REPRESENTAÇÃO, TRABALHO E IDENTIDADE SOCIAL: ANÁLISE ISOTÓPICA DE O PADEIRO DE RUBEM BRAGA REPRESENTATION, WORK AND SOCIAL IDENTITY: ISOTOPIC ANALYSIS OF O PADEIRO BY RUBEM BRAGA Cláudio Márcio do Carmo* Resumo O presente artigo traz uma análise da relação entre representação, trabalho e construção identitária no texto O padeiro, de Rubem Braga. Parte-se do pressuposto que, a partir do texto, visto como o local onde se materializam discursos, é possível analisar os processos de representação nele contidos numa perspectiva sociocultural. A abordagem adotada será a da análise do discurso de vertente francesa. Palavras-chave: Representação, Trabalho, Identidade Social, Isotopia. Abstract This paper analyzes the relation between social representation, work and identity construction in the text O padeiro written by Rubem Braga. The analysis takes the theoretical assumption that, based on the text, seen as a site where the discourses are materialized, it s possible to analyze the representation processes within it in a sociocultural perspective. The approach to be used will be the French Discourse Analysis. Key words: Representation, Work, Social Identity, Isotope. 1 Introdução Neste artigo, pretende-se fazer uma análise isotópica dos processos de representação do trabalho e de identidade social do trabalhador na crônica O padeiro, de Rubem Braga, fundamentado na Análise do Discurso de vertente francesa (AD). Dentro de um discurso sobre o trabalho, identidades sociais diferentes são construídas num jogo
interdiscursivo e polifônico que pode ser percebido na articulação entre pressupostos e subentendidos, entre enunciado e enunciação. Essa articulação cria um ambiente indicador de posições discursivas diferentes calcadas num processo valorativo de profissões que demonstram a existência de uma idéia de subalternidade, marcada pela invisibilidade de algumas delas. Para análise, o conceito de discurso que tomaremos como referência será o de Fiorin (1990), que o coloca como uma unidade do plano de conteúdo que deverá unir-se a um plano de expressão para que possa se manifestar. Ou seja, a razão para o uso dessa definição justifica-se pela viabilização de uma análise textual abarcando o enunciado e a enunciação, lugar em que dada visão de mundo se materializa. Quanto ao conceito de representação social, o referencial teórico a ser usado será Moscovici e Nemeth (1974) e Mazzotti (2002); Pêcheux (1990, 1999) e Orlandi (2000), no que se refere às condições de produção do discurso; Bakhtin (1997) e Benveniste (1989), no que se refere à enunciação e a seu aparelho formal; e Bakhtin (1997), Ducrot (1987) e Meyer (1992), no que se refere à polifonia e/ou às relações de poder estabelecidas intra e interdiscursivamente no texto, especialmente a partir de pressupostos e subentendidos. O texto para análise foi escolhido pela imbricação interdiscursiva que forma um pano de fundo capaz de gerar uma crítica sociocultural relacionada ao trabalho, indicando jogos valorativos e de poder nele embutidas e a ele ligadas. 2 Fundamentação Teórica Da atribuição de significados ao discurso e da compreensão dos enunciados apresentados, dependem tanto a comunicação quanto a compreensão do uso da linguagem e de seus mecanismos, já que é por meio dela que trocamos experiências (embora nem sempre só pela linguagem verbal). Muitas vezes, a compreensão de um enunciado torna-se difícil por causa da teia relacional a que ele está ligado e aos diferentes contextos em que pode ser proferido, conferindo-lhe diferentes possibilidades interpretativas. As distinções entre os sentidos construídos pelos discursos passam, também, pelas noções de pressupostos e subentendidos conforme concepção de Oswald Ducrot, para o qual o sentido dos discursos sempre abarca, na sua descrição, um componente semântico e um componente retórico. O primeiro um componente lingüístico atribuiria a cada enunciado, independentemente de qualquer contexto, uma determinada significação e o segundo componente retórico explicaria que, considerando a significação A' ligada a A e as circunstâncias X nas quais A é produzido, poderíamos prever a significação efetiva de A na
situação X (Ducrot, 1987, p. 15). Isso significa que o autor indica um caminho de análise, no campo da semântica, das estratégias de representação e compreensão de discursos que se relacionam em termos de pressupostos e subentendidos. Nesses termos, a linguagem, para que permita a avaliação e a absorção do discurso, deve considerar os distintos contextos envolvidos no seu processo de elaboração. Embora Ducrot estabeleça uma distinção entre pressupostos e subentendidos no discurso, nem sempre é possível ou fácil distingui-los assim de maneira tão evidente, pois há um imbricamento discursivo, cuja hibridez constitui um importante componente para a produção das relações interdiscursivas. Nas obras do autor, quando se apresenta a diferenciação entre pressupostos e subentendidos, os enunciados trazem sempre uma separação clara. Para o enunciado Jacques continua fumando, Ducrot (1987) destaca que, se continua fumando, pressupõe-se que Jacques fumava antes e subentende-se que ele fuma atualmente. Acreditamos também que se poderia afirmar que está subentendido um desleixo com relação à própria saúde, uma crítica ou descrença com relação à posição assumida por Jacques frente ao tabagismo, ou mesmo a dificuldade para concretizar o desejo de parar de fumar. De acordo com Meyer (1992), a pretensão de Ducrot seria "mostrar como é que a linguagem natural marca uma conclusão, a sugere, a implica, a suscita, a pressupõe, sem dizer expressis verbis" (p. 122). E observa que, em qualquer sentido que possa ser considerado literal, haverá, pelo menos, uma significação implícita que permanecerá. Sobre a noção de literal, o autor explicita: literal é, aliás, produzido em função deste sentido implícito, e não independentemente, como se este estivesse 'a mais'" (p. 123). Embora haja dificuldade para sua distinção, tais conceitos são importantes para análise da relação entre o dito e o não dito, principalmente em AD. Para Orlandi (2000), se as novas maneiras de ler, inauguradas pelo dispositivo teórico da análise de discurso, nos indicam que o dizer tem relação com o não dizer, isto deve ser acolhido metodologicamente e praticado na análise (p. 82). Percebe-se, portanto, que a linguagem em si é dialógica e o contexto de produção dos enunciados é decisivo para sua compreensão. Para Bakhtin (1997), por meio da enunciação, a interação verbal é realizada como fenômeno social, ou seja, a fala [entenda-se, de forma ampla, produção discursiva] está indissoluvelmente ligada às condições de comunicação, que, por sua vez, estão ligadas às estruturas sociais (p. 14). O autor compreende o processo de fala como um processo amplo da atividade dialógica da linguagem tanto nas estruturas reconhecíveis ao produtor quanto na relação com o social, que provém das
condições de produção do discurso. Nas palavras do autor: A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório. A situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação (Bakhtin, 1997, p. 125). Esse parece ser o principal motivo para que Fiorin (1990, p. 30) distinga que o enunciado não é uma frase, mas um todo de significação, que não pode ser reduzido ao conceito tradicional do primeiro termo. Em outras palavras, a significação nasce da relação entre o enunciado e a enunciação. Por isso, na visão de Benveniste (1989), quando se coloca a língua em funcionamento, está-se constituindo um ato individual de sua utilização. Para ele, o enunciado é um ato individual que pressupõe um sujeito enunciador/locutor como um produtor do discurso que, por sua vez, deve pressupor o outro, o enunciatário/alocutário. Ou seja, para cada sujeito enunciador ou locutor, teremos, no mínimo, um enunciatário ou um alocutário postulado. Isso significa que o enunciado deve constituir um sentido, como uma marca da realidade, e uma significação, isto é, deve dizer alguma coisa a alguém, num ato de comunicação social. Por fim, Benveniste (1989) estabelece, como componentes, as condições de verdade (sentido), afirmando que o locutor presume que o alocutário é capaz de admitir a existência das condições de verdade (p. 14). A partir dessas condições, é preenchido um conjunto de expectativas que dá corpo ao processo de significação do discurso, razão pela qual a acentuação da relação discursiva com o parceiro real, imaginado, individual ou coletivo caracteriza, de modo geral, a enunciação (p. 87). Como expõe Pêcheux (1990, 1999), há condições de produção do discurso, as quais, na interpretação de Orlandi (2000), compreendem, além da memória (tratada como interdiscurso), os sujeitos e a situação discursiva em si. Nas palavras de Pêcheux (1990): O que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações) (p. 82). É dentro dessa abordagem que pretendemos trabalhar a representação social do trabalhador e das relações sociais ligadas ao sistema de produção e valorização do trabalho. Pensar dessa forma é ver não exatamente uma representação, mas perceber que existem representações sociais oriundas no jogo de imagens
estabelecido nessa esfera da sociedade. Para Moscovici e Nemeth (1974): As representações sociais são conjuntos dinâmicos, seu status é o de uma produção de comportamentos e relações com o meio, o de uma ação que modifica uns e outros, e não o de uma reprodução (...), nem o de uma reação a um estímulo exterior determinado. (...) são sistemas que têm uma lógica própria e uma linguagem particular, uma estrutura de implicações que se referem tanto a valores como a conceitos [com] um estilo de discurso próprio. Não as consideramos como opiniões sobre, nem imagens de, mas como teorias, como ciências coletivas suigeneris, destinadas à interpretação e à construção da realidade (p. 48). Analisando essa visão, Mazzotti (2002, p. 17) explica que sujeito e objeto não são funcionalmente distintos, eles formam um conjunto e, por isso, não podem ser dissociados. Ou seja, um objeto não existe por si só, mas, sobretudo, em relação a um sujeito (individual ou coletivo). Nessa perspectiva, a relação sujeito-objeto determina o próprio objeto, mas é importante acrescentar o elemento situacional, contextual, para que, satisfeitas as condições de produção, uma dada realidade possa ser construída e legitimada. Na concepção de Mazzotti, ao formar sua representação de um objeto, o sujeito, de certa forma, o constitui, o reconstrói em seu sistema cognitivo, de modo a adequá-lo ao seu sistema de valores, o qual, por sua vez, depende de sua sócio-história e do contexto social e ideológico no qual está inserido. Da mesma forma, esse pensamento também indica uma forma de desafiar o que está pronto, de maneira a tornar possível o desafio de uma realidade tida como verdadeira e consensual. 3 Trabalho, Identidade Social e Crítica Sociocultural: uma análise isotópica de O padeiro, de Rubem Braga Na tentativa de ilustrar o que está sendo (pro)posto na fundamentação teórica, será feita uma análise geral, focalizando a relação entre enunciado e enunciação, a partir do que é possível captar em torno do que é posto, pressuposto e subentendido no texto. De Rubem Braga (1913-1990) cronista, poeta, repórter, tradutor e crítico de artes plásticas o texto escolhido para análise é a crônica O padeiro que focaliza a realidade do trabalhador que, nos bastidores da sociedade, ajuda a construí-la e constituí-la, mas sem obter o reconhecimento de seu trabalho. No texto, Rubem Braga questiona a falta de identidade daqueles que têm profissões taxadas como simples,
que muitas vezes trabalham à noite para o conforto de muitos que recebem no outro dia, logo cedo, o produto de seu trabalho e que, sem dar créditos à importância do trabalho como produto final e ao trabalhador, se conformam com essa situação de invisibilidade. Temos, então, constituindo a isotopia do texto, dois percursos semânticos principais: o do trabalho (englobando as relações de trabalho e poder) e o da identidade. O primeiro é mostrado pelos sememas e expressões relacionados ao ofício do padeiro e do jornalista, bem como pelas suas relações de trabalho (pão costumeiro, pão dormido, greve, patrões, trabalho noturno, café da manhã, governo, padeiro(s), colega, redação de jornal, oficina, primeiros exemplares rodados, jornal ainda quentinho da máquina, pão saído do forno, reportagens, notas, crônica, artigo) e o último representado muitas vezes não por palavras, mas por situações que indicam negação de valor do trabalhador padeiro e do trabalhador jornalista (Não é ninguém, é o padeiro!, não é ninguém, não senhora, é o padeiro. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante.). O texto constrói-se também a partir da contradição entre um discurso de valorização do trabalhador e outro que não o percebe, convergindo para uma desvalorização feita não só pela sociedade como um todo, mas, sobretudo, por uma desvalorização interna ao grupo dos próprios trabalhadores, refletindo o que um pensa do outro e o que cada um pensa de si, bem como da situação em relação ao seu ofício e à sua identidade, caracterizando um jogo de imagens, conforme visão de Pêcheux (1990): (1) Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo? Então você não é ninguém? Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: não é ninguém, não senhora, é o padeiro. Assim ficara sabendo que não era ninguém (2) Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. (3) Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno. Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. Como o leitor empírico é sempre uma parcela postulada pelo enunciador/locutor por isso, enunciatário ou alocutário postulado cujas especificidades não podem ser precisadas, elas devem ser apontadas e
verificadas por meio de hipóteses formuladas com base nas relações interdiscursivas projetadas no texto. Nesse sentido, é lícito afirmar que esse leitor terá que acionar uma série de conhecimentos e identificar aspectos intradiscursivos que, por sua vez, remetem às questões interdiscursivas e reconstituem situações que se relacionam em torno da semântica e do universo do trabalho e da identidade, na forma de subentendidos, tais como: a) saber que em determinada época o padeiro entregava o pão na porta dos consumidores; b) saber que existem profissões mais e profissões menos reconhecidas socialmente; c) perceber que o padeiro está reproduzindo um discurso coletivo; d) saber que o objetivo maior do texto é criticar as relações excludentes e preconceituosas existentes no universo do trabalho; e) conhecer a dimensão política de uma greve como meio de aquisição e reivindicação de direitos, entre outros. O episódio do padeiro, principal semema utilizado para sustentação do percurso semântico do trabalho, é apenas um ponto de referência por meio do qual o autor desenvolve toda sua crítica sociocultural ao sistema de valoração do trabalho e ao preconceito que se mantém com relação a inúmeras profissões postas à margem, sendo, muitas vezes, inferiorizadas, desvalorizadas e invisíveis. No primeiro parágrafo, isso se mostra claro quando o narrador-personagem da crônica, representado pela primeira pessoa do singular, coloca uma seqüência de ações costumeiras (levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café, abro a porta do apartamento mas não encontro o pão costumeiro) (grifo nosso), seguidas de um ponto que ajuda a desenrolar todo o núcleo temático do texto: o fato de não ter pão no armário. Devemos notar que esse fato é iniciado pela conjunção coordenativa adversativa "mas" que mostra duas questões distintas: todos os dias há pão no armário ("pão costumeiro") e não se dá importância a quem faz o pão, mas apenas ao fato de tê-lo à mão. O que pode corroborar essa análise é a pouca importância dada ao personagem social padeiro, pois vem à lembrança de forma vaga ter lido algo a respeito de uma greve de padeiros chamada "greve do pão dormido" que, na verdade, é um lock-out, greve de patrões, que suspenderam o trabalho noturno" e "acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo". Existe um teor crítico na própria inversão no caso dos movimentos grevistas. Em vez de termos uma greve da classe prejudicada, temos uma greve de patrões. Quando se completa o pensamento dizendo que tomar café com pão dormido não é tão ruim assim, mostra-se que o que é importante é ter o pão, pois quem o faz não tem
importância, retornando à invisibilidade do padeiro. Nesse ponto do texto, o personagem se lembra de um padeiro que conhecera e tinha uma forma peculiar de entregar o pão sem incomodar os moradores: apertava a campainha e avisava: não era ninguém, é o padeiro. Aqui a crítica se faz clara. O padeiro que é colocado como ínfimo, invisível pela sociedade tem consciência de que seu trabalho não é valorizado, e mostra uma outra faceta do percurso semântico da identidade: a alienação. Sarcasticamente, quando o personagem pergunta a esse padeiro "como tivera a idéia de gritar aquilo?, ele responde sorrindo (grifo nosso), uma vez que aprendera de ouvido, isto é, de tanto ouvir durante as entregas do pão as pessoas dizerem que não era ninguém, era o padeiro. E o autor mostra que não é apenas a elite que pensa isso, mas os outros trabalhadores também, pois a empregada dizia que não era ninguém. O grau de ironia aumenta e chega ao ápice no momento em que o narrador-personagem diz que "ele contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu sorrindo" o que mostra a falta de identidade do personagem como trabalhador, sua alienação diante de tudo, especialmente diante de sua representação social ou, conforme crítica do texto, diante da falta dela. A partir daí, o autor passa a mostrar a realidade de outro trabalhador noturno: o jornalista, que muitas das vezes trabalha à noite para que, logo cedo, o jornal esteja em nossa casa e nas bancas. Enquanto a passagem (1) supracitada tenta construir a identidade do padeiro, as passagens (2) e (3) o tentam com relação ao jornalista que, a priori, havia mostrado mais identidade questionando a frase proferida pelo padeiro Não é ninguém, é o padeiro. Ocorre, então, um contraste de idéias que só se desfaz pela coerência interna do texto, pois ainda permanece uma identificação entre o narrador-personagem e o padeiro, o que pode ser comprovado pela comparação entre os temas figurativos que são o produto do trabalho dos dois: os primeiros exemplares do jornal e o pão ("o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno"). O narrador alude à importância que ele se dava na época em que ainda era rapaz e tinha a oportunidade de escrever e, às vezes, até assinar algo que escrevia e publicava no jornal. Mas aprende uma lição de humildade com o padeiro que era "útil" e "alegre". Todo esse penúltimo parágrafo convida o leitor a pensar sobre o valor social do trabalho não só dentro da sociedade, mas no nível interpessoal ele questiona se somos vistos, se não somos ninguém, ou se apenas acreditamos que somos alguém e sorrimos enquanto estamos insertos num universo de pouca percepção crítica do que realmente representamos para a engrenagem
maior que chamamos de nação. Apresentando uma crítica à sociedade e à cultura da invisibilidade quanto à importância do trabalhador especialmente o trabalhador de profissões consideradas simplórias e pouco importantes ou visíveis Rubem Braga produz um texto com um tipo de linguagem de fácil acesso, praticamente na forma de um bate-papo despretensioso, uma narrativa corriqueira, em cuja articulação textual, sobretudo na forma de pressupostos e subentendidos, mostra que o não dito carrega variadas possibilidades representativas recuperáveis no que é dito, as quais valorizam a produção/significação interdiscursiva que vai além do texto, do tempo e do espaço de sua criação. O autor, beirando o realismo, já que partimos do pressuposto que qualquer texto é sempre uma representação da realidade, mescla pontos de vista e representações conflituosas no campo do trabalho, usando de um tom de humor e ironia que faz da realidade social sua fonte de elementos para uma crítica sociocultural das relações de trabalho no Brasil. Dessa maneira, o trabalho simples e tudo referente a ele que é esquecido ou tem pouca visibilidade criam o pano de fundo ideal para uma reflexão sobre os elementos da vida cotidiana, das representações e identidades calcadas em ideologias e posicionamentos que apenas (re)produzem uma visão assimétrica das relações sociais de modo geral. 4 Considerações Finais Nesse estudo de caso, procuramos mostrar a dimensão crítica do texto, analisando enunciado e enunciação, buscando frisar na organização textual e na seleção de lexical uma espécie de feixe de estratégias colocadas em funcionamento, visando a fazer passar idéias, questionar um estado de coisas, a postura acrítica diante do universo do trabalho e das identidades a ele pertencentes. Se como crítica à sociedade pode-se perceber uma visão alienada por parte das pessoas, o mesmo não pode ser dito quanto à posição assumida pelo sujeito enunciador. O jogo de imagens e a tessitura do enunciado evidenciaram uma postura interdiscursiva crítica de uma realidade nas relações de trabalho e na visão de mundo com relação à identidade do trabalhador visto como uma peça importante na sociedade. O discurso e as formas de representação dos trabalhadores padeiro e jornalista se consolidam em interrelação uns com os outros e em relação às demais profissões, separadas, mormente, em termos de centrais ou importantes e periféricas/marginais ou de pouca ou nenhuma importância social, refletindo um mundo de juízos de valor e crença consensual numa dissensão carente de revisão e reflexão crítica.
Percebemos, embutidas nos conflitos trazidos interdiscursivamente na forma de pressupostos e subentendidos, relações de poder naturalizadas num processo de alienação que parte da falta do senso crítico ligada à forma como são representadas, reproduzidas e mantidas as identidades dos trabalhadores, bem como da forma como aceitam sua condição social. Conforme exposto, o texto possui um grau de ironia que, pela força da ambigüidade, ambivalência e polifonia, vai ao encontro de uma posição crítica frente às relações interpessoais no universo do trabalho que muito pode contribuir para a desnaturalização de uma visão preconceituosa aceita de forma generalizada numa sociedade que só se constrói pelo trabalho conjunto de cada trabalhador. Referências BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. Benveniste, E. O aparelho formal da enunciação. In:. Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes, 1989. p. 81-90. DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. 2 ed. São Paulo: Ática, 1990. MAZZOTTI, A. J. A. A abordagem estrutural das representações sociais. Psicologia da Educação, São Paulo: PUC/SP, n. 14-15, p. 17-37, 2002. Meyer, M. Lógica, linguagem e argumentação. Lisboa: Edições Teorema, 1992. MOSCOVICI, S.; NEMETH, C. Minority influence. In: NEMETH, C. (Org.). Social psychology: classic and contemporary integrations. Chicago: Rand McNally, 1974. p. 217-250. ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2000. Para gostar de ler, Vol I Crônicas. Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. 12. ed. São Paulo: Ática, 1989. v. 1, p. 63-64. Pêcheux, M. Análise automática do discurso. In: Gadet, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1990. p. 61-105.. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999.
Dados do autor: Cláudio Márcio do Carmo * Doutor em Letras: Estudos Lingüísticos Faculdade de Letras/UFMG e Professor Adjunto de Lingüística e Língua Portuguesa UFSJ e Professor do Mestrado em Letras: Teoria Literária e Crítica da Cultura PROMEL/UFSJ Endereço para contato: Universidade Federal de São João del-rei Campus Dom Bosco Praça Dom Helvécio, 74 36301-160 São João del-rei/mg Brasil Endereço eletrônico: claudius@ufsj.edu.br Data de recebimento: 30 maio 2007 Data de aprovação: 5 set. 2007
ANEXO O Padeiro Rubem Braga Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo. Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo? "Então você não é ninguém?" Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém... Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno. Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!" E assobiava pelas escadas.