EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES LINGUÍSTICAS RESUMO: Palavras-chave: fonologia-linguística-literatura ABSTRACT:



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Transcrição:

EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES LINGUÍSTICAS (Vera Pedreira dos Santos Pepe) 1 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo apontar e analisar temas linguísticos presentes no livro Emília no País da Gramática, do autor brasileiro Monteiro Lobato. Utilizaram-se, para esse propósito, fragmentos de sete capítulos da obra, comentados à luz de estudos sobre fonética articulatória, fonética e fonologia do português, sociolinguística, entre outros. A análise permitiu a identificação de temas como classificação de fonemas vocálicos segundo critérios articulatórios; a estrutura da sílaba e a distribuição de vogais e consoantes nessa estrutura, ditongos, particularmente o ditongo ÃO, o acento no português e a classificação de palavras segundo a tonicidade silábica; fonologia e ortografia e variação linguística. Palavras-chave: fonologia-linguística-literatura ABSTRACT: This article intends to describe and also to analyze linguistic themes observed in a literary book. The study is based on Emília no País da Gramática, written by Monteiro Lobato, a brazilian writter. In order to do that, we selected seven chapters and some of their fragments, which are commented based on studies about Articulatory Phonetics, Portuguese Phonetics and Phonology, Sociolinguistics and others researches. At the end, some themes were identified as follows: vowels classification according to articulatory criteria; the syllable: consonants and vowel distribution; diphthongs, specially the diphthong ÃO; Portuguese words classification according to the stressed syllable; phonology and orthography; linguistic variation. Key words: Phonology-Linguistics-Literature Introdução A obra Emília no País da Gramática, escrita em 1934, apresenta a aventura vivida pelos personagens Emília, Pedrinho, Narizinho e Visconde de Sabugosa, quando visitam o País da Gramática guiados por um Rinoceronte apelidado de Quindim. Dos vinte e sete capítulos do livro, sete resgatam temas linguísticos, os quais serão aqui apresentados na seguinte ordem: Primeiro, classificação dos fonemas vocálicos orais e nasais com base na Fonética Articulatória. Segundo, conceituação de sílaba e descrição de como 1 Vera Pedreira dos Santos Pepe Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana. verapepe@click21.com.br

consoantes e vogais distribuem-se na sua estrutura. Terceiro, ditongos orais e nasais, sobretudo o ditongo ÃO. Quarto, o acento no português e a classificação de palavras segundo a tonicidade silábica. Quinto, fonologia e ortografia, sobretudo no que diz respeito às relações entre letras e sons e à ortografia da língua portuguesa nos períodos etimológico e fonético. Sexto, a variação linguística, principalmente a variação diastrática e diatópica. Algumas considerações finais sobre esses tópicos e sobre o diálogo estabelecido entre eles e o texto literário integram a última parte desse artigo. Esse estudo justifica-se por evidenciar a possibilidade de diálogo entre linguística e literatura, frequentemente não percebida por muitos alunos; por suscitar uma reflexão linguísticoliterária acerca da obra em questão e, principalmente, por servir de instrumento de trabalho para o professor em sala de aula, sobretudo para o professor de Letras. 1. A classificação de fonemas vocálicos A Fonética Articulatória (LADEFOGED, 1982), ciência cujo objeto de estudo são os sons produzidos e articulados pelo aparelho fonador humano, classifica como fones vocálicos aqueles sons em cuja produção não há obstáculos à passagem do ar na cavidade oral. Os sons vocálicos também podem ser orais ou nasais dependendo da posição do véu palatino. Quando levantado, ou seja, em contato com a parede posterior da faringe, o véu palatino permite a passagem do ar, exclusivamente, para a cavidade oral, o que resulta na produção de sons orais. Quando rebaixado, porém, o véu palatino permite não somente a passagem do ar para a cavidade oral, como também para a cavidade nasal, trazendo, como resultado, a produção de um som nasal. Quanto à participação das cordas vocais, as vogais classificam-se, sempre, como sonoras, em virtude de serem produzidas com vibração das pregas vocais. Em Emíla no País da Gramática, esses aspectos mencionados podem ser observados no trecho a seguir: Os meninos fizeram todas as combinações necessárias e, no dia marcado, partiram muito cedo, a cavalo no rinoceronte, o qual trotava o trote mais duro que a sua casca. Trotou, trotou e, depois de muito trotar, deu com eles numa região onde o ar chiava de modo estranho.

- Que zumbido será esse?-indagou a menina- Parece que andam voando por aqui milhões de vespas invisíveis. - É que já estamos em terras do País da Gramática- explicou o rinoceronte. - Estes zumbidos são os sons Orais que voam soltos no espaço. - Não comece a falar difícil que nós ficamos na mesma- observou Emília- sons orais, que pedantismo é esse? - Som oral quer dizer som produzido pela boca. A, E, I, O U são Sons Orais, como dizem os senhores gramáticos (LOBATO, 1978, p.8). Analisando o fragmento, nota-se que a palavra zumbido remete perfeitamente à idéia de sonoridade, ou seja, remete à informação de que a articulação de sons vocálicos envolve vibração das cordas vocais. A ausência de obstáculos à passagem do ar na cavidade oral durante a produção de sons vocálicos também aparece documentada. Em Sons orais que voam soltos no espaço, o termo soltos indica liberdade, ausência de empecilho; e espaço representa a cavidade oral. Além disso, o termo boca caracteriza os chamados sons orais, em cuja produção o ar escapa pela cavidade bucal, em virtude de o véu palatino encontrar-se levantado. 2. A distribuição de vogais e consoantes na estrutura da sílaba Em termos de mecânica da fala, Silva (1998), apresenta a seguinte definição de sílaba: os movimentos de contração e relaxamento dos músculos respiratórios expelem sucessivamente pequenos jatos de ar. Cada contração e cada jato de ar expelido dos pulmões constitui a base de uma sílaba (op.cit, p. 76). Mc Neilage e Davis (1993), além de explicarem a sílaba em termos de mecânica da fala, o fazem em termos filogenéticos. Segundo eles, existe uma estrutura silábica básica, constituída de uma consoante (C) e de uma vogal (V), desenvolvida, historicamente, pelo homem primitivo ao executar ações como como lamber, sugar e mastigar. Estes gestos articulatórios envolviam uma alternância rítmica da mandíbula, caracterizada por uma oclusão (no caso da consoante) seguida de uma abertura (no caso da vogal). Posteriormente, esse ciclo mandibular evolui para a linguagem articulada.

Qualquer que seja o ponto de vista adotado, há unanimidade acerca da estruturação básica da sílaba: ela consiste num movimento muscular, iniciado por uma tensão que vai aumentando progressivamente até atingir um nível máximo para, finalmente, sofrer uma redução gradativa. No início da tensão e na sua finalização, ou seja, nas margens da sílaba, distribuem-se as consoantes; no momento máximo de tensão, i.e., no centro silábico, figuram as vogais. Assim, consideram-se consoantes os sons menos soantes; e vogais, os elementos mais sonoros. A discussão sobre o núcleo da sílaba ser ocupado por vogais e as margens por consoantes aparece claramente documentada do fragmento abaixo: (O Rinoceronte) - Reparem que entre as letras há cinco que governam todas as outras. São as senhoras vogais-cinco madamas emproadas e orgulhosíssimas, porque palavra nenhuma pode formar-se sem a presença delas. As demais letras ajudam; por si mesmas nada valem. Essas ajudantes são as consoantes e como a palavra está dizendo, só soam com uma vogal adiante ou atrás (ibid., p. 8). Evidentemente as cinco letras mencionadas nessa passagem são as vogais, que por serem o centro da sílaba, governam todas as outras (as consoantes). A posição de núcleo silábico é reiterada quando o Rinoceronte salienta que nenhuma (palavra) pode formar-se sem a presença delas (as vogais). Resumindo, sem vogal, não há sílaba e, sem esta, não há palavra. A representação das consoantes como elementos situados à margem da sílaba e dependentes da vogal aparece explicitada no trecho em que o Rinoceronte as qualifica como ajudantes 3. Ditongos A unidade sílaba também introduz um outro tema importante, qual seja, o tema ditongos, em especial, o ditongo ÃO. Segundo Mattos e Silva (1991), já no século XVI esse ditongo caracterizava o dialeto padrão de Portugal.

Em Emília no País da Gramática, o prestígio do ÃO aparece documentado na passagem em que o referido ditongo é raptado, subitamente, pelo Visconde de Sabugosa. Nela também apresentam-se o conceito de ditongos e a distinção entre ditongos orais e ditongos nasais: Tornava-se preciso descobrir o Visconde. A sua misteriosa sumição [...] vinha preocupando a todos [...]. O vigia [...] contara que o tinha visto por lá com um Ditongo debaixo do capote, a espernear [...]. - Um ditongo!... Raptou um ditongo! [...] Mas para que, santo Deus? Com que fim? O remédio era um só- irem ao bairro das sílabas, que é onde moram os Ditongos. (O Quindim)- É aqui mesmo- disse ele, vendo as ruas cheias de sílabas num ir e vir constantes. Mas onde será a rua dos ditongos? - É aqui- disse ele ao penetrar na rua onde só existiam sílabas formadas de duas vogais- Os ditongos são estes. - Quê!- exclamou Narizinho [...]- Ditongo, uma palavra tão gorda quer dizer só isso- sílaba de duas vogais? Pensei que fosse coisa mais importante [...](ibid., p. 54) Vale salientar que a conceituação de ditongo como sílabas formadas de duas vogais, ao tomar como referência as letras (duas vogais), e não os fonemas vogal e semivogal, resgata uma definição da gramática tradicional. O próximo trecho ilustra a distinção entre ditongos orais e nasais; sendo finalizado com o prestígio do ditongo ÃO. Havia por ali duas espécies de ditongos- os Orais, que só se pronunciam com a boca, e os Nasais, em que o som também sai pelo nariz [...] Mas Quindim estranhou não ver entre eles o mais importante de todos- o ÃO. Os meninos notaram uma certa agitação entre os ditongos [...]. Emília entrou em cena. Agarrou um dos ditongos nasais e posou-o na palminha da mão [...]: - Diga-me ditonguinho, que foi que houve por aqui? Noto uma certa agitação entre vocês [...]. - De fato estamos agitados- Um dos meus manos, o ÃO, que era justamente o mais importante da família, desapareceu misteriosamente [...] (ibid., p. 54). 4. O acento

Conforme apontam Callou e Leite (1993), para os falantes do português, é bem conhecido o acento de intensidade, que tem um papel distintivo em palavras como sábia, sabia e sabiá. (op.cit. p. 31). A cada alteração de tonicidade corresponde uma alteração semântica, ou seja, uma mudança de significado, sendo esta a razão do acento exercer um papel distintivo na língua. Classificam-se como oxítonas aquelas palavras cujo acento recai na última sílaba; como paroxítonas aquelas em que a tonicidade manifesta-se na penúltima sílaba, e proparoxítonas, aquelas produzidas com acento na antepenúltima sílaba. As formas BEIJAR, CABEÇA e ÁRVORE exemplificam palavras oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas, respectivamente. Na língua portuguesa, o padrão acentual mais produtivo é o paroxítono. Na segunda posição, figuram as oxítonas; e, em último lugar, as proparoxítonas que, além de sempre serem acentuadas graficamente, ocorrem em número bastante reduzido. Em Emíla no País da Gramática, o personagem Rinoceronte conceitua sílaba acentuada (ou tônica), mediante o uso da expressão sílaba mais emproada: (Rinoceronte)- Reparem que em cada palavra há uma sílaba mais emproada e importante que as outras pelo fato de ser a depositária do acento Tônico. Essa sílaba chama-se a Tônica [...] (ibid., p. 10). Em seguida, além de apresentar a classificação das palavras segundo a sua tonicidade, faz uma crítica bem humorada à nomenclatura adotada nessa classificação, utilizando, para tanto, a expressão nomenclaturas rebarbativas, conforme atesta o fragmento a seguir: (Rinoceronte) - Mas os senhores gramáticos são uns sujeitos amigos de nomenclaturas rebarbativas, dessas que deixam as crianças velhas antes do tempo. Por isso dividem as palavras em Oxítonas, Paroxítonas e Proparoxítonas, conforme trazem o acento tônico na última sílaba, na penúltima ou na antepenúltima. (ibid., p.10). A personagem Emília ratifica a fala do Rinoceronte:

(Emília) - Nossa Senhora! Que luxo asiático! exclamou Emília. - Bastava dizer que o tal acento cai na última, na penúltima ou na antepenúltima. Dava na mesma e não enchia a cabeça da gente de tantos nomes feios. Proparoxítona! Só mesmo dando com um gato morto em cima até o rinoceronte miar [...] (ibid., p. 10). A discussão acerca das poucas ocorrências de palavras proparoxítonas na língua portuguesa também aparece documentada. Essa categoria recebe o adjetivo de esdrúxulas, conforme ilustrado no trecho a seguir: - E há mais ainda-disse Quindim. - As pobres palavras que têm a desgraça de ter o acento na antepenúltima sílaba, quando não são xingadas de Pro-pa-ro-xí-to-nas são xingadas de esdrúxulas. - Es-drú-xu-las! Repetiu Emília. - Eu pensei que Esdrúxulas quisesse dizer esquisito. - E pensou certo- confirmou o rinoceronte.- Como na língua portuguesa as palavras com acento na antepenúltima não são muitas, elas formam uma esquisitice, e por isso são chamadas de esdrúxulas (ibid., p. 10). 5. Fonologia e Ortografia Miriam Lemle (1998) aponta quatro tipos de relação entre letras e sons: a) relação biunívoca b) relação de uma letra representando diferentes sons segundo a posição; c) relação de um som representado por diferentes letras segundo a posição; e c) relação de concorrência. A relação biunívoca é aquela em que um som corresponde a uma letra e vice-versa, independentemente da posição. A letra P, por exemplo, estabelece esse tipo de relação com o fone [p], a exemplo de PATO e APITO em que, seja no início da palavra, seja internamente a ela, o P sempre corresponde ao som [p]. A relação de uma letra representando diferentes sons segundo a posição caracteriza-se como aquela em que uma mesma letra pode ter diferentes manifestações fonéticas a depender da posição ocupada na palavra. A letra S em SAPO, corresponde ao fone [s]; já em posição intervocálica, é pronunciada como [z], como em CASA.

A relação de um som representado por diferentes letras segundo a posição é o inverso da anterior. Aqui, um mesmo som pode ser representado na escrita por diferentes grafemas, como ocorre, por exemplo, com o fone [u], no dialeto do Rio de Janeiro, onde a letra U de LUA e a letra O de AMIGO são produzidas da mesma maneira: [u]. Finalmente, a relação de concorrência define-se como aquela em que uma mesma letra pode representar fones idênticos em contextos idênticos, não havendo qualquer princípio fônico que possa guiar quem escreve (LEMLE, 1998, p. 23). As palavras MESA, CERTEZA e EXEMPLO representam esse último tipo de relação, em virtude de S, Z e X ocuparem a mesma posição na palavra e corresponderem ao mesmo som: [z]. Em Emília no País da Gramática identificam-se trechos onde são abordadas as relações entre letras e sons e, por conseguinte, as relações entre fonologia e ortografia. Os fragmentos destacados a seguir demonstram que: Letras são diferentes de sons; - A, E, I, O, U, são sons Orais [...]. - Pois diga logo que são letras!- gritou Emília. - Mas não são letras!- protestou o rinoceronte. - Quando você diz A ou O, você está produzindo um som, não está escrevendo uma letra? (ibid., p.8). Letras são sinais adotados na escrita para simbolizar os diferentes sons: -Letras são sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons.? (ibid., p.8). Os sons antecedem as letras: Primeiro há os sons Orais; depois é que aparecem as letras. Entendeu? (ibid., p.8). Além disso, observa-se que algumas relações apontadas por Miriam Lemle já estavam, de certo modo, documentadas na obra de Lobato. Mediante a utilização da alegoria de uma dama

de origem grega para simbolizar a ortografia, o autor explora a letra H tanto para registrar o que Lemle denomina de relações dependentes do contexto fônico, quanto as relações de concorrência: [...] No bairro da ortografia os meninos encontraram uma dama de origem grega que tomava conta de tudo [...]. - Desçam e venham ver como lido com as letras, na formação escrita das palavras (ibid., p. 55). - Entre as letras- continuou a Senhora Ortografia- uma das mais curiosas é o H. O diabinho por si só não tem som nenhum, mas ligado a outras letras produz sons especiais. No começo de uma palavra é o mesmo que não existir. Em homem, hoje ou haver, por exemplo, tanto faz existir o H como não existir [...]. Mas quando o H se liga ao C, ele chia que nem pingo d água em chapa de fogão, como em Machado, Achar [...] (ibid., p. 57). A história da ortografia da língua portuguesa nos períodos etimológico (ortografia baseada na origem das palavras) e fonético (ortografia que se baseia na pronúncia das palavras) também é resgatada no livro, conforme elucidado abaixo: - Antigamente o sistema de escrever era o sistema etimológico [...] Isso trazia muitas complicações e dificuldades. [...] Em consequência disso, ergueu-se um movimento para mudarpara acabar com a ortografia etimológica, e pôs em lugar dela outra mais fonética [...] Esse movimento venceu, afinal, e acabou sendo sancionado por um decreto do governo, depois de muito estudado pela academia Brasileira de Letras [...] Eu gostei da mudança, [...] mas a velha Ortografia Etimológica está furiosíssima. [...]. (ibid., p. 56) - A ortografia Etimológica entrincheirou-se lá, furiosa da vida, e não admite que ninguém toque na vestimenta de suas palavras [...] Não admite mudanças [...]. (ibid., p. 57) Mais adiante, a passagem também faz referência aos gramáticos, filólogos e lexicógrafos (Cf. Mattos, 1988), rotulados de velhotes, carranças, frequentadores assíduos da casa da velha (ortografia etimológica) e, portanto, resistentes a mudanças:

Emília entrou e deu de cara com uma velha de nariz de papagaio e ar rabugentíssimo, que tomava rapé em companhia de um bando de velhotes mais rabugentos ainda, chamados os Carrancas (ibid., p. 57). - Os velhos carranças é natural que estejam do seu lado, porque já aprenderam pelo sistema antigo e têm preguiça de mudar; mas as crianças estão aprendendo agora e não há razão para que aprendam pelo sistema velho, muito mais difícil. Eu falo aqui em nome da criançada. Queremos a ortografia nova porque ela nos facilita a vida [...] (ibid., p. 58). Adepto à Ortografia Simplificada, Lobato (Cf. Mattos, 1988) resgata a reforma ortográfica em um dos capítulos do livro onde a boneca Emília lidera uma espécie de movimento num local denominado Reduto Etimológico. A seguir, algumas simplificações adotadas pela reforma ortográfica e seus respectivos exemplos registrados em Emília no País da Gramática. Note-se a constante referência ao conservadorismo da velha (ortografia etimológica) e ao confronto entre ela e a proposta de mudança (reforma ortográfica). Sc C e Pt T: Sceptro Cetro Emília chamou outra palavra. Veio a palavra Sceptro. - Como é a pronúncia de seu nome? - Cetro - Então por que traz esse S e este P inúteis? - Ordens da velha Emília arrancou as duas letras inúteis e mandou Cetro passear. Th T: Thesouro Tesouro Depois chamou outra palavra. Veio Thesouro - Para que esse H aí dentro? - Isto é um enfeite etimológico que a velha exige.

- Fora com ele! Acabou-se os tempos dos enfeites etimológicos. A velha não manda mais. Em A velha não manda mais subjaz a ideia de que a ortografia etimológica vai perdendo sua autoridade, seu poder. Ch Q: Machina Máquina Emília chamou outra. Veio Machina. - Como é o seu nome, Máquina ou Machina? - Máquina. Este CH tem o som de Q. - Então por que não troca duma vez por um Q? - A velha não deixa. Diz que eu sou uma palavra de origem grega, e que no grego o CH equivale a Q. É a Etimologia [...]. - Sebo para a Etimologia. Bote fora esse CH e passe a usar um Q [...] Chispa! K C: Kágado Cágado Emília chamou outra. Veio Kágado. - Esse K que você usa tem o mesmo som de CA? - Tem sim [...]. - Pois então bote fora o K e vista o CA. Desde que o tal K tem o mesmo som de CA, ele é demais na língua e deve ser expulso do Alfabeto [...]. Suma-se! - O velho cágado lá se foi [...]. - Não fica muito bonito-ao vê-lo afastar-se mas simplifica. Estamos na era da Simplificação. Y I: Pery Peri - Emília chamou outra. Veio Pery. - Que Y é esse que você usa em vez do I comum? - Todas as palavras de origem tupi como eu, sempre foram escritas assim [...]. -Mas os índios tinham linguagem escrita?

- Não. Só tinham a falada. - Nesse caso não há razão nenhuma para vocês andarem a fingir-se de gregas usando esse Y. Ph F: Phosphoro Fósforo e Ph zero e Th T: Phthisica Tísica Emília chamou outra. Veio a palavra Phosphoro e com ela a palavra Phthisica. - Como se lê o seu nome? Perguntou [...] a Phosphoro. - Lê-se Fósforo. O meu PH sôa como F. - Então não seja idiota. Use o F que até acenderá melhor, e não complicará a vida das crianças. Avise os seus colegas que o PH morreu para sempre. Roda [...]. - E a senhora?- disse depois dirigindo-se a Phthisica. Sabe que está tuberculosa de tanto carregar letras inúteis? Liberte-se dos parasitos do corpo que garanto a sua cura. Suma-se! E I: Egreja Igreja Emília chamou outra. Veio Egreja. - Saiba que foi resolvido que de agora em diante todas as palavras que uns escreviam com E e outros com I serão escritas unicamente com I. - E por que decidiram conservar o I em vez de um E? - Não sei e nem quero saber. - resolveram assim e acabou-se. Tiraram a sorte, com certeza- ou então o I soube apadrinhar-se melhor. Vá embora! [...]. Ç S: Cançar Cansar Emília chamou outra. Veio a palavra Cançar. - Uns escrevem você com S e outros com Ç. Ora isso constitui-se uma trapalhada e portanto foi decidido que todas as palavras nessas condições passem a ser escritas só com S. Roda! [...] AN Ã: Maçan Maçã

Emília chamou outra. Veio a palavra Maçan. - Tire o AN. Ponha o à e vá avisar a todas da mesma família. [...] As razões etimológicas acabaram. Estamos em tempo de fonéticas [...]. Após a exposição dessas mudanças, Lobato exemplarmente representa o inconformismo da velha em relação ao acontecido. Note-se como faniquito, berrou, arrancou os cabelos e apelou para os Carranças intensificam esse estado de insatisfação e como o verbo endireitar representa uma última tentativa da velha de tudo voltar a ser como antes: Logo depois a velha veio passar em revista as palavras [...]. Assim que avistou Cetro sem o S e o P etimológicos, e Máquina sem o CH teve um faniquito. Depois berrou, arrancou os cabelos e apelou para os Carranças [...]. - Acudam! Os carranças acudiram [...]. - Venham ajudar-me e endireitar as palavras que a pestinha da boneca estragou [...]. O confronto entre o novo (mudanças ortográficas) e o velho (conservadorismo ortográfico) é finalizado com a realização da reforma ortográfica brasileira, como atesta a passagem a seguir: Emília chamou o Quindim e disse-lhe: - Vamos Quindim! Avance e espalhe aqueles peludos complicadores da língua. Chifre neles! O rinoceronte não esperou segunda ordem. Avançou [...]. Os carranças sumiram-se como baratas tontas, e a velha Ortografia Etimológica, juntando as saias, trepou que nem macaco, por uma árvore acima. Emília ria-se [...]. - Você, sua diaba, viveu muito tempo a complicar a vida das crianças sem que nada lhe acontecesse. Mas agora tudo mudou. Agora estou eu aqui- e o Quindim ao meu lado! Quero ver quem pode com esse binômio gramatical. Depois da tremenda revolução ortográfica de Emília, o Brasil ficou envergonhado de estar mais atrasado do que uma boneca e resolveu aceitar as sua ideias. E o governo e as Academias de Letras realizaram a reforma ortográfica [...] (ibid., p. 58-60).

6. Variação linguística Segundo Aryon Dall Igna Rodrigues, Não há língua que seja, em toda sua amplitude, um sistema uno, invariado, rígido [...] Na realidade, toda língua, quer sirva a uma grande nação consideravelmente extensa e muito diferenciada cultural e socialmente, quer pertença a uma pequena comunidade isolada de apenas poucas dezenas de indivíduos é um complexo de variedades, um conglomerado de variantes (RODRIGUES, 2002, p. 11) Essa afirmação mostra a natureza multifacetada da língua, qualquer que seja ela. Estudos sociolinguísticos demonstram que, ao entrar em contato com uma língua, o falante adquire não somente um sistema de contrastes em diversos níveis (fonológico, morfológico, sintático, entre outros), mas também os hábitos linguísticos consagrados por sua comunidade. Esses hábitos, conhecidos como norma linguística, podem variar segundo diferentes fatores: classe social e grau de escolaridade do falante (variantes diastráticas), fatores geográficos (variantes diatópicas), idade, sexo, entre outros. Os dois primeiros serão aqui abordados em função de estarem contemplados em Emília no País da Gramática, conforme será visto mais adiante. 6.1 Variação diastrática Em termos diastráticos, no português do Brasil, registram-se duas normas: a culta e a popular. A norma culta, de prestígio social, é comumente empregada por indivíduos escolarizados e pertencentes a classes sociais igualmente valorizadas no seu meio. Por essa razão, essa norma é tida por esses usuários como certa. A norma popular, inversamente, não desfruta do mesmo prestígio, em virtude de ser utilizada por falantes com pouca ou nenhuma escolaridade, pertencentes a classes sociais mais baixas. Em função desse fato, aqueles usuários da norma de prestígio consideram a norma popular como errada. Do ponto de vista sociolinguístico, portanto, formas tidas como erradas, na verdade, são formas usadas por indivíduos de classes sociais mais baixas e que, por questões subjetivas são estigmatizadas pelos usuários da variante culta. Cagliari comenta:

A Sociolinguística vai mostrar os problemas da variação linguística e da norma culta. Se linguisticamente não existe o certo e o errado, mas o diferente, socialmente as coisas não caminham desse modo. A sociedade se apega a fatos linguísticos, que por si são neutros, a fim de usá-los como argumentos para seus preconceitos [...]. O preconceito é social, mas sua manifestação se dá através de atitudes das pessoas diante de fatos linguísticos [...] (CAGLIARI, 1995 p. 48). Retomando Emília no País da Gramática, observa-se que o livro resgata o tema variação diastrática quando, em um de seus fragmentos, é mencionado o fato de os ignorantes da roça (leia-se: os usuários da variante popular), dizerem Espeio em vez de Espelho. A essa fala, subjaz o fato linguístico de que, enquanto os mais escolarizados utilizam a lateral palatal [ʎ] em Espelho, os menos escolarizados (ignorantes), sobretudo provenientes da zona rural (da roça) utilizam a semivogal [y] em Espeio. Note-se que o da roça elucida não apenas a variante diastrática, mas também a variante diatópica, em virtude de simbolizar o falar da zona rural, conforme mencionado anteriormente. A seguir, o trecho onde esse tema aparece contemplado: (Narizinho) - E os ignorantes da roça [...] a gente da roça diz Espeio [...]. O julgamento de certo e errado é relativo, pois a história da língua evidencia que formas julgadas como certas hoje, nem sempre foram vistas como corretas no passado. Em geral, quando uma forma estigmatizada, utilizada por incultos (i.e. usuários da norma popular) passa a ser também empregada por usuários da norma de prestígio, ela deixa de ser repelida. O fragmento a seguir ilustra esse fato: - Mas então o povo, isto é, os ignorantes ou incultos influi assim na língua? Disse Pedrinho. (Etimologia)- Os incultos influíram e ainda influem muito na língua- respondeu a velha Os incultos formam a grande maioria e as mudanças que a maioria faz na língua acabam ficando. As pessoas cultas aprendem com os professores e, como aprendem, repetem certo as palavras. Mas os incultos aprendem mais ou menos, de modo que só não repetem os erros aprendidos, como perpetram erros novos, que por sua vez passam a ser repetidos adiante. Por fim, há tanta gente a cometer o mesmo erro que o erro vira uso e, portanto, deixa de ser erro. O que hoje chamamos certo, já foi erro em outros tempos [...] a palavra latina Speculum [...] emigrou

para Portugal com os soldados romanos, e foi sendo gradativamente errada até ficar [...] Espelho [...] Essa forma Espeio é hoje repelida com horror pelos cultos modernos como a forma Espelho devia ter sido repelida pelos cultos de dantes [...] (ibid., p. 35). 6.2 Variação diatópica Conquanto a variação diatópica tenha sido antecipada na passagem anterior, quando Narizinho faz alusão ao falar da zona rural (ignorante da roça), ela é retomada em outros fragmentos. Neles, contudo, colocam-se em discussão as diferenças entre o português brasileiro e o europeu. O português do Brasil e o português de Portugal apresentam diferenças em vários níveis de estruturação lingüística. No nível lexical, por exemplo, as formas sala-de-banho e auto-carro, correspondem, respectivamente a banheiro e ônibus no português brasileiro. No nível morfossintático, enquanto no português do Brasil, formas de gerúndio como correndo, falando são construídas mediante o acréscimo do ndo ao radical do verbo, no português de Portugal, essa construção se faz mediante o uso do infinitivo do verbo estar antecedido da preposição a, conforme atestam exemplos do tipo Estar a correr e Estar a falar. Particularmente no que diz respeito ao nível fonológico, a obra Emília no País da Gramática documenta algumas alternâncias fônicas que marcam diferenças entre o português brasileiro e o europeu. Eis algumas delas: [ey] ~[ɐy] (A Etimologia) - Também no modo e pronunciar as palavras existem muitas variações. Aqui todos dizem Peito ; lá, todos dizem Paito, embora escrevam a palavra da mesma maneira. [ẽ]~[ɐ] Aqui se diz Tenho e lá se diz Tanho [...]. [v]~[b]

- Também eles dizem por lá Vacalhau, Baca e Besouro"- lembrou Pedrinho - Sim, povo de lá troca muito o B pelo V e vice-versa [...] (ibid., p. 42). Além das diferenças segmentais, o português brasileiro e o europeu exibem diferenças fonotáticas, ou seja, estruturais. Desse modo, uma palavra dissílaba no português brasileiro realiza-se como monossílaba no português de Portugal, em função de uma elisão vocálica da sílaba constituída de consoante e vogal (CV). Observe-se o exemplo a seguir: - Aqui se diz Verão; lá se diz V rão [...] (ibid., p. 42). Note-se que, enquanto o dissílabo Verão, constituído fonologicamente de CV (consoantevogal) e CVS (consoante-vogal-semivogal), manifesta-se efetivamente como tal no português brasileiro, no português europeu, ele sofre uma redução, passando ao monossílabo V rão constituído de CCVS (consoante-consoante-vogal-semivogal). A despeito da diminuição na extensão da palavra, que passou de dissílabo para monossílabo, houve um aumento na sua complexidade silábica. 7. Considerações finais Neste artigo buscou-se evidenciar temas linguísticos no livro Emília no País da Gramática. A análise aqui empreendida demonstrou que, de fato, o livro de Lobato exibe uma riqueza de assuntos dessa natureza, uma vez que, na obra, identificaram-se assuntos relacionados à fonética e à fonologia do português, tanto no que diz respeito aos aspectos segmentais (fonemas) e estruturais (sílaba), quanto no que se refere aos aspectos suprassegmentais (acento). Além disso, ao retomar o tema a variante culta e a variante popular, colocou-se em pauta a discussão sobre a noção de erro do ponto de vista sociolinguístico. A diversidade linguística em termos geográficos também foi contemplada na obra, sobretudo a variação entre o português brasileiro e o europeu, nos níveis fonético-fonológico.

As relações entre ortografia e fonologia, constatadas em diversos momentos da aventura vivida pelos personagens, puderam ser observadas no que concerne aos seguintes aspectos: à função das letras em relação aos sons, aos diferentes tipos de relação grafofonêmicas (relações biunívocas, relações de dependência de um contexto fônico e relações de concorrência); e ao confronto entre a ortografia etimológica e a ortografia baseada em critérios fonéticos. Todas essas constatações permitem dizer que pelas mãos de Monteiro Lobato, Emília no País da Gramática oportuniza um amplo diálogo entre língua e literatura. Em outras palavras, além do seu inegável valor lúdico, a obra representa um incentivo à reflexão linguística. Referências bibliográficas CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 1995. CALLOU, D. e LEITE, Y. Iniciação à fonética e à fonologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. CARVALHO, Manuel Mendes de. História da ortografia em Portugal e no Brasil. In: http://www.dha.inec.pt/npe/portugues/paginas. CRYSTAL, David. Dicionário de linguística e fonética. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. LADEFOGED, Peter. A course in Phonetics. Orlando: Harcourt Brace, 1982. LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1987. LOBATO, Monteiro. Emília no país da gramática. 10. ed. São Paulo: Brasiliense, 1978. MATTOS, Maria Augusta Bastos de. A gramática de Emília. Mesa-redonda apresentada no XXXV Seminário do Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo. Taubaté, 1988.

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. O português arcaico: fonologia. S. Paulo: Contexto, 1991. MATTOSO CÂMARA JR., J. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975. Mc NEILAGE & DAVIS, B.L. Motor explanations of babbling and early speech patterns. In: BOYSSON-BARDIES, B. SCHONEN, S. de, JUSCZYK, P., & MORTON, J. (Ed.). Changes in speech and face processing in infancy: a glimpse at developmental mechanism of cognition. Dordrecht: Kluwer, 1993. RODRIGUES, Aryon Dall Igna. Problemas relativos à descrição do português contemporâneo como língua padrão no Brasil. In: 2 BAGNO, Marcos (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. SILVA, Thais Cristófaro. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. 4. ed. S. Paulo: Contexto, 1998. TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. S. Paulo: Martins Fontes, 1977.