doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.02013 O CONCEITO DE MÚSICA DE BOÉCIO NA DIVISÃO DO CONHECIMENTO MEDIEVAL TOFFOLO, Rael Bertarelli Gimenes (UEM) <rbgtoffolo@uem.br> 1 Introdução Diversos autores de áreas musicológicas diferentes, como compositores, analistas, historiadores, etno-musicólogos, interpretes, entre outros, buscam a sua maneira forma de explicar suas práticas, tarefa esta que acarreta em inúmeras abordagens diferenciadas sobre o assunto. Tais abordagens são, em inúmeros casos, antagônicas e poderíamos conjecturar que tal oposição, em grande parte dos casos, centra-se em dois polos principais. Um mais estruturalista e outro mais psicologista. Nattiez é esclarecedor neste sentido: ( ) the musical work is not merely what we used to call the text : the musical work is not merely a whole composed of structures (I prefer, in any case, to write of configurations ). Rather, the work is also constituted by the procedures that have engendered it (acts of composition), and the procedures to which it gives rise: acts of interpretation and perception. (NATTIEZ, 1990, p. ix) O argumento apresentado por Nattiez no prefácio de seu Music and Discurse, demonstra como os estudos sobre música têm abordado tal prática e, na verdade, pode-se perceber que a atenção ao aspecto estrutural da música (seu texto), tem sido por muitas vezes enfatizado em detrimento de uma abordagem sobre como a música é percebida. Apesar de tal enfase, as duas vertentes estão presentes e são centrais nos estudos musicológicos. Nattiez propõem neste trabalho, e grande parte da obra teórica de sua vida também o faz, uma abordagem tripartida do fenômeno musical apoiada na semiótica pierciana e em Molino. Nattiez propõe uma musicologia que faça as pazes entre as vertentes estruturalistas e psicologistas, que durante muito tempo foram praticamente 1
excludentes. Uma abordagem detalhada do trabalho de Nattiez fugiria do escopo deste artigo, mas o que nos interessa aqui é demonstrar como tal oposição sempre foi presente na história do pensamento musical e que tal discussão já encontra-se no trabalho de Boécio do início do século VI. Podemos perceber que o fenômeno musical pode ser abordado de diversas formas. Porém, parece haver uma tensão profunda entre decidir ou acreditar na música como um conjunto de configurações de estruturas, estando a percepção de tais estruturas relegada à segundo plano, ou por outro lado, um conjunto de crenças e hipóteses de como nos comportamos enquanto indivíduos ou ao menos como recebemos um conjunto de estímulos psicoacústicos, sendo esse ser que percebe representado por um conjunto de mecanismos auriculares ou um indivíduo complexo pertencente à um grupo social e imerso em uma rede infinita de significados. O mais interessante é que tal tensão já pode ser localizada no trabalho de Boécio no século VI. Logicamente a transposição direta do pensamento de Boécio para a musicologia moderna não é simples, mas é interessante notar como a oposição entre esses dois polos pode ser encontrada em seu pensamento, originada a partir de uma oposição entre a as linhas de pensamento platônico-pitagórica por um lado e aristotélica pelo outro. 2 A divisão do conhecimento segundo Boécio Para compreendermos como a música é considerada por Boécio, façamos uma breve descrição sobre como Boécio apresenta sua divisão do conhecimento. Durantes o medievo podemos encontrar diversas formas de considerar as divisões das ciências ou divisões da filosofia. Tais divisões tinham por intuito demarcar quais os temas ou disciplinas formativas do conhecimento humano, seus conteúdos e metodologias bem como estabelecer as relações entre cada uma delas. Apesar de algumas diferenças entre si, os contemporâneos de Boécio geralmente consideram que o imaterial é superior ao material e a atividade mental é superior ao intelecto prático. Essas premissas básicas, de origem platônico-pitagórica, consideravam que os fenômenos mutáveis e inconstantes percebidos pelos sentidos não oferecem possibilidade de chegar à um conhecimento 2
verdadeiro 1. Bem como, consideravam o número como um arquétipo independente dos sentidos. As vertentes que classificam o conhecimento de acordo com essas premissas geralmente tendem a se estruturar partindo da physis que opera por sobre sombras das ideias, passando pela matemática que lida com estruturas abstraídas da physis chegando à dialética, nível do conhecimento no qual a mente passa de ideia a ideia, sem a interferência dos níveis da physis. A outra linha filosófica que influenciou a demarcação do conhecimento medieval foi a aristotélica. Para tal vertente, a observação dos fenômenos é a que pode levar ao conhecimento verdadeiro. Nesse contexto, a matemática é colocada como uma das ciências especulativas e a música concebida como uma ciência que é formada por um componente físico (physis) e um componente matemático. Esse contexto é de suma importância para a obra de Boécio e para sua demarcação da posição da música em meio ao conhecimento humano. As divisões do conhecimento apresentadas por Boécio variam ao longo de sua vida, porém recebem forte influência do pensamento aristotélico. Há algumas divergências entre as divisões do conhecimento apresentadas em seus comentários no prefácio de Isagoge, no seu tratado teológico De Trinitate e no De institutione musica, sendo este o mais conhecido e citado pelos musicólogos. Porém, de forma resumida, Boécio divide o conhecimento em ciências teóricas ou especulativas e ciências práticas ou ativas. As ciências especulativas são concebidas também em três níveis de ascese sendo a philosophia theologica independente da matéria, a intelligibilia abstraída da matéria, mas ainda dependente dela e a naturalis dependente e inseparável da matéria. No contexto de Boécio e mesmo anterior a ele, a música apresenta um problema de enquadramento. Seria a música um domínio matemático ou seria a música um domínio da physis. No caso de Boécio a música estaria no domínio da intelligibilia ou no domínio da naturalis? Devido à influência do pensamento platônico-pitagórico, a música era geralmente considerada pelos teóricos como a ciência das proporções, muitas vezes concebida como a aplicação das proporções numéricas. Porém, é no De institutione musica que Boécio discute a música de forma a unir as influências platônicas às aristotélicas. 1 É interessante notar como essa premissa encontra-se presente em inúmeras tendências musicológicas posteriores à idade moderna, inclusive nas cognitivistas do início do século XX, fortemente criticadas pelos cientistas cognitivos de linhagem fenomenológica dos anos de 1950 e 1960. 3
In De institutione musica Boethis tried to balance the views of Plato and the Stoics vs. Aristotle with respect to the relationship between number and musical sound. He seems to endorse the Aristotelian empirical position that sense perception can provide the basis for intellectual abstraction: the whole origin of this discipline is taken from sense of hearing (Dyer, 2007, p. 12) Tal pensamento é esclarecedor no que se refere à uma visão mais aristotélica da música, porém Boécio adverte que não devemos conceder todo o julgamento aos sentidos. consonance, which governs all setting out of pitches, cannot be made without sound; sound is not produced without some pulsation and percussion; and pulsation and percussion cannot exist by any means unless motion precede them. (Boethius, 1.3-189) A citação acima demonstra como Boécio passa do conceito de consonância - uma entidade do pensamento abstrato - para os níveis da physis inaugurando uma concepção de música ambivalente entre o pensamento abstrato e os conteúdos perceptuais obtidos pela especulação e observação. Também é importante ressaltar que há uma divisão tripartida entre os diferentes níveis de abordagem do conhecimento musical, o que será importante para entendermos como Boécio concebe a classificação do conhecimento musical. Boécio divide a música em Música mundana (ou cósmica), música humana e música instrumental. Cada divisão é por sua vez subdividida em três. A música mundana ou cósmica é aquela que é a) observada no paraíso; b) observada na combinação dos elementos e c) na diversidade das estações. Quando a música mundana penetra em nós mesmos passamos para o domínio da música humana: a) aquela que unifica as unidades incorpóreas da razão com o corpo que cuidadosamente equilibra as frequências agudas e graves para produzir consonâncias; b) outras que unem as partes da alma e é composta do racional e do irracional e c) àquela que mescla as partes do corpo e as coloca em ordem. E quando tal conhecimento é aplicado no mundo físico estamos no domínio da música instrumental: a) governada pelas tensões das cordas; b) pelos sopros e ativadas pela água e c) por certos tipos de percussão. Podemos perceber que tanto no nível mais externo da classificação quanto em suas subdivisões uma ideia de ascese ao domínio mais abstrato. 4
3 Conclusões A partir dessa breve revisão da classificação da música de Boécio, pudemos verificar como uma questão tão atual e premente dentro da musicologia contemporânea já estava postulada de forma esclarecedora. O interessante da abordagem de Boécio é a proposição de uma organicidade entre o pensamento musical abstrato e a especulação apoiada na escuta. Como apresentamos no início deste texto, a musicologia moderna tem discutido amplamente como encontrar caminhos para superar as abordagens estruturalistas e as idealistas que permeiam a maior parte de sua prática e a visão apresentada por Boécio pode ser inspiradora quando trazida para a atualidade, nos relembrando que esse problema metodológico não nos é exclusivo. Parafraseando Schönberg em seu Tratado de Harmonia podemos afirmar que: Não somos nós os primeiros a pensar! REFERÊNCIAS BOETHIUS. De institutione musica. ed. Friedlein, 1966. DYER, J. The place of musica in medieval classifications of knowledge. The Journal of Musicology, 24(1):3 71, 2007. NATTIEZ, J. Music and discourse: Toward a semiology of music. Princeton University Press, New Jersey, 1990. 5