Aproximação ao estudo diacrónico da ictiofauna dulçaquícola no vale do Tejo: os casos de Abrantes e Santarém Approach to diachronic study of river freshwater fishes in the Tagus valley: the cases of Abrantes and Santarém C. Batista (1), M. R. Bastos (1,2), U. Azeiteiro (1, 3), J. A. Dias (4) (1) Universidade Aberta. Rua do Ameal 752. 4200-055 Porto. cifab@sapo.pt (2) CEPESE. Rua do Campo Alegre 02. 4169-004 Porto. (3) Centre for Functional Ecology. Department of Life Sciences. University of Coimbra. 3001-401 Coimbra). (4) Universidade do Algarve. Centro de Investigação Marinha e Ambiental. Faculdade de Ciências e Tecnologia. Campus Universitário de Gambelas 8005-139 Faro. This study aims to identify the fish species mentioned in historical sources (medieval and modern) and compare it to current data in Tagus River (before the downstream estuarine area). Ecological, distributional responses to climate change and anthropogenic impacts are discussed. The methodological approach was geographical, geological, climatic, but also building on the historical records for the region since the XIV century. It was intended to highlight the importance of the Tagus watershed throughout the historical ages together with the fish fauna distribution records analysis from a conservational and global change biology approach. This study confirms the extinction of Acipenser sturio since XVI century and the extreme vulnerability of the anadromous and catadromous fishes to the anthropogenic impacts in riverine ecosystems. Palavras chave: Tejo, ictiofauna, Antropização. Keywords: Tejo, ichthyofauna, Human disturbance. INTRODUÇÃO A ictiofauna fluvial é, em geral, muito sensível a modificações ambientais, até porque estes ambientes sofrem fortes impactes directos das actividades antrópicas. Por outro lado, os rios tiveram, desde a Antiguidade Clássica, grande atractividade para o Homem, pelos recursos a eles inerentes, designadamente, pelas actividades piscatórias que propiciam. Assim, os meios fluviais constituem conjuntos binários em que o Homem, através das suas actividades, vai alterando as características ambientais, amplificando ou reduzindo os recursos disponíveis; por outro lado, a própria evolução ambiental natural provoca modificações (temperatura, pluviosidade, caudais, geomorfologia) que se revestem de consequências positivas ou negativas para as populações dependentes do meio fluvial. Neste contexto, a fauna fluvial, com destaque para a ictiofauna, pode servir de indicador das interacções Homem-Meio verificadas ao longo dos tempos históricos. Com base neste pressuposto, tentaram-se identificar no curso inferior do rio Tejo alterações na ocorrência da ictiofauna que pudessem servir de traçadores das alterações aludidas. Na prossecução deste objectivo, tendo sempre em consideração as actividades antrópicas e o que se conhece da evolução climática histórica, analisou-se a fauna dulçaquícola do Tejo inferior tendo como base: a) alusões existentes na documentação escrita medieva; b) dados colectados nas Memórias Paroquiais (1758) para as freguesias de Santarém e de Abrantes; c) inventariações recentes da ictiofauna para o Tejo inferior. Efectuou-se, deste modo, uma análise diacrónica da fauna piscícola centrada em três momentos: Baixa Idade Média, 1758 e actualidade. 145 ÁREA DE ESTUDO O Tejo, enquanto factor agregador de acção humana, quer pela permanência de comunidades mas, também, no que respeita ao desenvolvimento de actividades económicas, constitui uma boa área para se compreenderem as sinergias biunívocas entre o Homem e o Meio. O rio Tejo, com um percurso de cerca de 1 100 km (230 km situados em Portugal), o mais extenso da Península Ibérica, tem uma bacia hidrográfica de 80 629 km², dos quais 55 769 km² se localizam em Espanha e 24 860 km² em Portugal, correspondendo à terceira maior bacia hidrográfica peninsular, só ultrapassada pelas dos rios Douro e Ebro (DGRAH, 1986). Apresenta um regime hidrológico contrastado, verificando-se que os maiores caudais ocorrem entre Janeiro e Abril e os menores entre Julho e Outubro. Porém, na segunda metade do século XX, as características hidrológicas do rio foram profundamente alteradas devido à construção de barragens (para produção de energia eléctrica, regadio, abastecimento de água potável e refrigeração de centrais nucleares espanholas (de Trillo, em Guadalajara, de Almaraz, em Cáceres e de Zorita, em Guadalajara, esta encerrada em 2006) e centrais térmicas (de Aceca, em Toledo, e de Pego, em Abrantes). Só na parte portuguesa da bacia hidrográfica existem quase 40 barragens. Tal teve, seguramente, impactes muito fortes ao nível da fauna, designadamente de espécies migratórias, como a truta, o salmão, a enguia e a lampreia. Também a deterioração da qualidade das águas teve decerto impactes ao nível faunístico. Além da contaminação inerente aos agregados urbanos, à agricultura, à pecuária e às indústrias existentes na zona de estudo (concelhos de Santarém e Abrantes), é forçoso ter em atenção a contaminação proveniente de
montante, designadamente da bacia hidrográfica situada em território espanhol, onde existem grandes cidades, sendo de realçar a de Madrid. A EXPLORAÇÃO HISTÓRICA DO MEIO FLUVIAL Com excelente posicionamento geográfico, clima ameno e solo fértil, o vale do Tejo foi sujeito a uma antropização que se foi acentuando com a passagem do tempo. Um dos grandes recursos explorados foi a pesca, o qual era de tal forma valioso que os soberanos possuíam as suas coutadas piscatórias privativas, concediam outras aos nobres e, de igual modo, as tinham os concelhos que as reservavam para si ou as davam a particulares (Barros, 1922: 10). Esta pesca era rendosa para a coroa que não perdoava o pagamento dos seus direitos. Refere-se, a título exemplificativo, que em 1309, D. Dinis, informado de que os pescadores de Santarém se escusavam a dar a dízima dos peixes que pescavam (eirós, enguias e bordalos), os obrigou ao seu pagamento, apesar das razões alegadas pelos ditos pescadores que a nom devyam dar porque nom tragiam remos nem espadela. (Chancelaria de D. Dinis, Liv. 3, fl. 66-67.). Para maior vigilância dos seus bens, como aconteceu em 1317, o rei [D. Dinis] ordenou que os meirinhos assistissem ao levantamento das redes e, se não comparecessem, então seriam levantadas sem a sua presença, pagando os pescadores a dízima ao rei (Chancelaria de D. Dinis, Liv. 3, fl. 115v-116). O esforço de pesca acabou por ter consequências negativas, não só porque as estruturas construídas para tal dificultavam ou impediam a navegação, mas também porque os stocks começaram a diminuir. Existem muitas referências históricas sobre o assunto. Por exemplo, na sequência da diminuição da pescaria dos sáveis depois que se fez o caneiro de Abrantes, nas Cortes de Lisboa do ano de 1455, no reinado de D. Afonso V, foi mencionado pelo povo, que o dito caneiro, como estava tapado todo o anno, causava grande damno ao desovamento dos saveis, e se perdião muitos, e que por esta causa havendo em outro tempo tanta abundancia, que abastavão o Reino, e sahião para fóra, agora que nem para a Villa chegavão, pediram que ao menos se abrisse o caneiro nos meses de Abril, Maio, e Junho (Lobo, 1812: 377). Com frequência foram estabelecidas medidas tendentes à protecção dos stocks piscícolas. Por exemplo, em 1462 estavam proibidos os caniços de verga tapados, as esteiras e as redes miúdas dobradas para que os peixes pequenos e os ovos se não perdessem (Barros, 1914: 50). Por estas razões, em 1468, foi renovada a proibição feita por D. João I e D. Duarte aos que no Tejo pescavam o sável. O rei, porém, incorria na mesma falta pois nos caneiros reais adoptavam-se processos idênticos. (Cunha, 1972: 26-27). Durante a safra, desde a foz do rio da Pedra até Abrantes, era proibido deitar redes atravessadiças e tê-las quedas e atravessadas no rio, de lado a lado, leixarem parte algua delle despejada pêra os ditos saves poderem passar pêra cima, (Estremadura, Liv. 5, fl. 49v.), medida que não foi respeitada pois, em 1507, os 146 pescadores de Punhete pediram ao rei para tomar providências, o que este fez estabelecendo penas severas (Estremadura, Liv. 13, fl. 15v.), salvaguardando, embora, a situação daqueles que a tal tinham direito (Cunha, 1972: 27). Também a construção de açudes e de azenhas nos leitos e margens dos cursos fluviais provocou alterações significativas, por vezes dificultando ou mesmo impedindo a navegação. Tais intervenções induziram modificações na morfodinâmica natural e, com frequência, vieram dificultar a passagem de espécies piscícolas migradoras. Aliás, podemos dizer que para além da salvaguarda da rendibilidade proveniente da pesca, preocupações acerca da sustentabilidade faunística surgem desde logo no século XV. Nesta centúria foi levado pelo concelho de Santarém às cortes de Évora um capítulo em que se explicita que na coutada de Alpiarça é proibido pescar excepto com canas (Chancelaria de D. Duarte, Livro 1, fl. 145 vº - 148). O mesmo se diga para o final do mesmo século XV, quando D. Afonso V envia uma carta de couteiro e guarda das trutas da ribeira de Muge (actual concelho de Salvaterra de Magos, distrito de Santarém) a João do Paço (Chancelaria de D. Afonso V, Livro 26, fl.92 vº). O facto de existir um guarda de trutas parece eloquente per se. Os malefícios provenientes da construção de artifícios de pesca que perturbem o equilíbrio faunístico de algumas espécies está igualmente patente numa carta de confirmação de privilégio (28 de Abril de 1525) que D. João III concede ao conde de Abrantes, D. Lopo de Almeida, na qual se proíbe fazer estacadas ou tapamento no rio Tejo porque impedem a subida de pescado como os saveis (Chancelaria de D. João III, Livro 8, fl.72 vº - 73). Os factores aludidos para a Idade Média subsistem, porventura com bastante maior acuidade, na Idade Moderna. A consulta das Memórias Paroquiais dá-nos conta que, em 1758, o vale do Tejo detinha, à data, grande parte da população e das margens do rio dedicadas à agricultura e à pecuária, mas também à pesca. Mais, conseguem-se recolher exemplos de pesca intensiva, bem como da construção de azenhas e outros artifícios que alteravam as condições naturais dos rios. Como exemplo veja-se que nas memórias paroquiais de Abrantes se pode ler que tem "vários lagares de azeite e muitas azenhas. Com suas águas se regam os campos vizinhos" ou, ainda, Rio de Moinhos "distante desta vila [Abrantes] meia légua que desde o seu nascimento que tem pouco mais de meia légua até entrar no Rio Tejo. Tem mais de cinquenta moinhos" e "por antonomásia se chama Rio de Moinhos. Com as suas águas se regam as quintas e hortas que há naquele vale". Pode-se constatar que o Tejo "cria peixes e em maior abundância barbos e muitos deles de desmarcada grandeza e aí "fazem várias pescarias em algumas estações do ano, como é a dos sáveis desde o mês de Janeiro até o mês de Maio, cuja pescaria costuma ser abundante em alguns anos. Há também a pescaria das sabogas que dura por todo o mês de Maio de que há também grande abundância. Também há a pescaria dos mugens que principia pelo mês de Setembro e continua pelos mais meses até a
enchente do Tejo lhe levar os caneiros que se armam para a dita pescaria. A pesca dos sáveis é livre "assim para os pescadores que nelas pescam com redes de correr como para os senhores particulares que têm pesqueiras no dito rio junto às suas ribeiras regularmente" confinando de uma parte com seus prédios. Já para a Paróquia de Coutada (Abrantes) se refere que no rio cria e nele se pescam peixes todo o ano barbos mugens, bogas, sáveis e sabogas e os mais que conserva todo o ano são barbos e mugens, nos meses de Março, Abril e Maio nele se pescam sáveis, sabogas e os mais em todo o ano. Dizem ainda que "neste distrito não há cachoeira, represa, levada nem assude que lhe embarace a sua navegação". Contradição óbvia com o que se descreve para a Paróquia de Martinchel (Abrantes), onde o Nabão entra no Zêzere, que é navegável com água abundante para "barcas que andam na carreira" e poderiam fazer a ligação ao Tejo se não fosse "porque os caneiros das pescarias os impedem". Por via de regra, o Tejo para as paróquias de Abrantes e Santarém apresenta inúmeras referências a moinhos e lagares de azeite. Na época contemporânea as intervenções no meio fluvial foram fortemente amplificadas, atingindo o auge no século XX, principalmente com a construção da grande cascata de barragens que modificou de modo inexorável o módulo do rio, e que teve impactes muito significativos na fauna fluvial. É de relevar, ainda, a introdução de espécies exóticas, designadamente do achigã Micropterus samoides. Esta espécie, originária do sul do Canadá e norte dos Estados Unidos da América (Petit et al., 2001) foi introduzida em meados do sáculo XX para limitar as populações de gambúsias (Gambusia holbrokii), espécie que chegou em 1921 para ajudar a combater a malária, e teve uma excelente adaptação (Almaça, 1996), sendo hoje considerado um dos predadores que mais tem contribuído para uma clara diminuição de outras pequenas espécies, nomeadamente nas albufeiras (Sanches & Rodrigues, 2011). RESULTADOS No quadro I apresentam-se os dados colhidos na documentação dos séculos XIV a XVI permitindo assim a leitura diacrónica das espécies na Baixa Idade Média. Este levantamento não descrimina a região do vale do Tejo e, para além da ictiofauna dulçaquícola, integra também algumas espécies marinhas e estuarinas. Quadro I. Espécies presentes no Tejo entre os séculos XIV a XVI. Século Espécie XIV, 1309 Eyroos, anguyas, bordalos e sardinhas XIV, 1321 Solho XV, 1420 Sável XV, 1427 Lampreias, taínhas, pescadas, congros, choupas, cachucos, bogas, sardinhas, arenques, sibhas, fanecas, azevias, galhudas, redevalho, gorazes, alitaes, cações, anguyas, lulas, solho e concarez XV, 1436 Sáveis XV, 1439 Avergas e boguyos XV, 1471 Sáveis XV, 1480 Sáveis e Savogas XV, 1481 Trutas XV, 1482 Abargas e Sávares XV, 1483 Sáveis e savogas XVI, 1525 Sáveis No quadro 2 apresentam-se os dados relativos ao inquérito de 1758 no que se refere às paróquias dos actuais concelhos de Santarém e Abrantes, e como tal já só se encontram referências a espécies dulçaquícolas, embora também se encontrem as espécies migradoras e espécies estuarinas de larga distribuição (Eurihalinas). Quadro 2. Espécies no Tejo em 1758. Local Ribeira (Alcanede) Abitureiras Rio Sorraia Monção Rio Sôr Paúl Alpiarça Póvoa de Galegos Rio de São João da Ribeira de Rio Maior Rio Alviela Salvaterra de Magos Rio Alfange Local Valada Azambujeira Cartaxo Espécies Mencionadas Barbo, ruivacos, bogas, Enguia, barbos, ruivaco, taínhas Salmão, trutas, bogas, sável, lampreia, Sável, taínha, barbo, lampreia Barbo, bogas, ruivaco, lampreia Barbo, bogas Taínha, barbo, salmão Barbo, bogas, ruivacos, Barbo Barbo, bogas, ruivaco, enguia, taínha, saboga, savelha, bordalos Salmão Barbo, taínha, lampreia, sável, Espécies Mencionadas Sável, taínha, lampreia, enguia, barbo, bogas, Enguia, barbo, taínha, salmão, lampreia Carpas, ruivaco, Sável, salmão, barbo, taínha 147 DISCUSSÃO O levantamento da fauna piscícola que era objecto de pescarias na Baixa Idade Média em Portugal foi apresentado por Azeiteiro e Tavares (2004) para várias bacias hidrográficas. Foram os dados aí revelados que serviram de termo de comparação com as espécies referidas em 1758 nas Memórias Paroquiais das freguesias de Santarém e Abrantes. Verifica-se que, dos peixes referidos na Idade Média, apenas o solho (esturjão, Acipenser sturio) não o é nos inquéritos de
1758. Esta lacuna revela-se interessante e merecedora de melhor atenção pois, segundo várias informações, nomeadamente o Dec. Reg. 18/2001 e Oliveira (2007: 19), esta espécie foi pescada no rio Tejo até 1940. Por outro lado, várias são as espécies mencionadas em 1758 que não foram compulsadas na documentação medieval: o barbo, o bordalo, a carpa, o ruivaco e o salmão. As espécies piscícolas documentadas são dulçaquícolas e ainda hoje de ocorrência comum, como sejam as bogas (Chondrostoma polylepis) e a truta do rio (Salmo trutta fario). Adiantamos como hipótese de trabalho futura que a ausência na idade medieva se deva à não referência na documentação compulsada. Das espécies migradoras referidas, a Enguia (Anguilla anguilla), a lampreia (Petromyzon marinus), o sável (Alosa alosa), a saboga ou savelha (Alosa fallax), a Truta (Salmo truta truta) e o Salmão (Salmo salar), registe-se o desaparecimento para a actualidade da Truta e do Salmão. De referir que a ocorrência de Salmão nos registos refere-se apenas a 1758 não aparecendo referencias nos séculos XIV a XVI. Contudo a Lei nº 2097, de 1959 (e legislação posterior) estipulam períodos de pesca para as espécies de águas interiores não oceânicas (continentais dulçaquícolas) do rio Tejo, sendo aí especificamente aludidos o salmão e a truta, pelo que a não referência na documentação medieva poderá unicamente dever-se à não compulsação na documentação estudada. As restantes migradoras, embora em recessão (ver Quadro 3), ainda hoje existem neste meio (com este estudo não é possível aferir do número de efectivos mas somente as questões de permanência e ausência). O salmão (Salmo salar), migrador anádromo, embora já tenha tido a sua distribuição alargada ao Tejo, encontrase na actualidade restrito ao Rio Minho (90 % dos indivíduos). A construção de barragens e açudes interrompe as rotas migratórias, altera o regime de caudais, promove a conversão de sistemas lóticos em lênticos e aumenta a retenção de sedimentos a montante, condicionando assim a ecologia migratória das espécies. Contribuem ainda para o condicionamento da distribuição e ciclo de vida das espécies migratórias (sejam anádromas ou catádromas) a extracção de materiais inertes, a sobreexploração dos recursos hídricos (captações de água e transvases), a poluição, a regularização dos sistemas hídricos, a destruição da vegetação ripícola e a sobrepesca. Estas condicionantes da biologia e ecologia das espécies migradoras nem sempre geram impactos negativos nas espécies não migradoras. Algumas espécies, como o barbo e a boga, conseguem adaptar-se às condições impostas pela construção das barragens quando se encontram em estado adulto. Muitas das espécies referenciadas, e ainda hoje de ocorrência comum, são nativas (autóctones) e as introduções de espécies alóctones, exóticas, são geralmente posteriores à década de 50 com excepção de Carassius auratus e Cyprinus carpio (carpa) que, desde do século XVII, estão referenciadas para a Península Ibérica. Estas introduções contribuíram também para alterar a distribuição e ocorrência das espécies nativas. 148 Pela análise das fontes detectamos também uma crescente actividade antrópica neste meio fluvial, como seja a agricultura nas margens do rio, pastos para pecuária, moinhos de água. Além disso, o Tejo sempre foi uma fonte de riqueza ora pelas suas águas (riquíssimas em peixe), ora pela forma como inunda as margens fazendo-as extremamente férteis, ora pela força motriz que concede à actividade moageira. Podese concluir que já em 1758 existia uma economia em estreita ligação com o rio. Por outro lado, o tráfego fluvial era intenso visto que as memórias apontam quase sempre para a navegabilidade fluvial dos rios afluentes ou confluentes do Tejo. Aliás, o Tejo foi navegado da foz até Espanha. Em 1581-1582 Antoneli navegou numa chalupa de Lisboa até Madrid (Saavedra, 1813: 88-89). Posteriormente, durante a Dominação Filipina, foram realizadas intervenções muito significativas para proporcionar a navegabilidade do Tejo até Aranjuez, tendo-se encontrado múltiplos obstáculos constituídos por açudes e outras estruturas (Cabanes, 1829) Quadro 3. Estado populacional das espécies mencionadas. Espécie Estado Populacional Causa provável Enguia Lampreia Sável Savelha Regressão (ainda existe no Tejo) Regressão Previsivel (ainda existe no Tejo) Regressão (existe no Tejo) Regressão (existe no Tejo) Exploração furtiva intensa das larvas nas zonas estuarinas; obstáculos à migração Redução das áreas de desova e crescimento; sobrepesca Alterações no habitat: locais de desova e interrupção de rotas de migração. Pesca excessiva Alterações no habitat: locais de desova e interrupção de rotas de migração. Pesca excessiva Salmão Extinto no Tejo Ver texto Solho (Esturjão) Extinto no Tejo Perda de Habitat; destruição de zonas de desova; obstáculos à migração; poluição do estuário; captura excessiva Das espécies referenciadas e hoje extintas, o esturjão, também frequente nos estuários do Douro e Guadiana, tinha uma grande importância e quando capturado era seleccionado para a mesa real: [ ] somente pagam uma renda que chamam pescadinho que me parece ser uma renda real (Memórias Paroquiais de Abrantes, Paróquia de Coutada, 3ª parte, artº 7). A legislação medieval tinha o cuidado de estabelecer épocas de defeso as quais coincidiam com épocas de desova em que espécies migradoras, como o salmão, lampreia, sável e savelha se dirigiam a águas de menor profundidade. A lampreia e o sável eram muito apreciados e é transversal a referência a pesca intensiva a estas espécies. Dada a actividade humana que transparece destas fontes, é evidente que a par da pressão demográfica que obrigava uma procura aos recursos
naturais fluviais, existia intensa actividade agrícola, bem como o que se pode designar por industrial através da transformação dos cereais em farinha e da azeitona em azeite através dos lagares de azeite. Todas estas actividades humanas tinham como consequência para o ambiente alteração das características hidrosedimentológicas e contaminação do meio fluvial; juntamente com a pesca intensiva, inclusivamente em época da desova de peixes migratórios, foram determinantes para a evolução e manutenção das espécies com repercussão directa nas actividades humanas. Estas fontes provam até que ponto as condições geográficas e as condições climáticas que favoreciam ou não que o rio fosse ou não mais caudaloso, interferiam no desenvolvimento económico, social e humano da população adjacente às margens do Tejo. O contrário também se reflecte quando a riqueza da ictiofauna é levada a níveis próximo da extinção, ou a esta por completo; para além deste factor ter impacto directo nos recursos naturais a que o homem poderia racionalmente recorrer, existem os impactes que a alteração da composição desta mesma ictiofauna produz no meio fluvial. Actualmente, a construção de barragens dificulta ou impede a migração natural destas espécies e aquelas que não são migradoras sofrem o efeito de adaptação de ambiente fluvial a albufeira, falta de alimentação adequada, desequilíbrio do habitat e acabam por não conseguir resistir. A pesca de lazer no vale do Tejo continua a ser um pólo de atracção a nível turístico. De acordo com o Plano de Gestão da Região Hidrográfica do Tejo (PGRHT, 2011) esta é um factor de dinamização da região. CONCLUSÕES A ictiofauna ibérica, pelos endemismos que apresenta, ocupa uma posição diferenciada relativamente à restante ictiofauna europeia. A bacia hidrográfica do rio Tejo apresenta uma situação de transição entre a do Douro, mais a norte, mais montanhosa, com maior pluviosidade e mais fria, e a do Guadiana, mais a sul, mais aplanada, com maiores índices de secura e mais quente. Assim, a fauna fluvial do Tejo representa, de certa forma, as grandes bacias hidrográficas da fachada atlântica da Península Ibérica. A informação contida nos dados históricos compulsados limita-se a aludir à existência de espécies alvo para actividades piscatórias em tempos medievais e no início da segunda metade do século XVIII. Não contêm informações sobre abundâncias e distribuições geográficas, pelo que não é possível ilações sobre aumentos ou diminuições de efectivos. Porém, o trabalho realizado permite concluir: a) A ictiofauna do baixo curso do Tejo foi sujeita a intensa actividade piscatória pelo menos desde a Baixa Idade Média; b) Não existem modificações significativas das espécies alvo das pescarias desde tempos medievais; a ausência de alusões a algumas espécies (o barbo, o bordalo, a carpa, o ruivaco e o salmão) na documentação medieva 149 pode ser atribuída à ausência de referências na documentação compulsada; porém, é uma questão que fica em aberto até se expandir mais o espólio documental consultado. c) É um pouco surpreendente que o solho ou esturjão (Acipenser sturio) não seja referido nos inquéritos de 1758, embora o seja na documentação medieval, tanto mais que foi alvo de pesca no Tejo até meados do século XX. Ou, como no caso anterior, se tratou de ausência fortuita, ou está relacionado com as especificidades próprias das paroquias (de Santarém e de Abrantes) utilizadas neste trabalho. É, também, uma questão em aberto. d) A documentação medieval utilizada evidencia que o esforço de pesca era já muito significativo na altura. Essa própria documentação expressa as consequências nefastas (principalmente para as espécies migradoras) da pesca intensiva e, principalmente, de determinadas artes de pesca que eram então utilizadas, várias das quais foram sujeitas a proibição. e) Os documentos medievais mas, principalmente, as Memórias Paroquiais de 1758 aludem claramente à existência de grande quantidade de estruturas artificias em meio fluvial, principalmente açudes e azenhas (além das estruturas de pesca), que dificultavam ou impediam a navegação e, seguramente, induziam fortes impactes negativos na ictiofauna migratória. f) Porém, os grandes impactes na ictiofauna surgiram no século XX, principalmente com a introdução de espécies exóticas, com a construção de extensa cascata de barragens, com a diminuição da qualidade da água, e com as alterações hidro-sedimentológicas. Nestas condições, os chamados migradores anádromos (como a lampreia, o sável, a savelha e o salmão) foram profundamente afectados pelas alterações que condicionam as suas migrações. AGRADECIMENTOS A nossa manifesta gratidão à Drª. Filomena Melo e Drª. Anabela Costa pelo trabalho de leitura e transcrição paleográfica das Memórias Paroquiais, bem como à Drª. Alexandra Vidal pelo apoio na compilação e leitura de fontes históricas medievais. REFERÊNCIAS: Almaça, C (1996). Peixes dos rios de Portugal. Edições INAPA, Lisboa. Azeiteiro, Ulisses Manuel de Miranda; Tavares, Maria José Ferro; Referências à Ictiofauna com termo no século XVII: estabilidade, regressão e extinção. Impactes naturais e antropogénicos; Actas do Colóquio, Lisboa, 2004. Barros, Gama (1914) História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII e XV, vol. III, 898p., Tip. Castro Irmão, Lisboa. Barros, Henrique da Gama (1919-1922) História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII e XV, vol. 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Cunha, Rosalina B. da Silva (1972) Subsídios para a Conservação do Peixe em Portugal, do século XII ao XVI. Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra ; vol 29, Coimbra. Decreto Regulamentar nº 18/2001 de 07-12-2001 - PLANO DE BACIA HIDROGRÁFICA DO TEJO, PARTE II Diagnóstico; CAPÍTULO 5 - Ecossistemas aquáticos e terrestres associados DGRAH (1986) Monografias Hidrológicas dos Principais Cursos de Água de Portugal Continental. Direcção-Geral dos Recursos e Aproveitamentos Hidráulicos, Divisão de Hidrometria, 569p., Lisboa. Dicionário Geográfico Português: Memórias Paroquiais, vols. I, 3,9,13, 23, 24, 28, 30, 31, 32, 33, 38 Lobo, Constantino (1812) Memória sobre a Decadência das Pescarias de Portugal. Memorias Económicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa, t. IV, pp.312-383, Academia Real das Sciencias de Lisboa. Oliveira, José Manuel (2007) - Ecologia dos Peixes Continentais da Bacia Hidrográfica do Rio Tejo: Uma Síntese. 44p., Instituto Superior de Agronomia, Lisboa. Petit, G; Beauchaud, M; Buisson, B (2001). Density effects on food intake and growth of largemouth bass (Micropterus salmoides). Aqua- culture Research, 32: 495-497. PGRHT, (Plano de Gestão da Região Hidrográfica do Tejo), Julho 2011 Saavedra, Francisco (1813) - Memoria sôbre a Navegação do Téjo. Jornal de Coimbra, vol. IV, art. X, pp. 86-91, Lisboa. Sanches, J. C. & Rodrigues, A.M. (2011) - O achigã (Micropterus salmoides), uma espécie com interesse para a pesca desportiva. Revista da Escola Superior Agrária de C. Branco, 26:17-22, Castelo Branco, Portugal. 150