Os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão De acordo com o Anteprojecto do Código de Insolvência (doravante ACI), a declaração de insolvência tem efeitos de vária ordem, aos quais é dedicado o título V do Código, na versão que inicialmente me foi entregue, embora seja rigorosamente o título IV, uma vez que se verifica um salto do título II para o título IV. A sistematização desse título reparte-se por quatro capítulos, sendo o primeiro relativo aos efeitos sobre o devedor (arts. 75º e ss.), o segundo relativo aos efeitos sobre os credores (arts. 79º e ss.), o terceiro relativo aos efeitos sobre os negócios em curso (arts. 91º e ss.) e o quarto que na versão que inicialmente me foi entregue aparece como o quinto relativo à resolução em benefício da massa insolvente (arts. 105º e ss.). Devo dizer que a sistematização não me parece a melhor, mesmo tomando em consideração os defeitos, quer da sistematização do Código de Processo Civil, que distinguia entre os efeitos da sentença em relação ao falido e aos credores e os efeitos sobre os actos prejudiciais à massa, quer da sistematização do CPEREF, que distinguia efeitos em relação ao falido, efeitos em relação aos negócios jurídicos do falido, e efeitos em relação aos trabalhadores do falido. Na verdade, e na sequência do já defendido pelo Professor OLIVEIRA ASCENSÃO e pela Drª ROSÁRIO EPIFÂNIO 1, parece-me que se deverá distinguir entre efeitos em relação ao insolvente e efeitos em relação aos actos praticados pelo insolvente. E nestes últimos, haverá que distinguir entre actos anteriores à declaração de insolvência, actos em curso e actos futuros. Parece-nos que é esta a sistematização que deveria ter sido adoptada pelo Código e ao não o ser suscitam-se confusões desnecessárias. Aliás, basta verificar que o art. 91º se refere a um princípio geral quanto aos efeitos em relação a negócios ainda não cumpridos, isto depois de nos arts. 83º e ss., se fazer referência a efeitos sobre os créditos sobre o insolvente, como se a existência de créditos sobre o insolvente não implicasse, por definição, que o negócio ainda não esteja cumprido. Da mesma forma, o encerramento das contas correntes e o vencimento imediato das dívidas referido no art. 84º é também um efeito sobre negócios em curso. Parece-me, por isso, que toda esta sistematização tem que ser revista, ainda que deva acrescentar que a proposta de revisão que já me foi entregue não me parece melhor. Começamos por analisar o art. 84º, que estabelece que a declaração de insolvência determina o encerramento das contas correntes e o vencimento de todas as obrigações do insolvente. Só que agora deixou de se prever a cessação da contagem de juros, como se previa no anterior 151º, nº2, CPEREF, passando a estes a integrar a nova categoria de créditos subordinados. Parece-nos de criticar a solução, já que é incompatível com a estabilização do passivo a manutenção da contagem de juros, nem se vê como é que a conta-corrente pode ser encerrada se o débito de juros se mantém. Em relação aos juros, acrescenta-se agora a resolução da questão do interusurium, ainda que numa formulação defeituosa, pois o que se deveria dizer é que o montante do juro legal ou da diferença entre este e a taxa convencionada deve ser descontado no valor do crédito, que só por efeito da insolvência se tornou exigível. 1 Cfr. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido, na ROA 55 (1995), pp. 641-688 (642 e ss.) e MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os efeitos substantivos da falência, Porto, Universidade Católica, 2000, pp. 183 e ss.
O art. 85º vem regular a questão dos créditos sujeitos a condição, mas regula apenas o aspecto óbvio que é a de que o credor sob condição resolutiva pode exercer as faculdades correspondentes até que a condição se verifique (deixando de o poder fazer nesse caso). Nada nos é dito, no entanto, quanto aos créditos sob condição suspensiva, quando era relativamente a eles que se justificaria uma tomada de posição, designadamente para esclarecer se estão ou não sujeitos ao vencimento antecipado previsto no art. 84º 2. Não posso deixar de criticar a alteração do regime da compensação, estabelecida no art. 89º. Efectivamente, enquanto que o art. 153º estabelecia que a partir da data da declaração de falência, os credores perdem a faculdade de compensar os seus débitos com quaisquer créditos que tenham sobre o falido, agora o art. 89º vem admitir abertamente a possibilidade de declarar a compensação se os seus pressupostos lgais ou convencionais já se verificassem naquela data. Ora, funcionando a compensação como garantia não se compreende que esta continue a poder ser exercida enquanto se extinguem outras garantias mais fortes, violando-se assim a par conditio creditorum, que deveria vigorar em sede da insolvência. Para além disso, chama-se a atenção que esta nova solução implica igualmente que não se verifique um efectivo encerramento das contas correntes do insolvente, ao contrário do que se prevê no art. 84º, já que a compensação continua a poder ser declarada. Na sequência da proposta de OLIVEIRA ASCENSÃO, que defendeu a instituição de um princípio geral que explicitasse a opção pela resolução ou conservação dos negócios 3, no art. 91º vem se estabelecer agora um princípio geral que, no entanto, na sequência do art. 1197º C.P.C., apenas se aplica a contratos bilaterais em que o insolvente seja parte, dando-se nesse caso, como alternativa ao administrador de falência a opção pela execução do contrato ou pela recusa de cumprimento, caso em que a outra parte fica constituída no direito de reclamar indemnização como crédito da insolvência. Generaliza-se, assim, como príncipio, aplicável a todos os contratos bilaterais, uma solução já instituída no art. 161º do CEPEREF para a compra e venda ainda não cumprida. Devemos dizer, no entanto, que a alteração não nos parece feliz. Basta ver que a norma não se vai aplicar a todos os contratos bilaterais, uma vez que é manifesto que há contratos que ficarão excluídos, como a importante figura da prestação de serviços em que o resultado do trabalho deva ser proporcionado ao insolvente, regida pelo art. 99º. Por outro lado, uma norma sobre contratos bilaterais dificilmente pode ser elevada à categoria de princípio geral, uma vez que os contratos não sinalagmáticos ficam de fora e em relação a estes não aparece qualquer regime. Mas esta redacção do art. 91º ainda tem o defeito de não regular adequadamente a situação da compra e venda em que a propriedade já tenha sido transmitida para o comprador mas ainda não haja entrega da coisa pelo insolvente, prevista expressamente no art. 161º, nº3 do CEPEREF. Ora, é manifesto que o art. 91º não se pode aplicar a esta situação 4, pois não vemos que a recusa do cumprimento declarada pelo administrador da insolvência possa impedir o comprador, já proprietário de reivindicar a sua propriedade. Aliás, o art. 3º do Regulamento 1346/2000 determina expressamente que o direito de um terceiro a reivindicar um bem nunca é afectado pelos processos de insolvência. Parece- 2 Cfr. sobre este problema, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, op. cit., pp. 205 e ss. 3 Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, ROA, 1992, pp. 658 e ss. 4 O anterior 1197º C.P.C. só referia a alienação de coisa determinada com reserva de propriedade.
nos, por isso, que convirá delimitar melhor o âmbito de aplicação do art. 91º, até para esclarecer se considera estar ou não em vigor o art. 468º do Código Comercial, para o qual o art. 201º d) do CPEREF remetia, como continua a fazer o art. 125º, nº1 d) do Anteprojecto, apesar das críticas que a doutrina justificadamente formulou a esta solução 5. Uma outra inovação do art. 91º é a de passar a limitar a indemnização ao valor da prestação do devedor, abatido do valor da contraprestação de que a outra parte ficou exonerada, admitindo ainda que o administrador da insolvência possa exigir da outra parte o valor da prestação já realizada pelo devedor, na parte em que o mesmo exceda o valor da contrapartida recebida. A denominada recusa de cumprimento gera assim uma indemnização por incumprimento, em que o legislador manda aplicar integralmente a teoria da diferença. Temos defendido como regra geral para a indemnização por incumprimento nos contratos sinalagmáticos antes a teoria atenuada da diferença, embora possamos admitir que as especialidades da situação de insolvência justifiquem esta solução. Relativamente ao art. 92º, relativo à venda com reserva de propriedade e operações semelhantes, há que não esquecer de prever nesta sede a actual norma do art. 155º, nº4, do CPEREF, que determina que a cláusula de reserva de propriedade nos contratos de alienação de coisa determinada, em que o adquirente seja o insolvente, só é oponível à massa insolvente no caso de ter sido estipulada por escrito, até ao momento da entrega da coisa, o que já vi ser proposto pelo autor do anteprojecto na nova versão que me foi entregue. Em tudo o mais, estou de acordo com a solução consagrada, que vai no sentido do art. 7º, nº2 do Regulamento 1346/2000 e do que se tem propugnado na doutrina mais moderna de que a reserva de propriedade constitui uma mera garantia a favor do vendedor, pelo que não deve privar o comprador do domínio da coisa em caso de falência daquele 6. Também estou de acordo com a consagração da mesma situação para a locaçãovenda. Agora reitero que falta uma norma geral relativa à compra e venda. O art. 93º reproduz integralmente o disposto no art. 164º CPEREF, sendo que o art, 125º, nºs 5 e 6 também reproduz o disposto no art. 201º, nºs 4 e 5, do CPEREF não havendo, assim, qualquer alteração do regime quanto à venda de coisas já expedidas à data da declaração de falência. Mas pensamos que se justificaria, na sequência, do proposto por OLIVEIRA ASCENSÃO, unificar estas normas, instituindo o princípio de que as coisas enviadas mas não pagas podem ser recuperadas, desde que separáveis da massa falida 7. Já quanto ao art. 94º, relativo ao contrato-promessa com eficácia real, não nos suscita dúvidas a solução, retirada do art. 164º-A do CPEREF. Só que, em relação à promessa sem eficácia real, a versão oficial deixou de a contemplar, o que aparece apenas na outra versão que me foi enviada pelo autor. Mas a solução que nessa versão aparece consagrada não me parece fazer sentido, ao dar ao credor o direito à maior indemnização, prevista no art. 442º, nº2, sabendo-se que uma das indemnizações depende de haver tradição da coisa, o que não aparece previsto no corpo do artigo. Para além disso, 5 Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, ROA 1992, p. 663. 6 Neste sentido, já LIMA PINHEIRO, A cláusula de reserva de propriedade, Coimbra, Almedina, 1988, pp. 78 e ss. 7 Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, ROA 1992, p. 666.
havendo tradição há direito de retenção, cujos efeitos na hipótese de falência essa disposição também não contempla. No art. 95º passa-se a contemplar a situação específica das operações a prazo, que são alargadas em relação à antiga disposição do art. 163º CPERE. Nos termos em que o artigo está redigido parece querer contemplar-se os instrumentos financeiros derivados mas, a ser assim, pergunto-se, porque se referem apenas as opções, não se mencionando designadamente os futuros, forwards e swaps. O art. 96º pretende contemplar a situação das prestações divisíveis, o que nos parece totalmente inútil, e que por isso justifica-se efectivamente que esta disposição seja eliminada, como propôs o autor do projecto na nova versão que me enviou. O art. 97º, relativo ao agrupamento complementar de empresas, mantém exactamente o mesmo conteúdo do que o anterior art. 165º do CPEREF, pelo que não nos suscita observações especiais. Questionamo-nos, no entanto, por que razão não se prevê igualmente uma disposição relativa ao agrupamento europeu de interesse económico, sabendo-se que o art. 36º do Regulamento CEE nº 2137/85, de 25 de Julho de 1985, estabelece que ele se encontra sujeito às disposições do direito nacional que regula a insolvência e cessação de pagamentos. Ora a única norma nacional que existe é o art. 10º do D.L. 148/90, de 9 de Maio, claramente ultrapassada neste domínio. O art. 98º relativo à associação em participação, reproduz integralmente a disposição do art. 166º do CPEREF, sendo que a extinção da associação em participação pela falência do associante, referida no nº1, já se encontrava prevista no art. 27º g) do D.L. 231/81. Agora, pergunto-me porque não se introduz também uma norma relativa ao consórcio, sabendo-se que nos termos do art. 10º, nº2 a) do D.L. 231/81, a declaração de falência constitui justa causa de resolução deste contrato. Quanto à disposição do nº2 do art. 98º a sua manutenção exactamente nos mesmos da versão anterior levanta problemas de articulação com as modificações operadas noutras disposições. Conforme referiu OLIVEIRA ASCENSÃO, o art. 166º, nº2 CPEREF era uma manifestação da regra geral da proibição da compensação após a declaração de falência. No entanto, como no anteprojecto se decide a meu ver, mal alterar essa regra, não se compreende como excepcionar o associado da mesma solução. Relativamente ao art. 99º, parece-nos uma disposição totalmente inútil. A prestação de serviços em geral é sujeita às regras do mandato (art. 1156º do Código Civil), e em relação a este, já se prevê, no art. 1170º do Código Civil um direito de livre revogação, pelo que não se vê a que propósito se prevê um direito de denúncia em caso de insolvência. Mesmo tratando-se de empreitada, no art. 1229º também se prevê a faculdade de desistência por parte do dono da obra. O regime da insolvência passa assim a ir mais longe do que estas mesmas disposições ao obrigar a uma antecedência mínima, que nada justifica. O art. 100º, referente aos contratos de mandato ou de comissão, é objecto de grandes modificações. Devemos dizer que de um ponto de vista sistemático, sendo o mandato o arquétipo do contrato de prestação de serviços, estranha-se que o regime estabelecido para o mandato se possa afastar tanto do regime da prestação de serviços. Em qualquer caso, as alterações efectuadas suscitam-nos alguma perplexidade: Consagrase agora a regra geral da caducidade do mandato, em consequência da insolvência do mandante, mas nada se diz sobre o mandato também no interesse do mandatário ou de terceiro, em que o art. 1170º, nº2, impede a revogação. Da mesma forma, deixou de se
contemplar a hipótese de insolvência do mandatário. Finalmente, parece-nos estranha a norma do art. 100º, nº4, que procura irresponsabilizar o procurador pela ineficácia da procuração, mas nada refere sobre a situação dos terceiros. Ora, face ao art. 266º, nº2, do Código Civil não me parece que a extinção da procuração em resultado da insolvência possa afectar a posição de terceiros que sem culpa as ignorassem. Uma última observação relativa à má redacção do artigo ao referir que o objecto do mandato e da procuração são bens, quando se sabe que o seu objecto são antes actos jurídicos. Netse âmbito, cabe salientar que se eliminou a norma relativa à agência, referida no art. 168º CPEREF, quando penso que se justificaria, não apenas mantê-la, mas também abordar os efeitos da falência em relação à indemnização. O art. 101º relativo ao arrendamento em que o falido é insovente passou a contemplar uma norma com a qual estamos frontalmente em desacordo, que é a de excluir a possibilidade de o senhorio resolver o contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas anteriores à declaração. Há várias disposições do Código que me parecem de elogiar, mas em que se poderia ir mais longe: o Código inova e bem ao prever no art. 75º, nº2, uma disposição relativa à cessão de rendimentos futuros, uma questão que no âmbito da cessão de créditos futuros tem a máxima relevância. No entanto, só a trata relativamente à celebração do negócio após a declaração de insolvência, nada prevendo sobre o que sucede se esse negócio for realizado antes dessa declaração, quando é altamente questionável se nesse caso a insolvência do cedente afecta o cessionário.