Movimentos sociais na pauta das Ciências Sociais 200 Características dos movimentos sociais 204 A questão da identidade 205



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Transcrição:

Capítulo 7 Cidadania, política e Estado 171 Cidadania é uma conquista 172 As origens dos conceitos de cidadão e cidadania 173 Políticas públicas: dilemas da cidadania 176 Condições da cidadania no Brasil 179 Poder e política: exercício e participação 182 Cidadania: entre o público e o privado 184 Estado e sociedade 186 Estado e governos 190 Duas visões sobre a atuação do Estado capitalista 192 Autoritarismos e totalitarismos: ameaças à cidadania 194 Diálogos interdisciplinares 196 Revisar e sistematizar 196 Descubra mais 197 Bibliografia 197 Capítulo 8 Movimentos sociais 199 Movimentos sociais na pauta das Ciências Sociais 200 Características dos movimentos sociais 204 A questão da identidade 205 Breve história dos movimentos sociais 207 Os movimentos operários 207 Temas e protagonistas dos movimentos sociais contemporâneos 208 A emergência dos movimentos sociais no Brasil: contestação ao Estado autoritário 210 Movimentos sociais latino-americanos e o Estado neoliberal 213 A exclusão social e os movimentos sociais na atualidade 215 As muitas configurações da exclusão 215 Movimentos sociais na era da globalização 217 Diálogos interdisciplinares 220 Revisar e sistematizar 221 Descubra mais 221 Bibliografia 222 Capítulo 9 Educação, escola e transformação social 223 Educação e sociedade 224 A educação na história 226 Sociologia e educação 227 A escola como espaço de socialização 228 Além dos portões da escola 229 Sistemas escolares e reprodução social 230 Educação para o presente 234 Concepções da educação no Brasil 235 Problemas e dificuldades da escola brasileira no século XX 237 Desafios do ensino no Brasil 239 Educação e ensino: um direito 243 Diálogos interdisciplinares 244 Revisar e sistematizar 244 Descubra mais 245 Bibliografia 245 SUMÁRIO 7

Salmo Dansa/Arquivo da editora Capítulo 7 Cidadania, política e Estado EstudarEmos neste capítulo: a cidadania, uma conquista valiosa, fruto da participação dos indivíduos na sociedade. É pelo exercício da política dos homens e mulheres de diversas idades que acontecem as transformações sociais, uma vez que poder, de modo geral, se refere à capacidade de agir. No contexto contemporâneo, uma instituição social destaca-se pelo seu papel de permitir ou, em alguns casos, coibir a participação ativa do cidadão em decisões e medidas de grande influência na sociedade: o Estado. Veremos como a Ciência Política busca explicar o papel do Estado, sua função e as tensões entre os interesses individuais e coletivos que estão expressos nessa instituição social. A relação entre Estado, governo, partidos políticos e sociedade civil está entre os objetos de discussão nas páginas que seguem. 171

Cidadania é uma conquista Na década de 1990, o sociólogo Herbert de Souza (1935-1997) projetou e comandou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Aderiram à campanha brasileiros e brasileiras de todas as classes sociais, idades, tendências políticas e religiosas, empresas públicas e privadas, artistas, meios de comunicação e, principalmente, jovens dispostos a recolher e distribuir alimentos. Herbert apostou na juventude como o caminho para abrir espaço para a solidariedade no país, acreditando que a mudança social passa pelo combate à fome: Filipe Rocha/Arquivo da editora Todos podem e devem comer, trabalhar e obter uma renda digna, ter escola, saúde, saneamento básico, educação, acesso à cultura. Ninguém deve viver na miséria. Todos têm direito a vida digna, à cidadania. A sociedade existe para isso. Ou, então, ela simplesmente não presta para nada. O Estado só tem sentido se é um instrumento dessas garantias. A política, os partidos, as instituições, as leis só servem para isso. Fora disso, só existe a presença do passado no presente, projetando no futuro o fracasso de mais uma geração. [...] Tenho fome de humanidade. SOUZA, Herbert de. O pão nosso. Veja 25 anos: reflexões para o futuro. São Paulo: Abril, 1993, p. 20-1. Patrícia Santos/Folha Imagem O clamor do sociólogo faz ecoar o quanto a cidadania é fruto da conquista de direitos que possam levar a sociedade a se tornar mais igualitária. A cidadania se relaciona, portanto, com o princípio de igualdade e com a ampliação da democracia na sociedade, ou seja, o respeito a direitos. Esses direitos são prerrogativas legais baseadas nos costumes e permitidas aos indivíduos dentro de princípios morais e de convivência social. Por exemplo, o direito de praticar qualquer religião ou de exercer uma prof issão. A preocupação com a cidadania se consolidou com o advento da sociedade industrial e as lutas sociais surgidas em seu seio nos séculos XIX e XX. Os avanços científ icos desse período de modernização da sociedade, porém, não trouxeram benefícios imediatos para a maior parte das pessoas. No Brasil, como vimos nos capítulos anteriores, a exclusão desses indivíduos tem razões históricas que remetem tanto ao período de colonização, especialmente no que se refere à discriminação e marginalização de indígenas e afrodescendentes, quanto às políticas públicas implementadas após a Proclamação da Independência. Nesse sentido, a questão da inclusão e exclusão sociais só pode ser superada mediante a demanda por direitos e o alcance da cidadania. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em campanha da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, em 1995. 172 capítulo 7

Os direitos, legitimados pelas leis, decorrem da pressão e da mobilização da sociedade. Só existe cidadania quando há possibilidade de os indivíduos, com seus direitos e deveres, se tornarem sujeitos atuantes na história. A temática da cidadania vincula-se, assim, à dos movimentos sociais, tema do capítulo 8 deste livro, no qual estudaremos como a ação coletiva cria novos direitos e garante o respeito aos já existentes. O reconhecimento dos direitos humanos, atribuídos aos indivíduos independentemente de sua etnia, gênero, idade e religião, está, em tese, na base das atuais democracias. As reivindicações por liberdade e igualdade para todos apareceram pela primeira vez na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em 1776, que inspirou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada em pleno processo da Revolução Francesa, em 1789. Entre os direitos previstos nesse documento, estava o seguinte: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Outro documento histórico que procurou garantir a existência dos direitos humanos foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse documento atualizou o conteúdo das declarações anteriores, dando ênfase aos direitos individuais, dentre os quais a abolição da escravidão, a condenação da tortura, o direito à liberdade de expressão e de consciência, o direito de ir e vir e o direito à educação e à cidadania. É importante ressaltar que, em todos esses casos, a reivindicação dos direitos humanos como ideais não tornou sua prática automaticamente perfeita. Um exemplo disso é o fato de o sufrágio universal só se ter consolidado mais de um século depois das duas primeiras declarações citadas, o que signif ica que nem todos os seres humanos eram de fato tratados como iguais. O mesmo acontece com os países signatários da declaração da ONU, que muitas vezes apoiam medidas e políticas internas e externas que violam estes direitos. Topham Picturepoint/Top Foto/Keystone Cartaz produzido pela ONU em 1948, contendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos em inglês. Da raiz latina da palavra cidade (civitas) derivaram termos como civilização, civilizado, civil, cívico, civilidade. Temos na sua correspondente grega (polis) a origem das palavras político, politizado, polido. Todos esses termos, de alguma forma, se relacionam à ideia de cidadania. Cidadão, na Roma antiga, era o habitante não escravo da cidade, do sexo masculino, que participava da sociedade com seu poder de voz e de voto nos comícios e plebiscitos e com sua participação na administração pública. Portanto, embora essa participação interferisse na própria dinâmica dos espaços urbanos e rurais, cidadania não implicava igualdade. Antes dos romanos, pôde-se observar situação pa- hhsufrágio universal: condição em que todos os cidadãos considerados maiores de idade, independentemente de gênero, etnia ou condição socioeconômica, têm o direito ao voto. a cidadania ativa se traduz na busca por participação na sociedade e não pode ser apenas concedida ou tutelada pelo poder político. hhas origens dos conceitos de cidadão e cidadania Cidadania, política e Estado 173

Filipe Rocha/Arquivo da editora recida na Grécia antiga: era considerado cidadão quem desfrutava do direito de participar da vida política da cidade, o que era vedado à mulher, ao estrangeiro e ao escravo. Durante o declínio das monarquias absolutistas na Europa, deram-se lutas da burguesia por maior influência política, exigência de autonomia para as cidades e rebeliões sociais pelos direitos da população não nobre. Nesse contexto, emergiu a ideia da força da cidadania, principalmente por meio da associação de indivíduos em partidos e sindicatos. Aliás, a etimologia do nome burguesia se aproxima, pelo sentido, de cidadania, por ter origem na palavra burgo, que na Idade Média designava o núcleo fortif icado de um povoado. Ao estudar essa nova conf iguração da cidadania, o sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall (1893-1981) af irma que a cidadania não nasce acabada: trata-se de uma construção pela adição gradativa de novos direitos, conquistados por diferentes atores sociais, ao longo da formação da sociedade capitalista. Em seu livro Cidadania, classe social e status, publicado em 1950, Marshall via na cidadania o elemento de mudança social no contexto industrial inglês. Tomando por base o desenvolvimento da sociedade inglesa, ele concebeu o que denominou direitos sociais no conjunto de direitos presentes ao longo dos séculos. Esse conjunto de direitos é o que dá garantia à condição de cidadão. Os direitos segundo Marshall Século XVIII Século XIX Século XX Direitos civis Abrigam as liberdades individuais e a igualdade de direitos perante a lei, entre grupos considerados legítimos (as mulheres, por exemplo, estavam excluídas). Direitos políticos Expressam o direito universal (masculino) a participar da vida pública (o voto). Direitos sociais Compreendem a garantia de trabalho, habitação, transporte público, segurança, previdência social, educação e saúde para a população como um todo. Os direitos civis, datados do século XVIII, englobam as liberdades pessoais de expressão e culto religioso, o direito à propriedade, o direito a um tratamento legal justo, ainda que estas determinações se aplicassem apenas a um grupo pequeno de pessoas (homens livres, por exemplo). Já os direitos políticos, conquistados no século XIX, correspondem a formas de participação no processo político, como o direito do voto (eleger e ser eleito), de ocupar cargos políticos e administrativos no aparelho do Estado, de participar de júri, entre outros. Os direitos sociais, por sua vez, aparecem como resultado das lutas do século XX e procuram garantir, entre outros, o trabalho para todos e a previdência social destinada aos indivíduos que não se encontram em condições de trabalhar, além dos aposentados. Os direitos civis também passaram a incluir diversas minorias 174 capítulo 7

sociais: minorias étnicas historicamente discriminadas (como os negros e os indígenas, no Brasil), homossexuais, transgêneros, mulheres, pessoas com def iciência, etc. A contextualização histórica dos direitos aponta que, em um primeiro momento, a cidadania cobria os direitos de propriedade e igualdade perante as leis, contra a arbitrariedade do Estado. No século XX, porém, além de ter de administrar uma justiça impessoal voltada para todos, o Estado passou a ser responsável por garantir o respeito à integridade do indivíduo e de seus bens. Uma das formas de fazer isto se deu com políticas de intervenção no trabalho, que visavam regulamentá-lo. Ao longo do século passado, nas sociedades ocidentais, o trabalho assalariado foi responsável tanto por uma nova estruturação das relações de trabalho quanto pela formação de uma identidade social. O trabalho como requisito para a cidadania, portanto, recebeu gradativas garantias constitucionais e legais quanto a jornada semanal, remuneração, condições de trabalho, participação de menores de idade, entre outras. Filipe Rocha/Arquivo da editora Conquistas da cidadania e trabalho A esfera do trabalho é primordial ao exercício da cidadania no capitalismo, por corresponder ao espaço de sobrevivência material do ser humano. Ela envolve a produção econômica, o mercado de trabalho, a geração e a apropriação da renda. Foi longo o processo social de reconhecimento do trabalho como condição para a cidadania. O sociólogo francês Robert Castel analisa a constituição da sociedade salarial na França e localiza no século XX a passagem dos trabalhadores assalariados à condição de cidadãos reconhecidos como sujeitos sociais, com garantias e direitos. Nos séculos XVIII e XIX, receber salário pagamento em recompensa dos serviços prestados era garantia de reconhecimento no conjunto social, mas não evitava que o trabalhador vivesse em uma situação de pobreza e dependência. Para Castel, isso indicava uma espécie de subcidadania. Apenas no século XX o fato de ter salário passou a ser requisito de cidadania e de acesso ao consumo. Na sociedade industrial moderna, a condição de assalariado se tornou uma vantagem, permitindo o acesso ao consumo, por exemplo. A obtenção de alguns direitos foi decisiva nesse processo, como o direito ao trabalho, à greve e à livre organização dos trabalhadores, tanto em sindicatos, associações e grêmios, quanto na articulação em vários níveis local, regional, nacional. Manifestação de trabalhadores da construção civil, em protesto contra empreiteiras, em São Paulo, 2008. O trabalho com direitos garantidos por lei possibilita a ascensão na sociedade, permitindo o acesso a bens e propriedades, e confere identidade à pessoa, que se sente valorizada e reconhecida. Danilo Verpa/Folhapress Cidadania, política e Estado 175

debate A relação entre trabalho e cidadania é resultado de séculos de lutas sociais. Leiam o texto abaixo e, em equipe, discutam o problema ilustrado pelo sociólogo Marco Aurélio Santana. hhbanlieues: termo francês para designar a periferia de grandes cidades. Nestas há, em geral, grande porcentagem de imigrantes com renda abaixo da média francesa, o que ocasiona um contraste sociocultural e socioeconômico com as áreas centrais. Nas chamadas banlieues francesas pode-se ver claramente as digitais dos processos de transformação no mundo do trabalho, do desmantelamento das formas de proteção social, bem como do esgarçamento dos vínculos sociais aos quais são submetidas as sociedades ao redor do globo, em meio ao redesenhar da produção e da acumulação capitalista. [...] Nas revoltas de 2005 se faziam sentir, a partir da ação dos setores mais jovens das classes populares, longos anos de discriminação, desemprego e pobreza. O governo buscou reagir lançando mão: primeiro, da polícia, que na verdade foi o estopim da revolta graças às suas ações que beiram o persecutório contra esses jovens; depois, da derrama de recursos que visam ao remodelamento das áreas carentes dos subúrbios e, por último, pela via da abertura da legislação trabalhista [...] no sentido de supostamente favorecer aos jovens a possibilidade de acesso ao mercado de trabalho. SANTANA, Marco Aurélio. Trabalho, flexibilização e ação coletiva: um olhar sobre o caso francês. 30º- Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu (MG), 2006. p. 9. Bernard Bisson/Getty Images Protestos em subúrbio de Paris em novembro de 2005. Na faixa, em francês, os dizeres A recusa da violência e A escolha de viver juntos aparecem sobre as três palavras-símbolo da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. 1. Com base no relato do autor sobre os conflitos ocorridos em Paris no ano de 2005 e suas consequências, analisem o processo de reconhecimento do indivíduo como cidadão mediante o trabalho. 2. O texto traz um exemplo de como o Estado concede cidadania, por meio de acesso ao mercado de trabalho e ao consumo, a pessoas antes excluídas desta esfera social. Citem exemplos de como o Estado fez isso no Brasil, justif icando-os. Políticas públicas: dilemas da cidadania Por meio de políticas públicas, o Estado intervém em diferentes dimensões da sociedade. Por vezes, os aspectos econômicos e sociais se confundem nessa intervenção estatal; nos programas de estímulo a empregos industriais, por exemplo, as garantias dos trabalhadores decorrem mais das ações de natureza econômica do que das ações sociais propriamente ditas. 176 capítulo 7

Desde seu surgimento até a atualidade, o Estado se caracteriza por ser a instituição politicamente organizada responsável pela esfera pública, seja ao geri-la, seja ao conceder sua gestão e fiscalizá-la. É possível separar o que é público da esfera privada? Como são formuladas as políticas públicas? Tudo depende da forma como determinada sociedade se organiza. Nas sociedades socialistas, em que certos meios de produção são socializados ou coletivos, o Estado assume as necessidades da população integralmente. Já nas sociedades capitalistas, onde prevalece a propriedade privada, o Estado (desde que orientado para tal) procura atender às necessidades sociais básicas, como educação, segurança e saúde. Para que isso seja possível, cobra impostos e taxas, o que gera, por sua vez, a obrigação de fornecer e administrar os bens públicos. hhsocializados: nas sociedades socialistas, notadamente na União Soviética, os meios de produção eram, em geral, ou estatais (gerenciados por funcionários do Estado) ou coletivos (gerenciados pelos próprios trabalhadores). pesquisa Você conhece alguma política pública realizada no Brasil (na sua cidade ou estado)? Se você não conhece, é tempo de conhecer. Em uma equipe, pesquise um projeto ou uma política pública realizada pelo Estado, identif ique a justif icativa do projeto (por que ele existe) e a quem ele pretende atender. Sistematize por escrito os resultados dessa pesquisa e apresente-os para a turma. As grandes decisões de cunho econômico de uma nação, como obras de infraestrutura (pontes, barragens, estradas, portos, etc.) e formas de atrair investimentos, geralmente resultam de opções realizadas pelo grupo político que está no poder. Não raras vezes, essas decisões e as intervenções delas resultantes manifestam o padrão de dominação social existente e se guiam pelos interesses desse grupo. No contexto atual de competição econômica intensa entre os países, muitas escolhas políticas podem levar o governo a deixar de atender às demandas mais imediatas da população educação, saneamento, etc. Com isso, crescem ainda mais as desigualdades sociais internas e entre os países. Miguel Riopa/Agência France-Presse Manifestantes protestam em Lisboa, capital de Portugal, contra as chamadas medidas de austeridade. Como condição para receber empréstimos em meio a uma grave crise econômica, o governo português aumentou impostos e cortou investimentos em áreas como saúde e seguridade social. Foto de 14 de novembro de 2012. Cidadania, política e Estado 177

Rogério Reis/Pulsar Imagens Conjunto habitacional no bairro Campo Grande, na cidade do Rio de Janeiro, construído por programa do governo federal de financiamento de imóveis para população de baixa renda. Foto de 2011. Estabelecer um limite entre o poder político e o poder econômico é sempre difícil. O poder político diz respeito à distribuição coletiva dos recursos e seu sujeito máximo é o Estado, que opera por meio de um aparato jurídico-administrativo (leis, órgãos estatais, etc.). Outros sujeitos do poder político, entre muitos, são os partidos, os sindicatos, os movimentos sociais organizados. Já o poder econômico tem por base a propriedade, a posse e a gestão dos recursos econômicos, e o seu sujeito típico é a empresa. A formação e a distribuição dos bens sociais em nossa sociedade dependem da interação entre a esfera da economia e a da política. A construção e manutenção da infraestrutura coletiva (como hospitais, estradas e açudes) é um direito social que exige o uso da tecnologia, dos meios de produção e, às vezes, até do capital advindos do poder econômico. Quando o Estado assume os problemas sociais como questões de sua responsabilidade, podemos dizer que está formulando e implementando políticas sociais. As políticas sociais se voltam a questões do bem-estar dos cidadãos, destinando-se a garantir um mínimo de consumo para todos os indivíduos, seja pela provisão de serviços, seja por transferências diretas de renda. Desse modo, consomem-se serviços de saúde, de educação, de transporte de massa, de segurança civil, de previdência social, de assistência pública e de proteção social. Atribuição do Estado, cuidados como esses são capazes de criar empregos (políticas de trabalho, frentes de trabalho), gerar renda (políticas salariais) e prover moradias populares (políticas habitacionais). As políticas sociais decorrem das necessidades da sociedade, na medida em que atendem à demanda de reduzir os níveis de pobreza e superar desigualdades sociais e regionais de um país. Por outro lado, há sempre chances de que as políticas sociais assumam um caráter assistencialista. Isso ocorre quando, em vez de consolidar o direito de todos o bem comum, elas se traduzem em mera assistência, precária e insuf iciente, aos mais carentes. Programas sociais assistencialistas geralmente visam desviar a atenção da falta de mudança em estruturas fundamentais para a garantia dos direitos, como postos de saúde com poucos médicos, farmácias comunitárias sem medicamentos imprescindíveis, professores mal remunerados, etc. Nesses casos, os usuários dos serviços oferecidos não se veem no direito de dispor de uma melhor atenção às suas necessidades, na condição de assistidos. Referimo-nos a clientelismo quando ocorre uma relação de submissão, em que o lado menos favorecido apoia o mais favorecido em troca de algum tipo de proteção ou serviço de caráter imediato. Por isso, para que os direitos se concretizem em conquista efetiva, é preciso a participação do povo. os direitos devem estar incorporados às conquistas sociais, em função da capacidade política de a sociedade se organizar para reivindicar, cabendo ao Estado zelar por isso. O desenvolvimento de um país está vinculado à condição da cidadania de sua população e não ocorre somente com a superação da pobreza socioe- 178 capítulo 7

conômica, mas se estende à necessidade de ampliar e amadurecer a esfera de participação política. A conquista da cidadania exige instrumentos de reivindicação; ela vai além de campanhas e programas específ icos ou emergenciais. Cidadania implica vencer os diferentes problemas sociais por meio da participação política. pausa para refletir No texto a seguir, o sociólogo Roberto Véras de Oliveira def ine a qualif icação prof issional como um direito social e, portanto, objeto da ação do Estado que se preocupa com a inclusão social. A política pública de qualificação profissional, [...] através fundamentalmente do PNQ [Plano Nacional de Qualificação, 2003], sofre uma reorientação [...]. Em primeiro lugar, a qualificação profissional é afirmada na perspectiva do direito social. Devendo, nesses termos, ser objeto de uma política nacionalmente articulada, controlada socialmente, sustentada publicamente e orientada para o desenvolvimento sustentável, a inclusão social e a consolidação da cidadania. Sob tal perspectiva, mais do que uma ação formativa de conteúdo técnico, visando tão somente uma inclusão produtiva, a qualificação deve orientar-se para a busca de uma inclusão cidadã. Trata-se, portanto, de uma qualificação social e profissional [...], em um sentido mais amplo, como práticas e significados socialmente construídos, seja no âmbito das relações privadas (estabelecidas no processo de trabalho), seja no âmbito dos processos públicos (de construção de políticas públicas). OLIVEIRA, Roberto Véras. Momento atual da política pública de qualificação profissional no Brasil: desafios e inflexões. Revista Ariús. Campina Grande, v. 13, n. 1, jan./jul. 2007, p. 58. Sabendo que políticas públicas atendem a diferentes necessidades de uma população, qual deve ser a ação do Estado para garantir a qualif icação prof issional como um direito social? Condições da cidadania no Brasil Cidadania relaciona-se com liberdade, uma noção de inspiração ideológica da Revolução Francesa (1789), nascida do projeto burguês de sociedade a partir do século XVIII. Segundo a cientista política Elisa Reis (1946-), cidadania e liberdade só existem quando direitos políticos, civis e sociais são naturalizados em uma sociedade nacional, ou seja, são universalizados. Para que haja cidadania plena, é preciso que os direitos sociais venham acompanhados dos direitos civis e políticos. No entanto, isso não aconteceu ao longo da história do Brasil. Essa ausência de direitos, que persistiu por séculos, é responsável por desigualdades de renda e étnico-raciais que se mantêm ainda hoje. Mesmo após a independência do Brasil, só era considerado senhor- -cidadão aquele que controlava terras, possuía escravos e detinha poder político local. Para a socióloga brasileira Teresa Sales, eram esses proprie- Filipe Rocha/Arquivo da editora Cidadania, política e Estado 179

Lula Marques/Folhapress A Constituição de 1988 é apresentada pelo deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), presidente da Assembleia Nacional Constituinte, em Brasília, 1988. Essa assembleia foi composta por deputados eleitos pelo povo e teve como finalidade elaborar uma nova Constituição para o Brasil. tários que cediam aos indivíduos pobres a condição de cidadãos. Por isso, Sales identif ica que os primeiros direitos civis o de ir e vir, o de justiça, o direito à propriedade e ao trabalho nasceram de uma espécie de cidadania concedida. Essa gênese da cidadania brasileira é contraditória, pois, ao mesmo tempo que a elite concedia, negava-se a cidadania ao ser humano livre e pobre, que dependia dos favores do dono de terras para poder usufruir de direitos elementares. A primeira Constituição do Brasil republicano, de 1891, estendeu a cidadania a outros setores da população, mas não incluiu os analfabetos, as mulheres, os padres e os soldados como indivíduos atuantes na vida política nacional. As mulheres, por exemplo, só tiveram di reito ao voto com a Constituição de 1934, e os analfabetos, com a Constituição de 1988. Esta última, ainda em vigor, foi considerada a Constituição cidadã, em virtude da ampliação dos direitos sociais e do combate à discriminação social. Por meio da organização e da associação, os trabalhadores brasileiros protagonizaram conquistas sociais. No caso do Brasil, esse processo de lutas e conquistas dos trabalhadores passou por tensões, conflitos e contradições, uma vez que em alguns momentos históricos o Estado restringiu os direitos civis e políticos. Foi o que aconteceu no período do governo de Getúlio Vargas entre 1937 e 1945 (o chamado Estado Novo ), no qual o Congresso estava suspenso e a imprensa, sob censura. Apesar dessas restrições à cidadania, o governo instituiu em 1943 o estatuto jurídico denominado Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que regulamentou o trabalho no país, reconhecendo o direito coletivo e as garantias dos contratos individuais. A formalização do trabalho assegurou a inclusão social e uma rede de proteção ao trabalhador. No texto a seguir, podemos compreender como o movimento dos trabalhadores organizou-se, na forma de greves gerais e mobilizações, a f im de conquistar esses direitos. Foi com a urbanização e a industrialização, processos decisivos de 1890 em diante, que o operariado emergiu como força social significativa nos vários centros urbanos. Uma identidade operária começou a se forjar então, contrapondo-se aos interesses burgueses [...]. A luta do operariado pela jornada diária de 8 horas de trabalho foi constante ao longo do primeiro período republicano. Desde o início do século XX ocorreram greves pela redução da jornada de trabalho. [...] Em 1907 [por exemplo], eclodiu em São Paulo e atingiu Santos, Ribeirão Preto e Campinas, tendo sido desencadeada na construção civil, na indústria da alimentação e metalurgia; a greve abrangeu posteriormente empregados da limpeza pública, gráficos, sapateiros e operários têxteis. O movimento foi reprimido violentamente e apenas alguns setores operários obtiveram vitórias parciais. DE DECCA, Maria Auxiliadora. Indústria, trabalho e cotidiano. Brasil 1889 a 1930. São Paulo: Atual, 1991. p. 11. 180 capítulo 7

Embora seja importante valorizar as conquistas obtidas por meio de leis, esta não é ainda uma realidade efetiva para todos os indivíduos. Vale destacar que é permanente o confronto entre a legalidade (o prescrito em lei, o formal) e a legitimidade (aquilo que é aceito). Essa tensão ocorre também em relação ao mundo do trabalho. O Estado brasileiro concede cidadania aos trabalhadores que seguem prof issões regulamentadas, têm carteira prof issional assinada e são f iliados a um sindicato registrado. Para essa situação, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos (1935-) utiliza a expressão cidadania regulada, ou seja, são cidadãos apenas aqueles que têm ocupações reconhecidas e def inidas em lei. Ao estabelecer esta correlação, Santos refere-se à cidadania como uma concessão na cultura cívica do país, pelo fato de o Estado interferir e regular a vida econômica sem deixar de promover o desenvolvimento capitalista. Apesar das conquistas obtidas na lei, na prática existe um mercado de trabalho situado entre a formalidade e a informalidade, e os trabalhadores excluídos do mercado formal sofrem com a desigualdade de benefícios e uma crescente marginalização social. Apenas com a Constituição de 1988 foram ampliados os direitos para aqueles que estão fora da contratação formal de trabalho, como é o caso do acesso à saúde pública. Mais recentemente, outras políticas sociais voltadas a esses grupos foram implementadas, como o Bolsa Família (que transfere renda a famílias consideradas extremamente pobres) e a criação da categoria de microempreendedor individual (que formaliza trabalhadores autônomos, como pipoqueiros, vendedores ambulantes, etc.). Ainda há muitas categorias excluídas deste processo, como a das pessoas que exercem a prostituição que, embora não seja proibida no país, não é regulamentada. hhcultura cívica: forma como os indivíduos aceitam e se relacionam com o Estado. José Cruz/Agência Brasil Manifestação em novembro de 2012, no Congresso Nacional, em Brasília (DF), pela aprovação de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que garante às empregadas domésticas os mesmos direitos trabalhistas dos demais trabalhadores. A PEC entrou em vigor em abril de 2013. Além de estarem sujeitas, até então, a condições distintas de trabalho pela Constituição de 1988, as empregadas domésticas muitas vezes não têm registro formal de trabalho. Cidadania, política e Estado 181

Poder e política: exercício e participação hhpersuasão: indução de forma pacífica ou coercitiva com o intuito de convencer um indivíduo a aceitar uma ideia ou realizar uma ação. hhalijado: afastado, excluído. Alessandro Assunção/ON/D.A Press Pelo exercício da política do diálogo, da palavra, da persuasão os seres humanos transformam sua realidade. É por ela também que os desprovidos de direitos e benefícios podem mudar a sociedade e atuar coletivamente em prol do bem comum. Mas, quando os meios políticos não estão disponíveis, pode ocorrer o uso da força. Nesse caso, a política f ica de lado e o povo se vê alijado de decidir sobre seus representantes e de participar das decisões sobre o destino da sua cidade, do seu estado e do seu país. Se você está entre aqueles que pensam que a política se restringe aos políticos, que ela é cansativa e deve ser deixada para quem entende do assunto, saiba que, como parte do povo brasileiro, você foi levado a pensar assim pelo próprio desenrolar histórico de nosso país. Por muito tempo da independência até o início do período republicano, votar e ser votado eram privilégios dos ricos e poderosos. No decorrer do século XX, existiram, ainda, regimes políticos autocráticos, ou seja, caracterizados pelo autoritarismo e pela concentração do poder. Os governos autocráticos visavam controlar a sociedade por meio da repressão, como no período da ditadura militar (1964-1985) ou no do Estado Novo (1937-1945). Tudo isso contribuiu para afastar o povo da política e espalhar a ideia de que ela cabe apenas aos partidos e políticos eleitos. O f ilósofo grego Aristóteles (384-322 a.c.) af irmava que o ser humano é um animal político e, nessa condição, a política não se restringiria à dimensão do Estado, mas à vida da cidade como um todo. Nessa concepção, fazemos política em nosso cotidiano. Fazemos política quando, no local de trabalho, nos unimos para conquistar melhorias ou participamos do sindicato. Fazemos política na escola ou na universidade quando participamos das organizações estudantis, do grêmio ou do diretório acadêmico. Fazemos política ao nos interessarmos pelas coisas do nosso bairro, da nossa cidade, da zona rural, do nosso país; enf im, quando queremos decidir o que é essencial para nossa vida. A política está no nosso cotidiano, desde uma reunião de moradores do bairro para reivindicar iluminação ou a instalação de um semáforo, até o envolvimento formal com movimentos sociais, partidos políticos ou grupos religiosos. Participar de eleições é somente uma das formas de atuar politicamente, embora seja uma parte importante da atividade política. Por meio das eleições escolhemos aqueles que nos representam, tomam decisões e agem por nós em determinadas esferas do poder, sendo remunerados para exercer essa função: isso é o que def ine uma democracia representativa. Assembleia de alunos, funcionários e professores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 2011, na reitoria da instituição. O diálogo é parte essencial da política nos Estados democráticos. 182 capítulo 7

As propostas, os projetos, as leis e a condução das políticas de Estado são votadas e concretizadas por aqueles que escolhemos como representantes políticos. No caso de repúblicas federativas presidencialistas como o Brasil, são os vereadores e prefeitos no nível do município; os deputados estaduais e governadores no nível do estado; e os deputados federais, senadores e o presidente no nível federal. Suas decisões nos afetam diretamente, desde o custo do pão de cada dia à possibilidade ou não de estudar em uma escola de qualidade. Nas repúblicas federativas presidencialistas, diferentes atribuições são delegadas aos diferentes representantes. Os membros eleitos do Poder Legislativo (vereadores, deputados e senadores) formulam leis e def inem o orçamento anual, ou seja, onde os recursos arrecadados devem ser empregados. O Poder Executivo, chef iado pelo prefeito (no município), pelo governador (no estado) e pelo presidente (no país), executa aquilo que as leis determinam e administra as políticas, obras e serviços públicos. Já o Poder Judiciário julga o cumprimento das leis pelos cidadãos. No caso do Brasil, o Legislativo e o Executivo são eleitos pelo voto popular, enquanto os membros do Judiciário são selecionados mediante concursos públicos. A divisão de poderes em três esferas foi elaborada pelo pensador iluminista francês Charles de Montesquieu (1689-1755). Ele defendia que os poderes não deveriam se concentrar nas mãos de um só indivíduo ou de um só poder, pois este tenderia a abusar dele. A ideia era que cada poder funcionasse independentemente, mas sempre sob a f iscalização dos demais. Mulher vota em urna eletrônica na cidade de São Paulo durante referendo sobre o desarmamento no Brasil, em 2005. Delfim Martins/Pulsar Imagens aprendemos a fazer política também nas relações estabelecidas nos vários espaços sociais dos quais participamos. Há outras def inições do conceito de política que a restringem a estratégias específ icas. Max Weber expõe em seu livro Ciência e política: duas vocações que política é o conjunto de esforços feitos com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisão de poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado. Para ele, a política se relaciona ao poder do Estado e aos indivíduos que aspiram obtê-lo. Mas o que é o poder? Para Weber, ele tem relação com a capacidade de mando de um ser humano ou de um grupo de pessoas sobre determinada comunidade ou país. Porém, o poder não pode ser visto como uma via de mão única. Ele depende da legitimidade da dominação (conceito que vimos no capítulo 1); ou seja, é preciso que esta seja aceita pelos dominados para que se mantenha. Em uma visão mais alargada, o f ilósofo francês Michel Foucault (1926- -1984) destaca que o poder se encontra em todas as relações sociais, e não apenas no Estado. Assim, o poder está presente nas microrrelações: na família (onde existe a autoridade do pai e da mãe), na sala de aula (na relação entre professor e aluno), nas instituições religiosas (com a autoridade do padre, do pastor ou de outros líderes em relação aos seus f iéis), nas relações de gênero (entre homens e mulheres), etc. Filipe Rocha/Arquivo da editora Cidadania, política e Estado 183

Podemos identif icar relações de poder e exercício da política em todas as esferas de nossa vida. O poder está difuso, heterogêneo, na tensão existente nas relações sociais. Poder é uma prática social, no sentido de que é algo que se exerce e se efetua, e há sempre múltiplas resistências dentro da própria rede de poder. Para Foucault, é possível verif icar esses poderes mínimos em qualquer situação concreta. debate Quando o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-) nos mostra o princípio da democracia o poder de todos, ergue aos nossos olhos a importância da conquista da cidadania: Esta ideia [de cidadão como membro de um corpo político e titular do decidir, com outros membros, sobre direitos e deveres, prerrogativas e obrigações] foi lançada na fundação da democracia moderna e da visão de república res publica como um corpo político cujos membros deliberam coletivamente sobre como moldar as condições de sua coabitação, cooperação e solidariedade. Tal modelo de democracia moderna nunca foi completamente implementado. [...] Enquanto os poderes constituídos promovem o governo de poucos, a democracia é uma constante alegação em nome de todos [...]. BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 74. Quais práticas de nossa sociedade levam a identif icar o caráter político af irmativo da democracia? Promovam um debate questionando em que aspectos a realidade atual do país se distancia dessa ideia inicial. Cidadania: entre o público e o privado Karlos Geromy/OIMP/D.A Press O pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), como outros autores clássicos, discutiu a cidadania pela ótica do espaço urbano, pois a cidade é o local onde primeiro se manifesta a distinção entre o poder público e o poder privado. A delimitação entre o espaço público (de interesse geral) e o espaço privado (restrito a indivíduos) articula-se justamente por meio do Estado. Pensar a cidadania entre as duas esferas a pública e a privada torna possível entendê-la como o conjunto de direitos e deveres na convivência coletiva. A tensão permanente entre indivíduo e sociedade que a cidadania faz surgir é própria da vida política. a cidadania diz respeito às relações entre o Estado e os cidadãos, definindo o espaço público quanto a direitos e obrigações dos cidadãos. Pessoas participam de mutirão do Dia Mundial da Limpeza das Praias, na praia do Calhau, em São Luís, capital do Maranhão, em 2012. Por se constituir num espaço que ao mesmo tempo é de todos e não é propriedade de ninguém, a esfera pública está sujeita tanto ao descaso dos indivíduos como ao benefício de ações coletivas. 184 capítulo 7

A f ilósofa política alemã Hannah Arendt (1906-1975) def iniu a esfera pública como o mundo comum aquilo que é de todos e, ao mesmo tempo, aparentemente não é de ninguém. Isso implica respeito e responsabilidade ao que é de todos para que cada um possa usufruir esse mundo comum. Quando os membros de uma sociedade perdem essa noção, há um declínio da esfera pública com consequências sociais graves para o conjunto das relações: há a privatização do que deveria ser de todos, a democracia se restringe e os direitos coletivos f icam diminuídos, dando margem ao fenômeno da corrupção. A Ciência Política aponta a origem da corrupção política quando da queda da monarquia absolutista. Até então, tudo pertencia ao rei; no momento em que o Estado moderno é instituído, os bens do rei são separados dos recursos do Estado, e a apropriação destes por qualquer indivíduo ou grupo passa a ser proibida e considerada um ato de corrupção. A esfera privada corresponde aos interesses particulares. A palavra privado, originalmente, tem relação com privação, af irma Arendt, no sentido de que viver uma vida inteiramente privada signif ica ser destituído de ser visto e ouvido pelos outros. A possibilidade de estar com os outros, de estabelecer interações com os grupos sociais, insere o indivíduo no espaço público. A esfera pública e a esfera privada nasceram de uma transformação histórica da propriedade. Na passagem da era feudal para a moderna, os reis e seus súditos assumiram publicamente sua condição de proprietários, exigindo proteção para seus bens e propriedades. Com isso, a riqueza se transformou em capital, ou seja, passou a ser um proveito para o indivíduo. Sociologicamente, isso causou uma contradição, pois a riqueza que deveria ser comum (e, portanto, protegida por todos) se destinava à vida privada. Na modernidade, essa contradição entre as esferas pública e privada se agravou. A questão dos direitos civis vai além da conquista de espaços setoriais, como o direito à educação básica, à previdência ou mesmo à sobrevivência material; ela não se restringe aos direitos humanos. Os direitos civis englobam os direitos de grupos dentro da sociedade mulheres, negros, indígenas, idosos, migrantes, imigrantes, sem-terra, sem-teto, pessoas com def i ciência (PCD) e outros grupos historicamente discriminados ou marginalizados, que hoje se organizam para reivindicar tratamentos específ icos e espaços que lhes foram retirados ou negados. The Bridgeman Art Library/Getty Images O palácio de Versalhes e seus jardins em pintura de Pierre Patel, de 1668. A pomposa construção foi sede da corte francesa e símbolo da monarquia absolutista de Luís XIV. o debate sobre cidadania, promovido também pelas ciências Sociais, contribui para que ela seja alcançada nas sociedades contemporâneas. Cidadania, política e Estado 185

hhdignidade: no campo da ética e da filosofia política, significa respeito e tratamento ético. Tem prevalecido como ideal em nossa sociedade e entre cientistas sociais a concepção universalista dos direitos do indivíduo. Essa concepção se baseia no reconhecido valor do ser humano à dignidade, mas articula esses direitos individuais aos sociais e coletivos. Assim, é necessária a existência de leis e regras de convivência que garantam os direitos e a segurança dos cidadãos, até mesmo contra ações muitas vezes arbitrárias dos Estados. pausa para refletir Observe atentamente a charge de Angeli reproduzida a seguir. Ela faz uma crítica social e nos reporta aos direitos de cidadania. Angeli/Acervo do cartunista 1. Escreva, em poucos parágrafos, sobre como você percebe os direitos de cidadania e as dif iculdades para que todos vivam uma cidadania plena em nosso país. 2. Relate algum caso que você conheça e que tenha signif icado uma conquista ou uma ampliação de direitos de cidadania. Estado e sociedade Desde a Idade Moderna, o exercício do poder político legítimo é considerado em nossa sociedade uma atividade própria do Estado. Um dos primeiros estudiosos a fornecer as bases para essa concepção foi o historiador e 186 capítulo 7

diplomata italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), que acompanhou atentamente a centralização política que ocorria em outras partes da Europa. Com base em análises de fatos de sua época e de outros períodos, Maquiavel buscou orientar aquele que pudesse unif icar as cidades italianas em um Estado, a f im de que não permanecessem vulneráveis aos exércitos de outras nações. Embora aconselhe ao soberano que se faça temido pelos governados (inclusive com o uso da força), Maquiavel adverte que ele não pode ser odiado. Vê-se então, desde essa época, a ideia de que, para aceitar a dominação, a sociedade precisa considerá-la legítima. Hoje, pode-se af irmar que o Estado tem como função assegurar, por meio de políticas públicas, certas condições de vida que a sociedade considera necessárias à população. Não há, no entanto, unanimidade quanto ao papel dessa instituição social, tampouco quanto às interpretações teóricas a respeito dela. É fato que esse é um tema controverso. Concepções de Estado e sociedade civil na Idade Moderna A primeira definição de sociedade civil foi elaborada pelo filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679). Ele acreditava que, em seu estado natural, os homens lutavam uns contra os outros pelo poder e por riquezas. Por isso, os indivíduos abrem mão de sua liberdade e concebem regras de convivência a fim de garantir condições mínimas de estabilidade. Forma-se, assim, a sociedade civil que, no pensamento de Hobbes, é sinônimo de Estado. Para o filósofo inglês John Locke (1632-1704), a sociedade civil é mais um aprimoramento do estado natural do que uma solução para ele. O homem, livre e igual por natureza, precisa de um poder imparcial e legítimo para mediar conflitos, garantindo os direitos que já tinha no estado natural: à vida, à liberdade, à saúde e à propriedade. Além da ideia de igualdade no nascimento, o respeito à propriedade como um direito natural do homem está em conformidade com os fundamentos liberais da burguesia em ascensão na Inglaterra do século XVII. Conforme a burguesia e o Estado moderno se consolidavam na Europa, a noção de sociedade civil foi se distanciando da de sociedade política. Durante a Idade Média, tanto o poder como a propriedade eram hereditários. Na sociedade burguesa moderna, esses dois aspectos se desvinculam: embora, na sociedade civil, a propriedade continue sendo transmitida de pai para filho, o poder político passa a obedecer a normas e leis próprias. Segundo o cientista político italiano Luciano Gruppi (1920-2003), garante-se a democracia no âmbito da sociedade política, desde que esta não interfira na propriedade e na livre iniciativa econômica. A coroação de Guilherme III, em 1689, como rei da Inglaterra. Para ser coroado após a Revolução Gloriosa, Guilherme de Orange aceitou os termos da Declaração de Direitos, pela qual, na prática, repassava o poder político para o Parlamento. Gravura de 1860. Se Locke considerava a propriedade privada um direito natural, para o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) ela era justamente a origem da desigualdade e da corrupção moral. A sociedade civil, instaurada com a invenção da propriedade, seria uma degeneração do estado de natureza, no qual os seres humanos eram bons, livres e felizes. Para Rousseau, os indivíduos só recuperariam as qualidades perdidas quando a sociedade civil se transformasse em sociedade política, na qual a vontade geral do povo seria soberana ou seja, na qual as leis e regras a serem seguidas emanassem do próprio povo. Diosphere Ltd./Diomedia Cidadania, política e Estado 187

O que é e como funciona o Estado? Não há uma visão única sobre isso. Na interpretação do f ilósofo alemão Friedrich Engels (1820-1895), o Estado é um produto da sociedade e seu papel é amortecer os conflitos sociais, evitar os choques entre as classes e, de certo modo, assegurar a reprodução do sistema social. Eis a sua concepção: O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é a realidade da ideia moral, ou a imagem e a realidade da razão. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição consigo mesma e está dividida por antagonismos irreconciliáveis [...]. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder colocado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ordem. Esse poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e distanciando-se cada vez mais, é o Estado. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Global, 1985. p. 227. Teresa Maia/DP/D.A Press Já o f ilósofo político grego Nicos Poulantzas (1936-1979) pensa o Estado como uma relação de forças, uma relação de poder entre as classes sociais e no próprio interior delas. Para Louis Althusser (1918-1990), f ilósofo francês, o Estado é composto por aparelhos ou instituições sociais (como é o caso do exército, da administração, do sistema judiciário e do aparato da polícia) e tem por função a repressão, ou seja, a manutenção da ordem social. Esta, por sua vez, é moldada pelos interesses da classe dominante, que faz com que o Estado esteja a seu serviço. Na concepção do sociólogo Max Weber, o Estado só pode existir quando os seres humanos se submetem à autoridade de um grupo dominante. Nesse sentido, quando essa instituição se constitui, estabelece-se uma relação de dominação do homem sobre o homem, um monopólio da violência legítima. Em outras palavras, trata-se da obediência da população a um grupo dominante mediante uma violência reconhecida e amparada legalmente. Acompanhe, no quadro da página seguinte, a perspectiva de diferentes autores sobre a natureza do Estado. Estudantes entram em confronto com o Batalhão de Choque da Polícia Militar, durante protesto, em 2012, contra o aumento de passagens do transporte público na Região Metropolitana do Recife. Para Althusser, aparelhos como a polícia estão a serviço da ordem social vigente. 188 capítulo 7

Interpretações sobre a natureza do Estado Karl Marx (1818-1883) Friedrich Engels (1820-1895) Max Weber (1864-1920) Antonio Gramsci (1891-1937) Louis Althusser (1918-1990) No Estado prevalece o poder organizado de uma classe social que é dominante por deter a propriedade dos meios materiais de produção. Há na estrutura da sociedade dois níveis articulados: a base e a superestrutura. A base comporta a unidade de forças produtivas e relações de produção; já a superestrutura é composta das instâncias jurídico-política (o Direito e o Estado) e ideológica (a moral, a ciência, a filosofia, etc.). O Estado é um produto da sociedade e tem como papel amortecer os conflitos, os choques entre as classes e assegurar a reprodução do sistema social. O Estado existe quando há obediência à autoridade de um grupo dominante e essa relação de dominação está fundada na violência legítima, legalmente reconhecida. O Estado tem papel importante nos campos cultural e ideológico, bem como na organização do consentimento ou seja, busca legitimar-se perante a sociedade civil não apenas pela coerção, mas, sobretudo, pela aceitação da autoridade. As relações de poder necessitam de instituições que as reproduzam escola, família, igreja, veículos de comunicação, que são os aparelhos ideológicos do Estado. O poder e a ideologia, fenômenos correlatos, são exercidos por essas organizações formais mediante símbolos e práticas sociais. Nicos Poulantzas (1936-1979) Octavio Ianni (1926-2004) Embora o Estado capitalista não seja um instrumento totalmente controlado pela classe dominante, devido às lutas entre as frações que a compõem, ele fornece o quadro para que os operários não se reconheçam como integrantes de uma mesma classe. Isso ocorre com a criação de noções como a de identidade nacional, que submetem todos a um conjunto unificado de regras e instituições. O Estado não é apenas um órgão da classe dominante, pois responde aos movimentos das outras classes sociais e age conforme as determinações das relações entre elas. Ele faz parte do jogo de interesses sociais. Encontro com os cientistas sociais Max Weber teoriza sobre as características do Estado moderno. Uma delas é a violência legítima. Leia com atenção e responda à questão. É conveniente definir o conceito de Estado em correspondência com o moderno tipo do mesmo já que em seu pleno desenvolvimento é inteiramente moderno mas com abstração de seus f ins concretos e variáveis, tal como o vivemos. Caracteriza hoje formalmente ao Estado o ser uma ordem jurídica e administrativa cujos preceitos podem variar pela qual se orienta a atividade [...] que se pretende válida aos membros da associação que a ela pertencem essencialmente por nascimento como também toda ação executada no território a que se estende a dominação [...]. É, portanto, característico: que hoje só exista coação legítima desde que a ordem estatal o permita ou prescreva. WEBER, Max. Economía y sociedad. v. 1. Bogotá: Fondo de Cultura Económica, 1977. p. 45. Texto traduzido. O monopólio do poder estatal é um traço atual, semelhante à racionalidade da empresa moderna, segundo Weber. Identif ique situações em que o Estado contemporâneo, disputando poder com outras instituições sociais, faz valer seu caráter de coação legítima, amparada pela lei e aceita como tal. Cidadania, política e Estado 189