A voz, o ensaio, o outro 1 Consuelo Lins Se Chris Marker é o primeiro cineasta a fazer uma ficção quase inteiramente de fotografias - La Jetée (1962) -, Agnès Varda é quem, um ano depois, retoma esse mesmo dispositivo formal deslocando-o para o campo do documentário. Convidada pelo Instituto Cubano da Arte e da Indústria Cinematográficas (ICAIC) para passar alguns meses em Cuba, Varda leva consigo duas máquinas fotográficas e o projeto de fazer um filme a partir das imagens capturadas na ilha 2. Das três mil fotos obtidas, 1500 se transformam em Salut les cubains (1963), uma espécie de filme-carta endereçada aos cubanos e ao mundo por uma viajante seduzida por tudo que viu. De imediato o que surpreende nessa pequena obra prima do documentário moderno é o modo como Varda extrai cinema de imagens paradas através de uma montagem que nos faz ver o movimento, mostrando já no início dos anos 60 o quanto o cinema tem a ganhar associando-se a outros procedimentos técnicos. Nas duas mais belas seqüências do filme, o ritmo da trilha sonora e pequenas fusões nas imagens restituem ao filme o que a imagem parada poderia lhe tirar. Na primeira, Beni Moré dança e canta uma música inspirada nos cantos camponeses. Na segunda, a cineasta Sarita Gomez e outros técnicos do ICAIC dançam o cha-cha-cha. É como se essas seqüências tão cheias de graça contivessem, ainda intocados por tudo o que aconteceu depois, o potencial de transformação trazido pela revolução cubana no início dos anos 60, a possibilidade de outras formas de vida e política, a fabricação de um socialismo afro-cubano (Varda) inédito, distante de todos os modelos corroídos da esquerda de então. 1 Texto publicado no Catalogo da Retrospectiva de Agnès Varda. RJ, SP, Brasília: CCBB, setembro, 2006. 2 Varda já era conhecida pela realização do longa-metragem Cléo de 5 a 7 e foi recomendada ao ICAIC por Chris Marker, que realizou Cuba si em 1960.
O que também surpreende em Salut les cubains são as intervenções sonoras de Varda, as primeiras da sua trajetória fílmica. Ela divide os comentários em off nada convencionais do filme com Michel Piccoli e pontua com certas frases a narração do ator. Saúdo os revolucionários que enjoaram diz, quando Piccoli conta a travessia dos guerrilheiros do México à Cuba em um barco que enfrentou todo tipo de riscos; mais a frente, retoma a palavra: saúdo os revolucionários líricos, e ainda: saúdo os revolucionários românticos. Nos curtas iniciais da diretora - O saisons ô châteaux (1957) e Du côté de la côte (1958) -, o comentário é realizado por outras pessoas e mantém características bastante clássicas, embora os textos não sejam didáticos e já tenham um certo humor. L Opéra-Mouffe (1958) é um pequeno musical sobre a rua Mouffetard sem narração. Trata-se, segundo a própria diretora, do seu primeiro documentário subjetivo, mas o filme é bem mais sobre as pessoas que circulam por essa rua de Paris do que sobre Varda propriamente, embora ela aparece grávida e nua no início do filme. O filme tem como sub-título caderno de anotações de uma mulher grávida em 1958. Para a cineasta, a subjetividade no documentário está muito mais ligada a uma certa maneira de olhar o mundo em um determinado momento da história do que às histórias de vida do diretor. Se hoje a narração em off feita por uma mulher pode parecer opção banal, é fundamental lembrar que esse procedimento inexistia na tradição do cinema documental. Desde que o documentário tornou-se falado no final dos anos 20, desde que as imagens tornaram-se meras ilustrações de um comentário, que a voz que narra é uma voz masculina, desencarnada, voz de Deus, que tudo vê e tudo sabe. Em Salut les cubains Varda não apenas ousa falar mas expressa no que diz engajamento, afetividade e humor. Reivindica para si o filme, distanciando-se de qualquer objetividade: Estive em Cuba, e trouxe essas imagens desordenadas. Para classificá-las fiz esse filme-homenagem. Características que, somadas às inflexões da sua fala e ao tom da sua voz, contribuíram para renovar,
no campo do documentário, a relação entre imagem e som em favor de associações inauditas do espaço sonoro do cinema com o espaço visual. Essa reinvenção do comentário documental que vemos em Varda inicia-se na verdade já nos anos 50 com Jean Rouch (Moi un noir -1958) e Chris Marker (Lettre de Sibérie 1958). Mesmo antes do advento do som direto que favoreceu tantas mudanças, Rouch inova de forma radicalmente original filmando imagens sem som e sonorizando-as mais tarde com os comentários improvisados de seus personagens. Chris Marker trilha um caminho que André Bazin define, já em 1958, de ensaístico, criando algo que não se parecia com nada do que havia sido feito até então. Eu vos escrevo de um país distante diz Marker no início de Lettre de Sibérie, abrindo um campo de possibilidades para o documentário, que até então desconhecia, ou conhecia mal, inflexões subjetivas, autobiográficas, epistolares. Da mesma forma, Rouch e Marker, e em seguida Varda, trazem para o documentário humor, ironia, paradoxo, contradição, dimensões desprezadas por essa forma de cinema séria e com uma função social a cumprir. Se o cinema direto americano se constitui em oposição à tradição documental abolindo o recurso da narração em off em nome de planos seqüência com som sincrônico, esse novo documentário francês que precede de muito pouco a Nouvelle Vague, e se mistura com ela, toma outros caminhos para salvar senão a França, ao menos o cinema francês 3. Varda está mais próxima do cinema de Marker e realiza ao longo de sua trajetória vários ensaios cinematográficos, essa forma híbrida filiada à literatura, sem regras nem definição possível, mas com o traço específico de misturar experiência de mundo, da vida e de si. Trata-se de um gênero que só existe em casos particulares, com temas, formas e durações variadas. No caso de Varda, o ponto de partida pode ser uma país em processo revolucionário, um tio distante (Uncle Yanco - 1967), os comerciantes da sua rua, uma foto antiga (Ulysse -1982), 3. J. L. Godard in "L'Afrique nous parle de la fin et des moyens - Jean Rouch - Moi un noir" (1959), in Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard. Paris: Cahiers du Cinéma-Editions de l'etoile, 1985, p. 181.
as fotos de outros (Ydessa, les ours et etc 2004), a atividade de catar (Les glaneurs et la glaneuse- 2000)... Ao final de Daguerréotypes (1975), em que filma a lentidão e a paciência do trabalho diário dos artesãos, comerciantes e vendedores vizinhos a sua casa, a cineasta se pergunta se as imagens que realizou são uma reportagem, uma homenagem, um ensaio.... E conclui: Em todo o caso é um filme que eu assino Agnès.... Assim é o tipo de articulação que Varda estabelece entre a sua subjetividade e as coisas e pessoas que filma. Ela constrói dispositivos de filmagem para se liberar de suas histórias pessoais, dos seus dramas, dos seus segredos, e capturar o que surge do seu encontro com o mundo. Não são poucas as vezes que Varda insiste na idéia de que o que lhe interessa são os outros, e quando ela está em questão, quando vemos seus filhos, sua casa, suas mãos, seu corpo, é sempre em relação ao que ela não é, a um fora que lhe seduz e com condições de modifica-la por ser justamente exterior a ela. Essa é a forma que ela inventou para se desprender de si, transformando a si e sua maneira de ver o mundo. Mesmo quando parte de algo que lhe é muito caro, como é o caso da foto tirada por ela em 1954, transformada em dispositivo de filmagem para a realização de Ulysse, em 1982. Ao invés de extrair cinema de muitas imagens fixas, como no filme de Cuba, Varda trabalha agora com apenas uma fotografia, investigando os elementos que compõem essa imagem imóvel: um homem nu de costas olhando o mar, uma criança nua sentada na areia e uma cabra morta. Tal como uma arqueóloga, ela quer decifrar os diferentes mundos que essa foto abriga: Será que eu sei o que me passava pela cabeça há 28 anos ao fazer essa foto? Do que nos lembramos precisamente ao ver uma imagem do passado Trata-se de um filme em que assistimos a ação de tentar alguma coisa e ao mesmo tempo os resultados da tentativa propriamente dita 4. 4 Dois aspectos semânticos do termo ensaio entre vários outros, como lembra Alain Ménil, Entre Utopie et Herésie: quelques remarques à propos de la notion d essai, in Liandrat-Guigues, Suzanne (dir.), in L essai et le cinema, Champ Vallon, 2004, p. 95.
O homem, um egípcio, diretor de arte da revista Elle em 1982, recorda-se de pouca coisa. Não da foto em questão, mas da timidez de posar nu, da desenvoltura de Varda na direção da cena, da criança, que não andava. Não me lembro dessa pessoa diz, ao ver sua própria imagem. O garoto, Ulysses, livreiro em Paris, não se lembra de nada, mesmo tendo feito na época um desenho a partir da fotografia. Para ele, a imagem é ficção. É a minha versão dos fatos, diz Varda, e não a dele. A cabra morta virou pó. E o que era real nesse 9 de maio de 1954?, pergunta a cineasta: a derrota da França em Dien Bien Phu nas atualidades cinematográficas, as novidades culturais, artísticas, da moda... Mas tudo o que diz, Varda adverte, não é de memória, foi obrigada a vasculhar nas atualidades cinematográficas e nos jornais desse dia. Em outras palavras, nada do que vimos no filme (anedotas, interpretações e histórias) aparece na imagem fotográfica. A imagem está aí, e isso é tudo, constata Varda. O que não significa uma descrença nostálgica da cineasta nas imagens como um todo, mas uma aceitação da natureza precária, lacunar e enigmática de uma imagem. A imagem não é tudo mas está longe de ser nada. O filme nos mostra com vigor essa verdade simples, que, apesar de todas as insuficiências, é possível arrancar dela aprendizado, associando-a com outras imagens, outros depoimentos, outras percepções de mundo, em suma, trabalhando-a na montagem. Por isso Ulysse não é, em absoluto, uma busca do tempo perdido, mas um filme voltado para o presente da foto tornada cinema e para o futuro de Varda cineasta. É menos a exploração da memória e do passado, que intervém como dispositivo de base, e mais a narrativa de um aprendizado do trabalho do tempo e das singularidades da imagem. O essencial portanto não é lembrar, mas aprender. Aprender nos diz Deleuze - é considerar uma matéria, um objeto, um ser como se emitissem signos a serem decifrados... Não existe aprendiz que não seja egiptólogo de alguma coisa 5. 5 G. Deleuze, Proust e os signos. São Paulo: Forense Universitária, 2003, p. 4.
Em Ulysse, a dimensão ensaística surge como exercício de pensamento, como lugar e meio de uma reflexão sobre o tempo, a imagem e o cinema. E se o ensaio é um gênero literário que se revolta contra a obra maior, é contra a maneira clássica de fazer documentário que os filmes ensaísticos de Varda se constituem, em imagens que trazem a marca da contingência, e portanto da fragilidade, do momento em que ela filma.