalizar e encaminhar as crianças e suas famílias, no sentido de dar resposta à necessidade de diagnóstico e de tratamento, na perspectiva de uma rede transdisciplinar, mas tendo o bem-estar e o melhor interesse da criança como objectivo prioritário e primeiro. Assim, a par dos métodos e do processo de diagnóstico e de orientação que se revelarem necessários, é preciso ter a consciência e a sensibilidade para os aspectos mais delicados da situação, a qual envolve princípios éticos inalienáveis, não esquecendo que se está a lidar com crianças e adolescentes fragilizados e altamente vulneráveis a atitudes menos adequadas ou precipitadas. Deve-se referir que, com altíssima frequência, o abuso sexual é do conhecimento dos familiares mais íntimos, designadamente das mães. No entanto, por várias razões psicológicas e circunstanciais (que têm a ver com as próprias e também com situações de medo, poder, dependência económica, etc...), gera-se um pacto de silêncio entre os diversos intervenientes, o qual permite aguentar a situação durante algum tempo mas que, mais cedo ou mais tarde, acabará por «explodir», com graves traumatismos para todos os intervenientes. Assim, e numa perspectiva de prevenção aos vários níveis, é fundamental que os profissionais de saúde actuem cada vez mais no sentido de: detectar novos casos; orientar os casos detectados; definir normas e protocolos de actuação; facilitar a colaboração inter-profissional; continuar a investigação epidemiológica; estimular o envolvimento pleno de outros departamentos e instituições. O PROCESSO EDITORIAIS DE DIAGNÓSTICO Pelo que foi acima expresso, resulta fundamental conhecer os sintomas e sinais que, só por si ou integrados no contexto, poderão sugerir a presença de um caso de abuso sexual. Não é, contudo, demais insistir na necessidade de uma atitude cautelosa e de grande rigor, dado que a larga maioria destes sintomas e sinais são inespecíficos e podem surgir em muitas outras situações orgânicas e psicológicas. Acresce que a suspeita de abuso sexual tem sempre repercussões de grande dimensão nos vários intervenientes, pelo que qualquer acusação poderá deixar sequelas indeléveis, tanto mais graves se não fundamentadas ou injustas (ver capítulo «falsos diagnósticos»). MOTIVO EDITORIAIS DO CONTACTO A criança pode ser levada ao hospital ou à consulta na sequência de uma violação ou agressão sexual por alguém próximo ou por um estranho, ou porque foi identificada uma relação incestuosa o processo de diagnóstico está nestes casos mais orientado. Noutros casos, contudo, os motivos de consulta são mais vagos, seja por uma suspeita de alguém próximo (fa- Rev Port Clin Geral 2003;19:163-71 165

miliar, alguém do estabelecimento de ensino, vizinho, etc), seja através de um «pedido de ajuda» expresso em sintomas e sinais que, frequentemente, não orientam o profissional para o cerne da questão. Não esqueçamos o que foi referido, quanto ao «pacto de silêncio» que se estabelece entre a vítima, o abusador e as pessoas do aglomerado familiar mais íntimo, numa recolocação da homeostase da família em níveis que, anteriormente, não seriam antecipados. Assim, o abuso sexual deve ser um diagnóstico a ter em consideração em certos casos, conforme os sinais e sintomas que adiante se descrevem. HISTÓRIAEDITORIAIS E CIRCUNSTÂNCIAS Ao realizar a história clínica deve colher- -se informação relativa aos seguintes parâmetros: história da família distribuição da fratria composição do aglomerado familiar outros profissionais envolvidos nos cuidados à criança situação médica da família habitação e apoios externos situação escolar história pregressa da criança (de preferência colhida de alguém que conheça bem a criança) desenvolvimento episódios importantes na vida da criança (médicos, sociais, familiares, etc...) internamentos anteriores traumatismos anteriores sintomas gerais, medicamentos circunstâncias em que se terá dado a agressão e cronologia desta e de outras agressões situação dos irmãos - eventuais abusos na família detecção de sinais de disfunção ou violência familiar Deve evitar-se a repetição da história pela criança se já se dispõe dessa informação de fonte credível. Este aspecto é extremamente importante. EDITORIAIS EXAME O exame de uma criança suspeita de ter sido abusada é um acto extremamente delicado, pelas implicações que pode ter, algumas delas a longo prazo. Embora seja necessário, a um dado momento, examinar a criança, há que ter a preocupação e o cuidado de não transformar esse exame numa nova agressão ou num acto que consubstancie a agressão de que a criança foi alvo. Devem sempre ser salvaguardados o direito ao consentimento informado dos pais ou dos representantes legais e, sempre que possível, a compreensão por parte da criança, quer da necessidade e motivos por que se faz o exame, quer dos procedimentos que vão ter lugar, evitando sempre que possível repetições do exame. O médico que o realizar deve ter a sensibilidade, a experiência e a competência necessárias, não apenas para o exame físico mas para o contexto em que é realizado. O exame deve ser feito na presença de outro profissional e também dos pais, para que se possa garantir a veracidade do que se encontra e atendendo à delicadeza do assunto, Por outro lado, a presença dos pais é um factor importante para os cativar para os «capítulos» que se seguirão. É fundamental descrever minuciosamente as lesões (dimensão, posição, cor, definição, características, provável idade, etc...) com diagrama e, se possível, fotografá-las (tendo sempre em atenção as consequências psicológicas para a criança, decorrentes deste acto, designadamente a sensação de exposição e de agressão da intimidade). O exame radiográfico e a pesquisa de sangue em roupas poderão ser exames necessários. As lesões mais suspeitas deverão ser confirmadas pelo outro 166 Rev Port Clin Geral 2003;19:163-71

profissional presente. Para além do exame dos genitais e do ânus, é necessário fazer uma colheita de exsudado para análise microbiológica, bem como outros exames forênsicos (presença de esperma, etc...). O uso de instrumentos de examinação deve ser bem ponderado e, no caso de crianças pequenas, quando é necessária uma visualização interna, pode inclusivamente ser preferível realizar este tipo de investigação com anestesia geral. O exame deve ser feito integralmente e não apenas dirigido para as regiões lesadas. É também necessário ter uma ideia do estado geral, grau de higiene, estado das roupas (que deverão ser guardadas para análise forênsica), relacionamento da criança com os presentes (pais, profissionais, etc...), atitude geral (à vontade, necessidade de falar, medo, choro, mutismo, etc...). Alguns pontos não deverão escapar ao exame, designadamente: couro cabeludo (que pode ter lesões não visíveis imediatamente); região retro-auricular e canal auditivo externo; fundo do olho (essencial para detecção de hemorragias retinianas que são, por vezes, o único sinal do traumatismo por abanão); boca, dentes, gengivas para pesquisa de lesões internas; pesquisa minuciosa de equimoses ou edema, bem como de dores ósseas que podem traduzir fractura ou hematomas sub-periósteos, pesquisa de lesões de «agarrar» nos braços e pernas, pesquisa de lesões traumáticas nas plantas dos pés e nas palmas das mãos, palpação das costelas para detecção de eventuais fracturas, palpação abdominal para detecção de lesões internas. LESÕES EDITORIAIS TRAUMÁTICAS LESÕES EXTERNAS marcas de arranhão ou equimoses nas coxas e região perineal ou outras lesões nessas áreas e nas regiões oral ou genital; LESÕES ANAIS eritema perianal: não se trata de um sinal patognomónico mas pode levantar suspeitas. No contexto do abuso sexual este eritema surge por fricção. Outras causas comuns são infecções por fungos (monilíase), parasitas ou piodermites a estreptococos, má higiene local ou diarreia persistente; líquen sclerosus ou atrophicus - trata-se de uma situação rara mas cujo aspecto prateado e friável da pele pode ser confundido com traumatismo, designadamente dos grandes lábios ou da região anal; sinal do pneu - trata-se de um anel de edema perianal, associado ao trauma da penetração, e que dura em média cerca de 36 horas; fissuras anais - podem variar, desde pequenas gretas superficiais a rasgaduras profundas das pregas anais. As causas podem ser a passagem de um objecto demasiadamente grande, como nos casos de abuso sexual (pénis ou outro objecto), ou na obstipação crónica. Outras causas são a friabilidade extrema da mucosa, como acontece no eritema das fraldas, eczema ou líquen esclerosus. A cicatrização é rápida mas pode deixar marcas radiais ou, nos casos mais graves, alterações permanentes do rebordo anal. A presença de equimoses circunferenciais perianais, associada a fissuras recentes, é altamente suspeito de penetração anal. No entanto, alguns casos de penetração podem não deixar quaisquer sinais; distensão venosa perianal - aparece em alguns casos de abuso, embora se desconheça o mecanismo fisiopatológico. Não é um sinal específico, pelo que perde muito da sua utilidade no diagnóstico do abuso sexual; dilatação anal - é altamente suspeita, embora não seja um sinal diagnós- Rev Port Clin Geral 2003;19:163-71 167

tico. A criança deve ser examinada em decúbito lateral esquerdo, com as nádegas ligeira e suavemente separadas. Quando existe dilatação dos dois esfincteres, a mucosa rectal é bem visível através do orifício anal, o qual pode ter mais de 1 cm de diâmetro. Este sinal pode também ser visto em crianças que têm obstipação crónica, que tenham uma alteração neurológica sagrada ou que sofreram anestesia geral. Pode também ser encontrado em crianças ventiladas e, inclusivamente, é um achado de autópsia normal; dilatação anal reflexa - refere-se ao facto de o ânus, inicialmente relaxar e depois dilatar-se, se o observados esperar cerca de 30 segundos. Trata-se de um sinal de significado polémico, podendo eventualmente ser um reflexo de adaptação à dor da penetração ou traduzir uma insuficiência do esfíncter interno, com aperto temporário do esfíncter externo. Está muito associado aos casos de abuso sexual; sinal do «túnel» anal - reflecte a fraqueza do esfíncter externo e é sugestivo de penetração anal crónica em crianças de maior idade. LESÕES VULVARES E VAGINAIS uma das formas de observar a criança é na posição de supino, com as pernas em «rã», utilizando uma tracção suave dos lábios posteriores entre os polegares e os 4 o dedos; devem pesquisar-se equimoses, edema, eritema, abrasões e rasgamentos dos genitais externos e do intróitus, o que pode ser sugestivo de tentativa de penetração; além disso pode haver lesões das estruturas periuretrais, hímen e mucosa vaginal. Estas lesões, contudo, podem ser subsequentes a acidentes, designadamente a queda clássica na bicicleta ou nas barras do ginásio; os achados típicos de abuso são lacerações ou equimoses lineares nos lábios e edema e equimoses na área do clitóris. Com raras excepções, as lesões do hímen e das estruturas internas vaginais não são acidentais nem se devem por exemplo a masturbação. Da mesma forma, quando há inserção de objectos pelas próprias crianças, há geralmente o cuidado de não se magoarem, pelo que as lesões das estruturas internas são raras nesta situação; as lesões diagnósticas de penetração são: rasgadura do hímen e lesões, rasgaduras ou cicatrizes da vulva ou da parede vaginal; o abuso repetido pode causar uma atenuação ou ausência do tecido himenial; outros achados importantes, mas não patognomónicos, são espessamento e nódulos ou tumefacções do hímen, aderências entre o hímen e os tecidos adjacentes. A fusão dos lábios pode ser consequência de inflamação, quer causada por trauma, quer por infecções. A presença deste achado pode confundir o diagnóstico. deve referir-se que, em estudos em que se utilizaram protocolos de observação, só em 39% dos casos suspeitos de penetração, pela história clínica, foi possível encontrar achados fortemente sugestivos dessa penetração. DOENÇAS SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS Podem constituir um dos sinais primei- Rasgadura Edema Rasgadura Hímen Equimose Eritema da vulva labial do hímen atenuado exige uma muitas sugestivo de muitas sugestivo de sugestivo de explicação explicações: abuso sexual explicações, abuso sexual abuso sexual uma é relações sendo uma o sexuais abuso sexual 168 Rev Port Clin Geral 2003;19:163-71

ros do abuso sexual. Entre as doenças que devem chamar a atenção, se surgem numa criança ou numa adolescente, são: condilomas venéreos gonorreia clamidiose tricomoníase herpes genital vaginite bacteriana sífilis HIV GRAVIDEZ NA ADOLESCENTE Pode ser um sinal de abuso, tal como o pedido de IVG pelo pai, sem o conhecimento da mãe. Não esqueçamos que o incesto, no nosso país, continua a ser relativamente frequente e ainda escondido. SINAIS/SINTOMAS NÃO ESPECÍFICOS MAS QUE, SE INTEGRADOS NO CONTEXTO, PODERÃO ORIENTAR PARA O DIAGNÓSTICO manifestações somáticas não específicas: infecções vaginais de repetição, por microorganismos banais, prurido ou assaduras vulvares, infecções urinárias recidivantes; manifestações psicossomáticas, verdadeiros sintomas «espelho» da situação: enurese, encoprese, obstipação, anorexia, perturbações da deglutição, pesadelos, terrores nocturnos de aparecimento recente, dores abdominais, cefaleias; manifestações do foro psiquiátrico: depressão com tentativa de suicídio, mutismo, isolamento, auto-mutilações, excitação, labilidade de humor; condutas antissociais: fugas, consumos nocivos, prostituição; sinais comportamentais: os sintomas e sinais comportamentais de «mal-estar» devem-se essencialmente a: sexualização traumática, disfuncional e inapropriada; sentimento de traição, já que na maioria dos casos os abusadores são pessoas conhecidas da criança e, também em muitos casos, há o conhecimento por exemplo por parte do outro progenitor, sentindo a criança falta de apoio ; sentimento de insegurança e falta de protecção. Desconfiança; sensação de impotência e de medo (o abuso ocorre num ambiente de ameaça); perda da privacidade e da intimidade; culpabilização de si próprio por «algo mau que fez», vergonha, estigmatização, sensação de «sujidade». e podem traduzir-se por alterações recentes e intensas do comportamento (choro, tristeza, desaparecimento dos comportamentos lúdicos); desinvestimento escolar; medo brutal e incontrolável dos homens; medo de voltar para casa; medo de se deitar e de se despir à noite; tendência a se barricar no quarto; preocupações sexuais excessivas para a idade, ao nível do discurso e das atitudes, podendo passar por um comportamento sedutor e sexualizado com os adultos do sexo oposto; agressões aos mais novos, centradas nos genitais, conhecimento precoce da sexualidade, masturbação excessiva e em público; rituais de lavagem obsessivos e exagerados ou, pelo contrário, falta de higiene dos genitais. COMPORTAMENTO DOS PAIS Alguns sinais, no comportamento dos pais, podem levantar algumas suspeitas: pai ou padrasto com uma proximidade corporal pouco habitual com a criança; pais ou padrasto intrusivo ou demasiadamente interessado pelos «assuntos íntimos» da criança; EDITORIAIS RELATÓRIO Após a observação e a examinação, é Rev Port Clin Geral 2003;19:163-71 169

necessário elaborar um Relatório onde se faça uma avaliação global da situação, descrição pormenorizada e circunstanciada dos factos e dos achados (abstendo-se de juízos e de comentários), exames eventualmente realizados, avaliação do alegado agressor e outros detalhes que possam ser significativos para o seguimento e encaminhamento do caso. Há, de igual modo, que assegurar a protecção da criança. POR UMEDITORIAIS TRABALHO EM REDE Os desafios que se colocam aos profissionais de saúde, no que toca ao abuso sexual, são muitos: reforçar a informação promover a educação das crianças e adolescentes, designadamente a auto- -protecção e a educação para uma vivência sexual gratificante e responsável. estimular os factores protectores, designadamente a nível familiar. consciencializar as pessoas para os riscos e consequências a curto, médio e longo prazo para a criança, família e sociedade em geral. promover os direitos da criança e do adolescente, nomeadamente o de não terem donos. consciencializar os profissionais de que o abuso sexual existe e é uma doença que se expressa em termos de morbilidade, mortalidade e sequelas, necessitando de um processo de diagnóstico e de terapêutica a vários níveis, bem como de prevenção primária, secundária e terciária. consciencializar a população em geral da responsabilidade que cabe a cada cidadão na defesa intransigente dos direitos dos outros cidadãos. realizar estudos epidemiológicos e de estudos sociológicos/psicológicos/antropológicos dos abusadores e dos abusados com especial cuidado para não centrar as atenções na vítima. preservar a intimidade e a privacidade da criança e da família, incluindo do abusador. desenvolver instituições de apoio e uma rede de centros especializados, centros terapêuticos, aconselhamento, centros de «crise» (24 horas), linhas directas e centros de promoção do bem- -estar familiar e de qualidade de vida. OS FALSOS EDITORIAIS DIAGNÓSTICOS Os falsos diagnósticos não são raros e alguns factores externos aos profissionais, como um processo de separação ou divórcio dos pais, ou a própria imaginação fértil da criança, podem levar a acusações tão supostamente fundamentadas que conduzem a situações de suspeita. Há que ser extremamente cauteloso e, numa primeira abordagem, não dar imediato apoio ao pai queixoso. Outro aspecto cada vez mais frequente reside na facilidade actual com que as crianças têm a filmes pornográficos, os quais lhe poderão dar conhecimentos inapropriados à idade e respectiva verbalização da sua fantasia. A utilização de tampões intravaginais por raparigas pré-puberes poderá constituir outro motivo de dificuldade de avaliação de uma desfloração este dado acentua o facto de o diagnóstico de abuso sexual não se poder fazer unicamente com base em alterações do foro anatómico. O aspecto geral das pessoas e o grau e tipo de empatia que se estabelece entre os profissionais e os pais, bem como o nível de credibilidade que a pessoa em causa tem (ou não) são factores que não devem interferir com a lucidez e a imparcialidade que deverão ser inerentes ao processo de diagnóstico. Por outro lado, os profissionais de saúde não devem assumir a posição de juízes, mas apenas actuar no melhor 170 Rev Port Clin Geral 2003;19:163-71

interesse da criança, o que passa prioritariamente pela sua protecção mas também, até prova em contrário, pela aposta na recuperação da família. O abuso sexual é um problema candente, grave e intolerável nas sociedades que se reclamam do humanismo e que juraram defender os direitos da Criança. O problema é, no entanto, muito complexo, com contornos muitas vezes mal definidos e gerador de uma teia de cumplicidades, influências, silêncios e tabús que dificultam a sua abordagem. Por outro lado, expressa ou pode traduzir graves traumatismos físicos, psicológicos e sociais, que atingem toda a família e não apenas a vítima e o abusador. Cabe aos profissionais de saúde, pela oportunidade, pela sua credibilidade e pelos objectivos das suas tarefas, um papel proeminente na identificação precoce e atempada dos casos, com respectiva sinalização, encaminhamento e acompanhamento de um problema que ultrapassa, em muito, a própria criança. Rev Port Clin Geral 2003;19:163-71 171