A CONTRA-TRANSFERÊNCIA, ANGÚSTIA E O DESEJO DO ANALISTA MARIA FERNANDA GUITA MURAD Lacan é bastante contundente ao afirmar: A angústia... ela não é sem objeto. Contudo, isso não equivale a dizer, tampouco, que a angústia tenha um objeto. Trata-se aqui da presença do a, como objeto causa de desejo, cuja tradução subjetiva é a angústia. Ou seja, o a surge como um objeto externo a qualquer definição possível de objetividade. É da passagem da imagem especular i (a) imagem autenticada pelo Outro - para o duplo que escapa - i (a) imagem do corpo-próprio -, ou seja, quando algo intervém como uma incidência, quando a imagem especular que temos diante de nós, isto é, quando o olhar que aparece no espelho começa a não olhar mais para nós, no momento em que o valor da imagem começa a se modificar, quando deixa surgir a dimensão do nosso próprio olhar, nasce a angústia. Essa incidência de que se trata é a do a. A angústia é, portanto, um sinal da relação do sujeito com o a. A função do a estará presente por todo o campo do sujeito. Para Lacan também a relação transferencial gira em torno de a e é referente a isso que se dá o seu manejo. Quanto à transferência, Lacan a descreve em relação à experiência analítica, dando como base a escolha do objeto amoroso. Faz referência ao objeto primordial, a mãe. Na escolha de objeto, o que ocorre é que este, sendo revestido do investimento erógeno original que existe no a, está no nível da angústia. Por outro lado, há um enquadramento do objeto por uma limitação do campo de interesse da libido em função de sua relação com o objeto primordial, constituindo 1
uma inibição. Portanto, os mecanismos de escolha de objeto vão da inibição à angústia. Na transferência apresenta-se a dimensão sincrônica, onde está incluída, na posição do analista, a função do objeto parcial. Por isso, a relação sincrônica do analisando com o analista acerca da função do objeto parcial deve ser sempre avaliada para que o analista não permaneça nesse lugar de objeto parcial para seu analisando. Portanto, a função da análise, como campo do objeto parcial é fundamental. Lacan, contudo, frisa que a transferência não é simplesmente aquilo que repete um trauma antigo, mas um amor presente no real. É em função deste amor, real, que se institui o que é a questão central da transferência, o que o sujeito formula a si mesmo a respeito do que lhe falta, pois é com essa falta que ele ama. O amor é dar o que não se tem nos diz Lacan. Lacan define o luto para explicar castração. Conforme descreve, só nos enlutamos por pessoas que podemos dizer eu era a sua falta e diante das quais não sabíamos a função de estar no lugar dessa falta. O que damos no amor é essencialmente aquilo que não temos, e quando isso que não temos volta para nós, há uma regressão e, ao mesmo tempo, uma revelação daquilo em que faltamos para com essa pessoa, para representar essa falta. Lacan continua dizendo que pelo fato do caráter irredutível do desconhecimento concernente à falta, esse desconhecimento se inverte, ou seja, a função que tínhamos de ser sua falta, cremos agora poder traduzi-la em havermos faltado para com ela quando era justamente nisso que lhe éramos indispensáveis. O autor, fazendo referência a alguns artigos sobre a transferência e a contra transferência, cita um trabalho de Margaret Little, para destacar a função do corte na experiência analítica. Lacan conceitua a castração como simbólica e ressalta que esta aparecerá no decorrer da análise, uma vez que a relação com o Outro é fundamental nela. Sobre esse texto, R A Resposta Total do Analista, Lacan evidencia a angústia do analista como a mola propulsora da transferência, o que permite ao paciente transferir para a relação com o analista aquilo que o constituirá como objeto parcial na relação sincrônica com ele. Neste 2
texto, Margaret Little descreve a contratransferência quando o analista experimenta sentimentos durante a análise, quando lhe escapa coisas de seu próprio inconsciente e devendo estar numa posição de inteira responsabilidade. Contudo, nesse contexto, a própria autora se defronta com uma situação peculiar que chama a sua atenção. Esta relata a análise de uma paciente, que sofria de cleptomania, onde repetidas interpretações atuais da transferência foram feitas, sem que nenhuma delas surtisse algum efeito. Segundo Lacan, sem que se chegasse perto das defesas da paciente. Para a própria autora, a análise só começou a andar quando sua paciente trouxe para a sessão o luto pela morte de uma amiga, um luto que nunca tivera feito por ninguém. A autora relata ter feito uma série de interpretações clássicas sem resultado, mas observa que algo começou se desencadear quando ela confessa literalmente à paciente que estava perdendo o seu latim e que vê-la daquele jeito a entristecia. Ela enfatiza, então, que foi o caráter vivo de um sentimento que restituiu movimento à análise. Lacan, então, irá ressaltar que o que essa intervenção revelou para a paciente foi a angústia da analista. Lacan define a contratransferência como sendo referente à angústia. O que atinge o sujeito e que lhe permite transferir para a relação com a analista a relação de que se trata esse luto, deve-se ao aparecimento de haver uma pessoa para qual a paciente pode ser uma falta, ou seja, a contratransferência do analista traduzida na angústia do analista. Nesse ponto ficou evidenciado o lugar da falta. Lacan continua afirmando que esse enxerto, a angústia do analista, permitiu ao sujeito apreender-se como falta, o que a paciente nunca pudera fazer na relação com seus pais. Essa interpretação, a angústia, acertou o alvo. Segundo Lacan, se introduziu, por uma via involuntária, o que deve sempre entrar em questão na análise, ou seja, a função do corte. Para Lacan o fator decisivo do progresso da análise prendeu-se à função do corte. Esta paciente nunca pode representar alguma coisa que pudesse faltar a seu pai. Quanto à mãe, nunca fez dessa criança algo que pudesse ter uma relação causal em relação ao seu próprio desejo. O furto representa: mostro-lhe um objeto que peguei à força, porque em algum lugar há um outro objeto, o meu, o a, que mereceria ser considerado, mereceria que o deixassem 3
isolar-se por um instante. Trata-se do limite em que se instaura o lugar da falta. Para Lacan a análise é uma experiência que inclui em si a experiência de levar a falta como tal. Conforme o autor, o termo contratransferência visa à participação do analista, e sendo assim, devemos falar do desejo do analista. Para isso, é necessário um posicionamento sobre o que é o desejo. Lacan irá dizer, antes de tudo, que o desejo é a lei. O que constitui a substância da lei é o desejo pela mãe, e o que normatiza o próprio desejo, que o situa como desejo, é a chamada lei da proibição do incesto. Nesse contexto, Lacan define o desejo em relação à angústia: Se o eu é o lugar do sinal, não é para o eu que o sinal é dado... Se isso se acende no nível do eu, é para que o sujeito seja avisado de alguma coisa, a saber, de um desejo, isto é, de uma demanda que não concerne à necessidade alguma, que não concerne a outra coisa senão meu próprio ser, isto é, que me questiona. Digamos que ele me anula. Em princípio não se dirige a mim como presente, dirige-se a mim, se vocês quiserem, como esperado, e, muito mais ainda como perdido. Ele solicita minha perda, para que o Outro se encontre aí. Isso é que é a angústia. (Lacan, Seminário, livro 10, A Angústia, p.169) Sobre o desejo do analista, o autor afirmará que a função do desejo deve ser procurada no plano do amor. O desejo é um pivô essencial do amor, contudo, o desejo não diz respeito ao objeto amado. Afirma, ainda, que o analista não está imune a sentimentos que o analisando possa lhe provocar, inclusive quanto mais analisado for o analista mais estará passível de ser amoroso ou tomado de aversão para com o analisando. Portanto, para saber sobre o desejo do analista, é necessário partir da experiência do amor, e, então, situar a topologia em que essa transferência pode se inscrever. Lacan cita um texto de Lucia Tower, onde descreve como isto ocorre. A analista refere o sucesso terapêutico de um paciente ao fato da existência de uma resposta contratransferencial ao inconsciente do paciente. 4
Segundo a autora, deste modo o paciente adquiriu confiança em seus poderes de influenciá-la e da disponibilidade da analista em ser influenciada ou dominada por ele. Só a partir deste momento, este paciente permitiu que ela penetrasse em suas defesas masoquistas e lhe deu acesso ao sadismo inconsciente profundo em seu superego, tornando possível voltá-lo contra ela. A autora segue dizendo que não acredita que sem a experiência percebida pelo inconsciente de seu paciente, de ter sido de fato capaz de dobrá-la afetivamente para suas necessidades, esse paciente teria ido às fontes mais profundas de sua neurose. Esse sujeito, conforme Lacan, colocou a analista no plano do amor e a isso se deve a possibilidade da análise. Em Lacan, vemos também que a transferência deve ser entendida do lugar do a, o objeto parcial, o ágalma, na relação de desejo na medida em que ela própria é determinada no interior da relação de amor. Essa topologia nos permite dizer que mesmo que o sujeito não o saiba, apenas pela suposição objetiva da situação analítica, já é no outro que o a, o ágalma, funciona. Este é um efeito irredutível da situação de transferência. Assim descreve Lacan: Pelo simples fato de haver transferência, estamos implicados na posição de ser aquele que contém o ágalma, o objeto fundamental de que se trata na análise do sujeito, como ligado, condicionado por essa relação de vacilação do sujeito que caracterizamos como o que constitui a fantasia fundamental, como o que instaura o lugar onde o sujeito pode se fixar como desejo. Este é um efeito legítimo da transferência.(lacan, Seminário, Livro 8, a transferência, p.194) Para Lacan o desejo do analista, e também sua responsabilidade, consistem na percepção do seguinte fenômeno. Na situação analítica o sujeito é introduzido como digno de interesse e amor, na condição de éroménos (o amado). É para ele que o analista esta ali. Este é o efeito manifesto. Mas existe um efeito latente, ligado a sua não ciência do seu objeto de desejo de um modo latente, 5
objetivo e estrutural. Este objeto estará no Outro, virtualmente constituído como érastès (o amante). Por isso, a substituição de éromémos por érastès, existe enquanto metáfora e constitui o fenômeno do amor. Este é o amor de transferência. É se percebendo nesse campo que o analista deve proceder como lugar do objeto causa de desejo. Concluindo, Lacan, em relação à experiência analítica, diz que o analista deve sempre por em dúvida aquilo que compreende, e ter consciência de que aquilo que ele quer alcançar é o que não compreende. É na medida em que o analista sabe em que consiste o desejo, que ele pode ter em si desse desejo, o objeto. Sendo assim, ao pensarmos o entrelaçamento dos seguintes conceitos, a função desejo do analista, a angústia do analista como promovedora do corte e a transferência no plano do amor, penso que o dito de Lacan, amar é dar o que não se tem, poderia nos dizer do lugar do analista. Vimos que o desejo do analista deve ser pensado no plano do amor. Sabemos que como sujeito do desejo, portador de uma falta, o analista é irremediavelmente incapaz de não realizar também uma transferência para com o seu analisando. Contudo, na relação transferencial o analista não deverá permanecer no lugar de objeto parcial para o analisando. Essa hipótese tornaria a análise inviável. Ao mesmo tempo, a angústia do analista é o que propulsiona a transferência, tem função de corte, e parece implicar o analista enquanto sujeito. Poderíamos pensar, então, que ao aceder ao lugar de objeto causa de desejo, lugar do a, se abstendo enquanto sujeito, o analista estaria, exercendo esse dito. Se amar é dar o que não se tem e isso, sobre a castração, Lacan formula como deixar de ser o falo para ter o falo, então podemos pensar o desejo do analista como o deixar de ocupar o lugar de objeto parcial para oferecer ao paciente, na transferência, o lugar de objeto a. Mas, além disso, o lugar do analista também pode ser ocupado pela angústia do analista, onde o dito lacaniano amar é dar o que não se tem parece consistir no analista oferecer ao paciente, na contratransferência, o seu próprio a, a sua falta, sob a forma de angústia. 6
Referências bibliográficas: 1- FREUD, S (1926[1925]) Inibições, sintomas e angústia, ESB, vol XX. 2- LACAN (1960-1961) O SEMINÁRIO, a transferência, Livro 8, JZ editor, RJ. 3- LACAN (1962-1963) O SEMINÁRIO, a angústia, Livro 10, JZ editor, RJ. 4- LITTLE, M (1956) R A Resposta Total do Analista, Jornal Internacional de Psicanálise, 32. 5- TOWER, L E. (1956) Contratransferência. The Journal of the American Psycho-Analytic Association, vol IV. A responsabilidade dos artigos assinados é dos seus autores. 7