Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de Conclusão de Curso



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Transcrição:

Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de Conclusão de Curso O CONTO MARAVILHOSO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN: A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS u SENTIDOS DA VIDA Autor: Franciane da Silva Orientador: Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel NOME DO AUTOR Brasília - DF 2012

FRANCIANE DA SILVA O CONTO MARAVILHOSO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN: A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA VIDA Monografia apresentada no curso de Graduação em Letras da Universidade Católica de Brasília como requisito para a obtenção do título de Licenciado em Letras com Habilitação em Português e Inglês e suas Literaturas. Orientadora: Prof. MSc. Lívila Pereira Maciel Brasília 2012

Monografia de autoria de Franciane da Silva, intitulada O CONTO MARAVILHOSO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN: A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA VIDA, apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em Letras com Habilitação em Português e Inglês e suas Literaturas pela Universidade Católica de Brasília, em 28 de novembro de 2012, defendida e/ou aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel Orientadora Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB Prof. Msc. Deise Ferrarini Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília - UCB

Dedico este trabalho a minha mãe que, com tanto amor, sempre esteve ao meu lado e sempre acreditou em mim.

AGRADECIMENTO Agradeço primeiramente a Deus, pois sem Ele nada seria possível. A minha mãe pela vida, pelo amor e por sua dedicação. A minha irmã e familiares, pelo apoio para que esse momento se tornasse realidade. Aos professores, que nesses anos de minha formação, tanto me ajudaram. Com muito carinho e admiração agradeço à minha orientadora, Professora Lívila Pereira Maciel, pela dedicação e disposição com que na realização deste trabalho. Aos amigos de infância agradeço a compreensão; aos meus amigos da Universidade, o apoio, e a meus colegas de trabalho, a força.

Todas as vidas de homens são contos de fadas escritos pelas mãos de Deus. Hans Christian Andersen

RESUMO SILVA, Franciane da. O conto maravilhoso de Hans Christian Andersen: a forma narrativa simples e a profundidade dos sentidos da vida. 2012. 47. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação. Curso de Letras. Universidade Católica de Brasília. Brasília. 2012. O presente trabalho tem como tema o conto maravilhoso de Hans Christian Andersen. Apresentamos e clarificamos a forma narrativa simples dos seus contos e o significado profundo que eles alcançam. Para tal, fazemos a análise de dois contos do escritor, Sapatinhos Vermelhos e O Patinho Feio, ressaltando a importância dos protagonistas das estórias escolhidas. A obra do escritor dinamarquês toca a sensibilidade do leitor porque seus contos são baseados no cotidiano, mas são, ao mesmo tempo, repletos de imaginação. As personagens de Andersen, com suas experiências de vida, imprimem verdade, significado, valor simbólico, aos contos, encantando e formando os leitores, sobretudo os leitores-crianças. Os acontecimentos trágicos, de dor, de solidão, de tristeza, de dúvidas, de perdas, dos protagonistas engrandecem os contos de Andersen e apontam, paradoxalmente, para uma final feliz, porque há sempre a busca pela realização dos sonhos e pela essência do ser. As personagens das estórias de Andersen, perdedoras-vencedoras no jogo da vida, acabam concretizando o bem e a verdade que buscaram alcançar. As estórias maravilhosas de Andersen nos fazem mergulhar no poder do imaginário e da di-versão (versão diferente de nós mesmos), e tudo isso a partir de uma forma narrativa simples e de uma linguagem extremamente poética. Andersen é um grande exemplo da literatura infantil de qualidade, porque prima pela imaginação e pela poesia da infância. Palavras-chave: Imaginação. Infância. Conto de fadas. Formação do leitor. Hans Cristhian Andersen.

ABSTRACT SILVA, Franciane da. O conto maravilhoso de Hans Christian Andersen: a forma narrativa simples e a profundidade dos sentidos da vida. 2012. 47. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação. Curso de Letras. Universidade Católica de Brasília. Brasília. 2012. The present work has as its theme Hans Christian Andersen wonderful tale. The simple narrative shape of his short stories will be clarified, as well the meaning that they achieve. Thus, two stories written by Andersen, "Red Shoes" and "The Ugly Duckling", will be analyzed, highlighting the importance of the protagonists of the chosen stories. Readers are touched by the work of this Danish writer because his stories are based on daily life, but, at the same time, they are full of imagination. The life experience of Andersen's characters prints truth, meaning and symbolic value to the tales; this fascinate and form the readers, especially the children. The protagonists tragic events of pain, loneliness, sadness, doubt, loss magnify the Andersen tales and point, paradoxically, to a happy ending, because there is always the search for realization of dreams and for the essence of being. Andersen characters, winners-losers in the game of life, end up concretizing goodness and truth seeking that they achieve. Andersen wonderful stories dip in the power of imagery and the di-version (different version of ourselves), and all of this from a simple narrative form and a very poetic language. Andersen is a great example of high-quality children's literature because he excels in poetry and imagination of childhood. Keywords: Imagination. Childhood. Fairy tales. Readers formation. Hans Christian Andersen.

SUMÁRIO ERA UMA VEZ HANS CHRISTIAN ANDERSEN: UMA INTRODUÇÃO 10 1 A LITERATURA INFANTIL E O CONTO DE FADAS 14 2 O VALOR DA PERSONAGEM NO CONTO MARAVILHOSO 19 2.1 A personagem e a morfologia do conto maravilhoso segundo Vladimir Propp 20 2.2 A personagem e a verdade da ficção no conto maravilhoso 22 3 A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA VIDA NA OBRA DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN 25 3.1. Sapatinhos Vermelhos: o desejo de ser livre 31 3.2. O Patinho Feio : como tornar-se o que se é. 36 E HANS CHRISTIAN ANDERSEN FICOU SENDO... POIS TODO FIM É BOM: UMA CONCLUSÃO 41 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 45

10 ERA UMA VEZ HANS CHRISTIAN ANDERSEN: UMA INTRODUÇÃO A meninice, com sua linguagem, mundividência, sensibilidade, esperanças e fantasias, aventuras e fatalidades, é que forma o adulto, e nada mais presente na nossa infância do que os contos de fadas, repletos do maravilhoso e da fantasia, mas também de situações de vida complexas e tão reais aos nossos olhos de criança. Como tudo da nossa meninice, os contos de fadas nos formam e permanecem para sempre, significando, indicando-nos caminhos, embora, muitas vezes, o adulto racional e realista em que nos tornamos, desista das coisas infantis e releguem o conto de fadas ao meramente irreal, fantasioso, a uma mera forma de entretenimento para fugir dos problemas do mundo real. O conto maravilhoso é um acontecimento que não tem compromisso com o real, mas que pode conter elementos que simbolizam nossa vida e nossos conflitos reais. É por meio das janelas de um conto de fadas que a criança vê o mundo real e pode encontrar certo sentido maravilhoso, fantástico, fabuloso, encantador. Bruno Bettelheim (2002), m A Psicanálise dos Contos de Fadas, afirma a importância dos contos de fadas para as crianças, sobretudo pelo uso pessoal que fazem do encantamento presente neles. De acordo com o psicólogo infantil, eles apresentam um caráter simbólico que emana da forma narrativa simples e emoldurada pelo mitopoético. Um dos escritores de contos maravilhosos mais conhecidos e que será estudado nesse trabalho é Hans Christian Andersen (2003). A importância de estudar esse escritor justifica-se pelas suas próprias estórias e personagens, construídas de uma forma tal que sempre foram bem recebidas pelas crianças. O escritor dinamarquês escreveu reinventando, ou seja, diferentemente de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, ele recriou seres, funções, universos, qualidades e emoções singulares, únicas, surpreendentes. Andersen é um genuíno poeta da imaginação. E sua imaginação melhor se concretiza quando demanda os devaneios poéticos da infância. Andersen é o poeta da infância. E é por essa razão que nosso trabalho se sustenta de forma geral no pensamento de Gastón Bachelard (2000; 2001) para o qual a imaginação de criança no mundo do conto de fadas é muito importante, pois é na infância que o devaneio tem a liberdade, uma imaginação

11 desprendida de conceitos anteriores, as imagens primeiras que transformam tudo em maravilhoso. Entrar em contato com o mundo maravilhoso de Andersen, dia após dia, noite após noite, significa, para seus leitores, sobretudo para as crianças, deixar que as aventuras de cada conto lido ordenem seus dias turbulentos, suas intuições, sua fé, sua vida prenhe de futuro. Cresce nos leitores o otimismo, a esperança em meio ao sofrimento e aos erros... Aprende-se com o reconhecimento, o perdão, a redenção. Qualidades essenciais à vida humana, que não são apresentadas por Andersen de forma conceitual, abstrata, mas de modo concreto e transformador. Esse trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capitulo, A Literatura Infantil e o Conto de Fadas, fazemos algumas reflexões sobre a literatura infantil, indagando se o termo infantil associado à literatura significa que ela seja destinada necessária e exclusivamente para crianças. Buscamos as respostas nas ideias de estudiosos e escritores como Jacqueline Held (1980), Ana Maria Machado (2002), Cecília Meireles (1984), Carlos Drummond de Andrade Apud DINORAH 1996), entre outros. Todos ressaltam a poeticidade dos textos literários e a qualidade dos livros infantis que buscam atingir, em cheio, o imaginário infantil. É nesse contexto que o conto de fadas é identificado como literatura de valor também para as crianças e no qual se destaca o mundo ficcional criado por Hans Christian Andersen (2003). A obra do escritor dinamarquês toca a sensibilidade do leitor porque seus contos são baseados no cotidiano, mas são, ao mesmo tempo, repletos de imaginação. Como toda literatura infantil de qualidade, os contos maravilhosos de Andersen apresentam uma forma narrativa simples, mas não se limitam a cumprirem um papel meramente didático, utilitário pedagógico. Eles trazem a poesia como o que há de mais essencial para a formação do ser da criança, porque dramatiza, às vezes tragicamente, a profundidade dos sentidos da vida. No segundo capitulo, O Valor da Personagem no Conto Maravilhoso, nos dedicamos a apresentar e clarificar a estrutura simples e o significado profundo dos contos maravilhosos de modo geral, chamando a atenção para o papel relevante que a personagem desempenha na construção das estórias. Buscamos mostrar que é a personagem, um ser fictício criado na e pela linguagem poética, que imprime verdade, significado, valor simbólico, aos contos maravilhosos. As personagens, com suas experiências de vida, é que encantam, seduzem e formam os leitores,

12 sobretudo os leitores-crianças. Esse capítulo tem como apoio as teorias de Bruno Bettelheim (2002), Beth Brait (1994), Antonio Candido (2002), Anatol Rosenfeld (2002) e Vladimir Propp (1984), entre outros. E, para mostrarmos a relação entre as personagens dos contos maravilhosos e o arquétipo da criança divina, original, buscamos o pensamento essencial de Carl Jung (2011), Karl Kerényi (2011), Cláudio Naranjo (2001), Marie-Louise Von Franz (1990), Mircea Eliade (1994) e o próprio Gaston Bachelard (2001). No terceiro capitulo, A Forma Narrativa Simples e a Profundidade dos Sentidos da Vida na Obra de Hans Christian Andersen, devota-se inteiramente à apresentação, à explicitação da obra do poeta dinamarquês, suas personagens e a sua importância para a formação da criança, destacando-se dois contos mais conhecidos, Sapatinhos Vermelhos e O Patinho Feio. A análise dos contos busca apreender o princípio compositivo das personagens Sapatinhos Vermelhos e Patinho Feio e do enredo da estória de vida de cada uma delas. A análise visa também esclarecer como os acontecimentos trágicos, de dor, de solidão, de tristeza, de dúvidas, de perdas dos protagonistas engrandecem os contos de Andersen e apontam, paradoxalmente, para uma final feliz, porque há sempre a busca pela realização dos sonhos, pela essência do ser. Para desenvolvermos a análise também lançaremos mão de outros estudiosos, além daqueles em que nos apoiamos para desenvolver o capítulo primeiro e o segundo. Nesse caso, a interpretação psicanalítica de autores Clarissa Pinkola Estés (1994) e de Wagner Wangerin Jr (2005) serão bastante importantes para nossa leitura. E, então, chegamos à conclusão, quase em forma de capítulo, E Hans Christian Andersen ficou sendo... pois todo fim é bom, para que possamos melhor alcançar o sentido da totalidade da obra de Andersen e dos contos que, embora sejam genuinamente clássicos, não foram trabalhados por nós detalhadamente já que não havia tempo suficiente: O Valente Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia ou A Pequena Vendedora de Fósforos. Percebemos, então, que as personagens das estórias de Andersen, perdedoras-vencedoras no jogo dos devaneios poéticos e da vida, afinal acabam concretizando o bem e a verdade que buscaram alcançar. As estórias maravilhosas de Andersen no fazem mergulhar no poder do imaginário e da di-versão (versão diferente de nós mesmos). Tudo isso a partir de uma forma narrativa simples, de uma linguagem extremamente poética,

13 ensinando-nos que nossa vida é, como o poeta mesmo disse, um conto de fadas escrito pelas mãos de Deus.

14 1. A LITERATURA INFANTIL E O CONTO DE FADAS Muito se fala sobre a literatura infantil. E o que é a literatura infantil? É a literatura que tem como destinatário as crianças? Para alguns autores, definir a literatura infantil não é uma tarefa fácil, o termo infantil associado à literatura pode não significar que ela tenha sido feita necessária e exclusivamente para crianças. Na verdade, a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde de alguma forma, aos anseios do leitor e, por essa razão, que se identifique com ele. Mas, de que anseios estamos falando? Do encantamento, do maravilhamento, da imaginação criativa? Da necessidade de ultrapassar limites, obstáculos, buscar a melhor resposta para as nossas dores e, assim, tornarmos capazes para vivermos uma vida digna porque repleta de poesia? Com efeito, antes de ser infantil, a literatura destinada às crianças - e não só a elas, mas a destinada a todos nós crianças ou não -, deve guardar o vigor e o fascínio da poiesis 1. De acordo com Martina Sanchez (1983), em seu tratado sobre literatura infantil, à criança deve ser oferecida uma experiência rica em imaginação, dinâmica na linguagem e nas ideias: O espírito da criança precisa de drama, da movimentação dos personagens, da soma das experiências populares. Isto associado a uma linguagem correta, acrescida de uma boa dose de fantasia, clareza de ideias e não querer ser moralista, mas divertir. (SANCHEZ, 1983. p.10-11) Para Sanchez (1983) soltar a fantasia é mergulhar nesse maravilhoso mundo do faz-de-conta, onde o tempo e o espaço não contam, onde cada ser e cada coisa tem sua realização, a sua individualidade. Um cosmos criado pela criança e no qual ela mesma se inventa e reinventa a cada instante. Essa é a grande literatura, independentemente de seu público. Estórias divertidas porque possibilitam aos seus leitores, sobretudo às crianças (inclusive aquelas que ainda moram dentro do adulto que já somos), diferirem-se, verterem-se, em diferentes formas, experiências. Essas são as estórias que também as crianças preferem ler. 1 Poiesis é um substantivo que se forma do verbo grego poiein. Este assinala no grego a ação de fazer diversificada, mas, sobretudo, a questão da essência do agir, daí estar ligada à poiesis, no sentido que hoje consideramos criação. Esta pressupõe um fazer surgir, um figurar algo a partir do nada, ou no pensamento mítico, a partir da Terra, e mais tarde a partir da physis.

15 Cecília Meireles, em seu livro Problemas da Literatura Infantil (1984), ressalta que a literatura infantil não é aquela que tem as crianças como público-alvo definido, mas a que as crianças gostam de ler. E o que as crianças gostam de ler? Um bom livro, um livro cuja produção se dá independentemente do público alvo (crianças ou adultos, homens ou mulheres) e proporciona uma leitura agradável, que faz o leitor voltar, reler, discutir, apreciar. Para Cecília Meireles, o livro infantil deve seguir o mesmo princípio. Muitas obras literárias que são lidas na infância permanecem guardadas na memória de jovens e adultos que não se cansam de regressar às suas estórias favoritas. Compreender as razões pelas quais as crianças preferem determinados livros é perceber que o que está em jogo, na literatura e na vida, é o quanto já se desistiu do poder do pequeno das coisas infantis quando se chega à fase adulta. A indagação que se coloca ao escritor, ao leitor, ao estudioso da literatura infantil é saber o quanto há de criança no adulto para que ele possa se comunicar com ela e o que há de adulto na criança para que ela possa receber aquilo que esse adulto quer oferecer. Não se trata apenas do estilo: livros fáceis, simples, que estejam, de fato, ao alcance da criança. O mundo das crianças não é tão fácil e simples como se pensa. Além disso, o estilo a forma, a linguagem não está divorciado do conteúdo, dos Fatos ao alcance da criança, e dos quais decorram conseqüências ou ensinamentos que o adulto julga interessante para ela. (MEIRELES, 1984, p.29). Com efeito, qualquer tema encenado de forma correta pode transformar-se em livro infantil. E isso acontece na maioria das vezes. O essencial é deixar que a criança viva a experiência provocada pelo livro, a fim de que carregue por toda a vida os cenários, os sons e os ritmos, as aventuras, as descobertas e todo o poder do dizer, da comunicação, que a linguagem lhe oferta. Apenas nesses termos é que interessa falar no livro que a criança prefere: Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança livremente descobriu pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, és um livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal. (MEIRELES, 1984, p.31). O prestígio imortal do livro infantil, nos termos de Cecília Meireles, se dá porque a literatura é alimento, nutrição, para a alma, e não um mero passatempo. A leitura de grandes livros tem o poder de abrandar o perigo a que se expõe a criança

16 em um mundo completamente abalado e repleto de valores desvirtuados. A escolha do livro para criança deve discriminar as qualidades de formação humana que serão reveladas por meio de sua acessibilidade, mas deixando sempre uma margem [...] para o mistério, para o que a infância descobre pela genialidade da sua intuição. (MEIRELES, 1984, p. 43). Carlos Drummond de Andrade aponta que a questão central é indagar se a literatura infantil faz parte da literatura geral, se existe mesmo uma literatura infantil: O gênero literatura infantil tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro de viagens ou aventuras destinado a adultos, em linguagem simples e isento de matéria de escândalo, que não agrade à criança? Observados alguns cuidados de linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz. Será a criança um ser à parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura também à parte, ou será a literatura infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado, porque coisa primária, fabricada na persuasão de que a imitação da infância é a própria infância? (ANDRADE apud DINORAH, 1996 p. 27). Podemos, então, considerar que tudo é uma literatura só, mas a dificuldade está em delimitar o que realmente é infantil na literatura. Costuma-se classificar os livros de acordo com critérios preestabelecidos por adultos quando, na verdade, precisamos escutar a voz das crianças, pois são elas mesmas que o intuem e delimitam com suas preferências. É nesse contexto que podemos compreender a natureza e o valor dos contos de fadas na formação da criança. Forma artística suprema cujas raízes mitopoéticas remontam às formas arcaicas da poesia, o conto de fadas, sobretudo se considerarmos algumas leituras que determinadas correntes críticas modernas fizeram dessa prosa de ficção, não pode ser reduzido à narração de acontecimentos cotidianos cuja função utilitário-pedagógica, moralizante, bem realística, é ensinar sobre o que se deve ou não fazer, o que se deve pensar, sentir, imaginar ou não, tudo muito normativo e restritivo do poder que o imaginário, o devaneio poético, a originalidade e a criatividade do ser-aí no mundo desempenham para a criança. Jacqueline Held (1980), no livro O Imaginário no Poder, ressalta que os realistas, aqueles que demandam da literatura uma função exclusivamente referencial e pragmática desconsiderando a poiesis a função poética, o imaginário, a invenção, a originalidade das obras literárias -, buscam apenas as experiências do dia, com sua objetividade, racionalidade, realidade, esquecendo-se das experiências

17 da noite, negligenciando-se o valor supremo dos sonhos, da imaginação, do devaneio poético também presentes nos contos de fadas. A poesia, a ficção, o imaginário, de acordo com Held (1980), responde à necessidade da criança de não se contentar com sua própria vida, mas abrir portas para outras possibilidades de vê-la, experimentá-la, regenerá-la, recriando-a pelo imaginário. Embora proponha como mais adequado o termo fantástico, e não o maravilhoso, Held assinala que é o fantástico ou, para nós, o maravilhoso, o fabuloso, o feérico, é a energia, o quantum, que torna a literatura fonte de encantamento e dá a ela o valor de uma experiência tão cara às crianças: a experiência da novidade, da liberdade, da inventividade. Se as crianças se reconhecem nas estórias que narram a vida, o real, como acontecimento de puro devir, de inesgotáveis possibilidades, de incessante renovação, elas não se interessam por estórias que repetem fórmulas prontas, que ditam preceitos morais estabelecidos (HELD, 1980, p.23) O conto, qualquer conto inclusive o conto de fadas, caracteriza-se, segundo Luzia Maria (1984), como sendo uma narrativa curta, um texto em prosa que dá o seu recado em reduzido número de páginas ou linhas. Curto, porém denso, o conto leva o leitor para além do espaço do dito, ou seja, para aquilo que fala mesmo no silêncio das entrelinhas. A concisão e a precisão, como centelhas, nos levam ao mistério que se oferece a nós no abrir-se e fechar-se rápido que lhe são próprios. O grande segredo é o imaginário e a fantasia, mas o mais interessante é a forma simples como a narrativa tece as imagens poéticas, conforme ressalta Andre Jolles (1976) em seu livro Forma Simples. É na forma simples, curta, condensada da narrativa que a linguagem, as personagens, os lugares e incidentes permanece fluidos, abertos, dotados de mobilidade e de capacidade de renovação constante. Assim sendo, a alethopoiesis 2, que também preside o conto maravilhoso, é um jogo imaginativo que diverte, encanta, fascina o leitor. Mexendo com os sentidos do corpo e do espírito, trazendo tudo que é sensível e inteligível; o conto maravilhoso, feérico, fantástico, brinca com nosso ser mais profundo, desperta a criança que está fora e a que está dentro de nós. Saímos da vida cotidiana, do tempo físico, 2 A poesia traz à memória o movimento de velamento-desvelamento da physis que quer bem ocultarse.

18 cronológico, que a rege e, como nos diz Mircea Eliade (1994) em Mito e Realidade, ingressamos num tempo qualitativamente sagrado, um tempo primordial, mítico, significativo e exemplar. Mas para entrarmos nos tempos fabulosos, é preciso, como enfatiza Gastón Bachelard, ser sério como uma criança sonhadora. (2001, p. 113). Assim deve ser quando estamos diante do universo das crianças. Assim deve ser quando lemos os contos de fadas e mergulharmos nos devaneios poéticos em demanda da infância. Assim deve ser quando estamos diante das experiências vivenciadas pelas personagens do conto maravilhoso de Hans Christian Andersen.

19 2. O VALOR DA PERSONAGEM NO CONTO MARAVILHOSO A personagem desempenha um papel importante na construção dos contos maravilhosos. É a partir da personagem que os contos instauram o mundo do fazde-conta (o do imaginário, do fabuloso, do feérico) e, paradoxalmente, a verdade que se realiza pela representação (poética, ficcional, fingida) desse mundo, pois é a personagens que vive o enredo e as idéias, e os torna vivos (CANDIDO, 2002, p.54). São as personagens que sentem, pensam, desejam e sonham, agem sobre outras e revelam-se umas pelas outras (BRAIT, 1985, p. 47). Podem ser meninos, meninas, velhos, velhas, reis, rainhas, carrascos, soldados, gigantes, anões, fadas, bruxas, monstros, sereias, animais de toda espécie, objetos inanimados ou qualquer outro elemento que, segundo Nelly Novaes Coelho (1998), gire em torno de uma problemática existencial que, na maioria das vezes, são questões relativas à auto-realização da personagem. As personagens, seres ficcionais cujo caráter paradoxal é assinalado por Antônio- Candido (2002) em seu capitulo sobre A personagem no romance, instauram o jogo entre verdade e ficção, dando sentido à literatura e, ao mesmo tempo, convertendo a literatura em forma privilegiada de conhecimento - não apenas racional, mas, e principalmente, passional - da vida ao vivo e a cores. Segundo Yves Reuter (2002), em seu livro A Análise da Narrativa, é por essa razão que existem tantos estudos sobre a personagem dos contos maravilhosos, seja na linha estrutural, morfológica, como o estudo de Vladimir Propp (1984), seja na psicanalítica como os estudos de Bruno Betlheim (2002), Marie-Louise Von Franz (1990) ou Clarissa Pinkola Estés (1994) entre outros. Todos os esforços analíticos, entretanto, perderiam sua razão de ser se não levássemos em consideração o caráter original, instaurador, realizador da poiesis que funda os contos maravilhosos e lhes possibilita o valor cognitivo, formativo e terapêutico que deles emana, sobretudo quando pensamos o fascínio que suas personagens exercem nas crianças que os leem. Como compreender a personagem dos contos maravilhosos então? Como lidar com o aspecto mimético, representacional, dos contos maravilhosos, principalmente quando falamos das personagens? Busquemos algumas respostas.

20 2.1. A personagem e a morfologia do conto maravilhoso segundo Vladimir Propp Wladimir Propp (1984), em sua Morfologia do Conto Maravilhoso, estuda, a partir dos contos maravilhosos russos, as diferentes ações das personagens bem como as funções constantes e variáveis presentes em um conto maravilhoso. De acordo com o formalista russo, é possível estabelecer uma morfologia comum às diferentes formas de contos os maravilhosos, os folclóricos, os feéricos -, sobretudo daqueles que são muito próximos das raízes orais e populares da literatura: as ações podem ser de grandezas constantes e grandezas variáveis, delineando uma determinada estrutura, uma tipologia. As grandezas constantes são aquelas que são realizadas por diferentes personagens de forma igual. Já as grandezas variáveis são os meios pelos quais as ações são realizadas. Os contos de Andersen apresentam alguns elementos pertencentes à tipologia proppiana, mas ultrapassam essa morfologia porque não se esgotam nessa estrutura: Andersen traz elementos inovadores, em grande parte, atrelados à visão romântica de raiz germânica da literatura, sobretudo no que se refere à forma como as personagens são apresentadas em suas ações e sentimentos. Teóricos do estruturalismo francês, principalmente Greimas (REUTER, 2002) aproveitam a riqueza de funções apresentadas por Propp, e apresentam uma descrição mais simples, sucinta, sem muitas variações da estrutura narrativa dos contos, que pode ser eficaz na análise dos contos maravilhosos de Andersen. De acordo com esses teóricos, a estrutura básica de um conto mostra o seguinte esquema: o Estado Inicial, a Complicação, a Dinâmica, a Resolução e o Estado Final. Após a situação inicial, em que o narrador apresenta o protagonista da estória, a família e os amigos do protagonista, o tempo e o espaço da ação, acompanhamos as diferentes complicações enfrentadas pela personagem central que dinamizam a sua busca e que valorizam sua jornada, rumo à resolução de seus problemas existenciais e à sua auto-realização para que ela experimente um estado final, que pode ser triste e/ou feliz. Entre as complicações descritas por Propp, ressaltamos algumas que julgamos importantes à leitura que fazemos dos contos de Andersen: a falta de um bem material ou de valores afetivos e sociais; o afastamento de um lugar, de um objeto querido ou de uma pessoa

21 amada; a proibição / o interdito, cujo aspecto transformador é a chegada repentina da adversidade; a cumplicidade e o antagonismo entre personagens; os danos que as adversidades e os antagonistas causam; as provas pelas quais os protagonistas passam provocando as mais distintas reações... Tudo que, segundo Propp, é essencial à própria dinâmica do conto. Mas as personagens também devem ser estudadas a partir de seus atributos. E Propp (1984) aponta nos contos maravilhosos russos um conjunto de qualidades externas das personagens tais como idade, sexo, situação, aspecto exterior com suas particularidades históricas, sociais, culturais, religiosas. As funções podem ser resumidas em três espécies: o antagonista, o doador e o auxiliar. Os atributos são reunidos também em três tipos: aparência e nomenclatura; particularidades de entrada em cena; e habitat. São as qualidades dadas aos personagens que dão o colorido, a beleza e o encanto necessários aos contos maravilhosos. Ao falar a respeito das diferentes possibilidades de caracterização das personagens, Beth Brait (1985, p. 52) esclarece que qualquer tentativa de sintetizálas esbarra necessariamente na questão do narrador, uma vez tal instância narrativa é que vai conduzindo o leitor por um mundo que parece estar se criando à sua frente. De acordo com a estudiosa, A apresentação da personagem por um narrador que está fora da história é um recurso muito antigo e muito eficaz, dependendo de habilidade do escritor que o maneja. Num certo sentido, é um artifício primeiro, uma manifestação quase espontânea da tentativa de criar uma história que deve ganhar a credibilidade do leitor (...) a personagem não é posta em cena por ela mesma, mas por suas aventuras, pelo relato de suas ações. (BRAIT, 1985, p. 55). O narrador em terceira pessoa focaliza os personagens em momentos importantes e materializa os seres que habitam o universo imaginário do conto. Ele se torna o contador da estória já que tem experiência para se comunicar. Mas ele só poderá trazer a verdade para a criança que o escuta / lê, se narrar a partir da percepção, dos sentidos da paixão das personagens. Assim acontece nos contos maravilhosos de Andersen: o narrador desempenha papel relevante, porque faz uma dupla focalização, alternando distanciamento e proximidade com relação às personagens e também com a relação ao próprio leitor. Em geral, o narrador finge distinguir-se das personagens e, apesar dos pensamentos serem apresentados por um processo de refletorização, e, por isso, de

22 proximidade, das percepções da própria personagem, mantém a terceira pessoa e o pretérito imperfeito fingindo o relato impessoal do narrador. E a natureza dessa mediação nos leva a refletir sobre a importância que a personagem desempenha na construção ficcional das narrativas, sobretudo quando levamos em consideração o interesse e o encantamento que as personagens dos livros infantis despertam nas crianças. 2.2. A personagem e a verdade da ficção no conto maravilhoso Anatol Rosenfeld (2002), ao falar dos aspectos esquematizados 3 da obra de arte literária em seu texto Literatura e Personagem, pode esclarecer sobre o efeito ou eficácia que Andersen retira da forma como configura a esfera de existência das personagens de seus contos: (...) em geral, os textos apresentam-nos tais aspectos mediante os quais se constitui o objeto. Contudo, a preparação especial de selecionados aspectos esquemáticos é de importância fundamental na obra ficcional particularmente quando de certo nível estético - já que dessa forma é solicitada a imaginação concretizadora do apreciador. Tais aspectos esquemáticos, ligados à seleção cuidadosa e precisa da palavra certa com suas conotações peculiares, podem referir-se à aparência física ou aos processos psíquicos de um objeto ou personagem (...). (ROSENFELD, 2002, p.14). Os diferentes seres de uma obra de arte literária são instaurados na e pela linguagem, na e pelas orações e isso acontece por efeito da imaginação que calcula, pensa, compõe, instaura intencionalmente cada realidade, cada objectualidade da obra. É dessa forma que se constrói a realidade das personagens. É como se elas já tivessem uma vida anterior à narrativa que as coloca para existirem. O fictício é real; o real é fictício: esse é o principio imaginativo e compositivo básico que funda uma obra de arte literária. Podemos então compreender a força que tem o Era uma vez dos contos maravilhosos. De acordo com Rosenfeld (2002), o pretérito do verbo ser que aponta 3 Lívila Pereira Maciel (1991, p.15) esclarece que, de acordo com a formulação ingardiana, toda obra de arte literária é uma objetividade complexa, pluriestratificada, polifônica e esquemática. Ela se nos apresenta como uma produção constituída de estratos heterogêneos, interdependentes e inseparáveis, a saber: 1) estrato das formações fônico-lingüísticas (camada dos sons lingüísticos da obra); 2) estrato das unidades da significação (trata do sentido de uma unidade lingüística superior qualquer, antes de tudo, o da oração); 3) estrato das objetividades apresentadas (aquilo de que se fala na obra); 4) estrato dos aspectos esquematizados (o conteúdo concreto de nossas observações, dependente das particularidades do objeto observado, das circunstâncias na qual a observação se faz e das particularidades psicofísicas do sujeito que observa).

23 o caráter fictício do era uma vez assume potência de presente e de verdade, de realidade, dada a força realizadora, instauradora da linguagem que coloca à frente do leitor uma existência plena, com sua estória de vida pessoal. É através da personagem, segundo Rosenfeld (2002), que a camada imaginária se adensa e se concretiza (realiza-se). A personagem é ser que se constrói na e pela ficção, na e pela expressiva força da linguagem que transforma mera descrição em vivência, não podendo a personagem ser confundida, como muitas vezes acontece, com pessoas pré-existentes, extratextuais nem mesmo com a pessoalidade do próprio autor. A verdade dentro da obra de ficção, tem significado diverso do que comumente consideramos. Coerência, autenticidade, dentro do mundo imaginário e concernente às personagens e às situações vivenciadas por elas, surge do poder mimético / representativo 4, da estrutura das orações ficcionais que, embora pareça ser a mesma dos textos não ficcionais, nota-se o esforço de particularizar, concretizar, individualizar o objeto através da preparação de aspectos esquematizados e de uma multiplicidade de pormenores circunstanciais que visam acionar a imaginação, o devaneio poético, e dar realidade, concretude à situação imaginária. O escritor convida o leitor a dar continuidade ao que é fictício, à camada imaginária que tem força de realidade, como nos explica Antônio Candido (...) é paradoxalmente esta intensa aparência de realidade que revela a intenção ficcional ou mimética. Graças ao vigor dos detalhes, à veracidade de dados insignificantes, à coerência interna, à logica das motivações, à causalidade dos eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário. (CANDIDO, 2002.p.20). Cada frase do conto, assim como cada verso de um poema, mobiliza todas as virtualidades expressivas da língua e toda a energia imaginativa. Tudo é transformado pela imaginação. A linguagem poética, em contato com o mítico e com o real, visa transformar as expressões nas mais verdadeiras, sem, contudo, se limitar a nos dar uma cópia fidedigna ao pré-existente ao conto. Esse valor estético depende, como nos diz Rosenfeld (2002, p. 36), da escolha da palavra justa, 4 Mimese, representação, não como imitação do originado, do já existente, mas como imitação do processo incessantemente renovado de originar-se das coisas que são muito mais do que parecem ser, como nos esclarece Eudoro de Sousa em seus comentários na tradução que faz da Poética de Aristóteles. A mimese, a representação na obra de arte literária diz sempre da força, do vigor, da origem (SOUSA apud ARISTÓTELES, s/d)

24 insubstituível, da sonoridade específica dos fonemas, das conotações das palavras, da carga das suas zonas semânticas marginais, do jogo metafórico, do estilo. O escritor nos dá os seres e as situações narrativas (o objeto da mimese) não como reconhecimento, como retrato fidelíssimo do já acontecido, mas como uma visão sempre nova, inesperada, e, por isso mesmo, cheia de verdade, de realidade. Trata-se de uma visão figurada (correlacionada ao fingere 5 ), metafórica, estilizada, altamente simbólica, das experiências do ser humano, cuja totalidade, cuja plenitude jamais se poderá apreender de uma vez e para sempre. Tal é a força lúdica, ficcional, poética, do como se, ou do era uma vez, ou do faz de conta das narrativas literárias, força que as próprias crianças entendem muito bem. É por essa razão que, segundo Bachelard (2001), os devaneios poéticos não contam apenas estórias, mas nos ajudam a mergulharmos na nossa própria história. É essencial que permaneçamos com nossa alma infantil imóvel para que nunca percamos a liberdade que o devaneio poético traz. Afinal, se, como o próprio filósofo diz, A infância conhece a infelicidade pelos homens (2001, p.94), precisamos avivar nossos devaneios de criança, onde a imagem sempre nova, primeira, fresca e restauradora como as fontes, prevalece acima de tudo. Os poetas, com seus devaneios poéticos, nos colocam novamente em demanda da infância, para enxergamos o mundo e sua grandeza, a partir da imaginação, do maravilhoso, tudo grande, dando origem as maiores paisagens. Para Bachelard, toda infância é fabulosa, naturalmente fabulosa (2001, p.112). A importância do olhar da criança nos contos maravilhosos é que os devaneios poéticos das crianças revelam a poesia, a originalidade, o ver e o sentir pela primeira vez, da própria estória narrada, com seus acontecimentos e suas personagens. Revelação que inclui o caráter poético do próprio ser do autor e do leitor bem como da capacidade de reinvenção da própria vida: essa é a riqueza da forma narrativa simples dos contos de Anders 5 Verbo latino fingere: talhar, instaurar, dar figura a toda matéria. Ao fingere corresponde o grego poiein.

25 3. A FORMA NARRATIVA SIMPLES E A PROFUNDIDADE DOS SENTIDOS DA VIDA NA OBRA DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN Por que Hans Christian Andersen é tão importante? A razão está na riqueza e profundidade de sua obra, tão atual porque permanece encantando todos, não só as crianças, pela beleza, pela sensibilidade, pela ternura, e por tratar de temas do nosso cotidiano. A obra do escritor dinamarquês é um divisor de águas na história da literatura infanto-juvenil universal. Não obstante considerarmos a trindade de escritores Charles Perrault, irmãos Grimm e Hans Christian Andersen como responsável pela difusão dos contos maravilhosos ou feéricos, Andersen, de maneira distinta, não se limita a recolher as estórias tradicionais, os contos populares e orais. Como ressalta Ana Maria Machado (2002), o poeta dinamarquês confere um estatuto de originalidade, novidade, às suas estórias, deixando sua marca inconfundível no maravilhoso mundo dos contos: uma visão poética misturada com profunda ternura, suave melancolia ou tristeza. O mundo maravilhoso criado por Andersen toca a sensibilidade do leitor. Genuíno criador e contador de estórias, Andersen fez, e continua fazendo até hoje, mesmo com as exigências de outros tempos, um grande público, porque os sentimentos mais profundos do ser humano são, segundo Nelly Novaes Coelho (1998), os mesmos em qualquer época: Os contos carregam uma significativa herança de sentidos ocultos e essenciais para a nossa vida, e a literatura é sem duvida uma das expressões mais significativas dessa ânsia permanente de saber e de domínio sobre a vida, que caracteriza o homem de todas as épocas. (COELHO, 1998, p. 10-11). Nascido no seio de uma família muito pobre, Andersen viu-se obrigado a abandonar os estudos logo cedo para se sustentar, passando por vários empregos até se tornar um grande poeta. Andersen teve a oportunidade de conhecer bem os contrastes da abundância organizada, ao lado da miséria sem horizontes. Mas Andersen teve também, desde a mais tenra infância, o privilégio de ser marcado e influenciado pelas mais diferentes narrativas. Associando a vida que viveu às narrativas que ouviu e leu, Andersen nos oferece uma obra que se revela como

26 verdadeira caixinha de surpresas 6. Ele mescla, transpõe, funde, transforma os estímulos recebidos da vida e dos livros que leu em obra de arte literária completamente nova e original. As estórias do escritor dinamarquês, como assinala Cristiane Madanêlo de Oliveira (2011), encenam eventos e personagens que nos remetem à realidade cotidiana da vida dos seus leitores e, ao mesmo tempo, trazem a marca própria do mundo fantástico da imaginação. Andersen não se preocupou com o problema moral através de um didatismo moralizante. Preocupou-se em que seus contos fossem poéticos, como poeta que era. O poeta da infância., enfatiza Martina Sanchez (1983, p.59). Essa é a razão pela qual sua obra se tornou um clássico da literatura infantil, mesmo que os desfechos de suas estórias não sejam, aparentemente, tão felizes. Os clássicos, segundo Ítalo Calvino (1993), são riqueza para aqueles que o leram, releram e amaram. São plenos de descobertas, pois os clássicos nunca terminam de dizer aquilo que tinham para dizer. É o que acontece quando lemos A Pequena Vendedora de Fósforos, A Roupa Nova do Rei, O Valente Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia, Sapatinhos Vermelhos ou O Patinho Feio. Os contos de Hans Christian Andersen são clássicos porque seus temas, suas personagens, são mimese da realidade e nos transmitem verdades, valores, e, a cada vez que lemos, descobrimos algo novo, significativo para nossas vidas. Enfrentar dilemas existenciais, mergulhar nos dramas da condição humana, nada mais importante do que essa experiência para o crescimento de todos nós. Esse caminho de aprendizado, na visão de Andersen, deve ser modulado, conduzido, pela arte literária, na fruição do prazer estético. É a imaginação poética de Andersen que torna mais explícito e questionável, conforme nos diz Coelho (1998, p.23), o espírito liberal-burguês que põe em evidência o individualismo, a riqueza, o trabalho, a luta pela sobrevivência e contra a pobreza, valores exigidos pela sociedade que se consolidava no século XVIII. Além de nos levar a pensar sobre os valores sociais, políticos e culturais que regiam e 6 Andersen tem um conto que se chama Caixinha de Surpresas. A menina, protagonista do conto, leva uma bronca do pai porque estava gastando um papel de presente. O pai se arrepende quando descobre que o papel era para embrulhar uma caixinha de presente que ela daria a ele. Logo depois, fica com raiva quando descobre que não havia nada dentro da caixinha. Mas a supresa acontece mais uma vez, e de forma mais bela e extraordinária: o pai fica sabendo pela menina que ela havia colocado muitos beijos dela dentro da caixinha.

27 poderiam reger a vida dos homens em sociedade (em qualquer tempo, não apenas na da época em que o autor vivia), os contos de Andersen, de forma poética, simbólica, lúdica, um projeto ético, estético e educador que se fundasse nos valores cristãos, para ele virtudes básicas possíveis e desejáveis para nortear pensamentos e ações da humanidade. Os contos maravilhosos de Andersen, assim como os contos de fada, são, de acordo com a Psicanálise, uma forma de prender a atenção e despertar a curiosidade, estimular a imaginação, promovendo o desenvolvimento do intelecto e da emoção da criança. Os diferentes sentidos, o caráter simbólico, que emanam das variadas experiências das personagens dos contos maravilhosos, estão ligados aos eternos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional. Segundo Bruno Bettelheim, Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança, deve entretêla e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam. Resumindo, deve de uma só vez relacionar-se com todos os aspectos de sua personalidade - e isso sem nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro crédito a seus predicamentos e, simultaneamente, promovendo a confiança nela mesma e no seu futuro. (BETTELHEIM, 2002, p.5) Nas obras de Andersen há uma mistura entre o maravilhoso e o realismo, a maioria das narrativas apresenta personagens, espaços e problemáticas extraídos da realidade comum, porém o mágico e o lúdico estão em tudo, estão tão naturalmente presentes que acontecem em qualquer espaço, abolindo-se as fronteiras entre o real e a fantasia. A forma simples da narrativa de Andersen convida o leitor ao dinamismo, à grandeza e à profundidade dos sentidos da vida que lhe comparecem pela imensa riqueza de imagens poéticas que o escritor dinamarquês lhe oferece. Segundo Bachelard (2001), a beleza da alma, da psique, diante dos acontecimentos, quaisquer que sejam eles, está em nós, está no âmago de nossas memórias. É o impulso que nos anima e que nos mostra o dinamismo da beleza da vida. Todos nós sonhamos com a liberdade, assim como costumávamos sonhar na infância. É no devaneio que nos tornamos seres livres:

28 Sonhamos enquanto nos lembramos. Lembramo-nos enquanto sonhamos. Nossas lembranças nos devolvem um rio singelo que reflete um céu apoiado nas colinas. Mas a colina recresce, a enseada do rio se alarga. O pequeno faz-se grande. O mundo do devaneio da infância é grande, maior que o mundo oferecido ao devaneio de hoje. Do devaneio poético diante de um grande espetáculo do mundo ao devaneio da infância há um comércio de grandeza. Assim, a infância está na origem das maiores paisagens. Nossas solidões de criança deram-nos as imensidades primitivas. Ao sonhar com a infância, regressamos à morada dos devaneios, aos devaneios que nos abriram o mundo. (BACHELARD, 2001, p.96) Podemos compreender, então, por que os contos maravilhosos que tem como princípio imaginativo e construtivo a perspectiva da infância são tão importantes. Ao ler os contos de Andersen, por exemplo, a criança imagina, sonha, brinca, pensa, sente. Nessa brincadeira, tem a liberdade e ousadia de inventar e criar um mundo e a si mesma. Mas ela é capaz, como todo poeta, de distinguir essa brincadeira da realidade. Ela é sabe quando está no faz de conta e, saboreando esse real produzido pela estória maravilhosa, se imagina um patinho feio, um belo e jovem cisne, uma sereiazinha, um soldadinho de chumbo, uma menina de sapatinhos vermelhos, uma pequena vendedora de fósforos, um menino ou uma menina que é capaz de, pela sabedoria do riso, apontar que o rei está nu. Mas não confunde essa representação com o real. A criança sabe que é um jogo. Sabe que o real pode ser interpretado, compreendido, a partir do horizonte de sentido que aquele conto maravilhoso de Andersen pode ofertar. E o jogo, segundo Huizinga, é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana. (HUIZINGA, 2001, p. 33) Os contos maravilhosos de Andersen, como o jogo, é uma atividade espontânea que vem acompanhada de emoções, de desejos, de sonhos, e é justamente esse prazer lúdico que chama a atenção da criança, pois o jogo e a brincadeira fazem parte do instinto infantil, além de conduzirem a criança que lê o conto ao mundo da imaginação e do onirismo, habitado por toda sorte de personagens, sereias, bonecos e animais que pensam e falam... As personagens desse mundo maravilhoso são representações, mimese, da nossa humanidade, da nossa história/história. Nelas reconhecemos o que acontece em nossas vidas.

29 As personagens são a ponte entre o eu e o mundo imaginário. A Pequena Vendedora de fósforos, o Soldadinho de Chumbo e a Pequena Sereia, por exemplo, nos emocionam, fazem-nos chorar, mesmo sabendo nós que se trata de personagens de ficção, de seres fictícios. Isto porque Andersen prima pela mimese, entendida como representação que guarda uma semelhança, e não uma cópia, em relação ao seu objeto, como nos fala Palo e Oliveira (2001, p. 74), e porque se sobressai pela especial verossimilhança que suas personagens tem com a realidade, caráter fundamental da poesia, como já Aristóteles ressaltava em sua Poética. As personagens de Andersen, e também seus leitores, sobretudo as crianças que amam ler suas venturas e desventuras, recordam-nos que uma criança é sempre a personificação de forças vitais, como nos explicam Karl Kerényi e Carl Jung no livro A Criança Divina: uma introdução à essência da mitologia (2011). A criança traz a memória da origem. Essas forças vão além do alcance limitado da consciência; são manifestações daquilo que chamam de mitologema (Kerényi) ou arquétipo (Jung). Jung, no capítulo que fala da psicologia do arquétipo da criança, explica que a criança representa o mais forte impulso do ser de realizar-se a si mesmo. O impulso e compulsão da auto-realização é uma lei da natureza e, por isso, tem uma força invencível mesmo que o seu efeito seja no início insignificante e improvável (JUNG, 2011, p. 135). Dessa forma, o aspecto mais importante do arquétipo da criança é seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial (JUNG, 2011, p. 126-127), mesmo que, ao motivo da criança, esteja associado outro aspecto típico que é o de ser, ao mesmo tempo, menor que pequeno e maior que grande. As personagens de Andersen submetem-se a toda espécie de perigos e isso nos leva a pensar no arquétipo da criança. O abandono e o perigo da perseguição aparecem, de acordo com Jung, como obstáculos impostos à criança e também fazem parte das manifestações do arquétipo da criança-deus ou do heróicriança. Jung traz inúmeras reflexões sobre o arquétipo da criança divina e analisa de forma adequada a questão do tamanho: O motivo da insignificância, do estar exposto a, do abandono, perigo, etc. procura representar a precariedade da possibilidade da existência psíquica da totalidade, isto é, a enorme dificuldade de atingir este bem supremo. Caracteriza também a impotência, o desamparo daquele impulso de vida o qual obriga tudo o que cresce a obedecer à lei da máxima auto-realização;