FILOSOFIA E CIÊNCIA. J. M. Paulo Serra. www.lusosofia.net



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Transcrição:

FILOSOFIA E CIÊNCIA J. M. Paulo Serra 2008

Covilhã, 2008 FICHA TÉCNICA Título: Filosofia e Ciência Autor: Joaquim Mateus Paulo Serra Colecção: Artigos LUSOSOFIA Direcção: José Rosa & Artur Morão Design da Capa: António Rodrigues Tomé Composição & Paginação: José M. Silva Rosa Universidade da Beira Interior Covilhã, 2008

Filosofia e Ciência J. M. Paulo Serra Universidade da Beira Interior Indice 1 A Filosofia como mãe das ciências 4 2 A Filosofia como irmã da Ciência 8 3 Irmandade ou miscigenação 11 4 Conclusão 13 Intervenção na abertura do 9 o Encontro de Jovens Investigadores, em 12 de Abril de 2003, no Seminário do Verbo Divino, Tortosendo. 3

4 J. M. Paulo Serra 1 A Filosofia como mãe das ciências A consciência de que há, entre a Filosofia e a Ciência 1, relações muito estreitas revela-se, desde logo, na afirmação invariavelmente repetida de que a Filosofia é a mãe das ciências. Uma tal afirmação pode compreender-se em pelo menos dois sentidos fundamentais: i) No sentido em que a Filosofia foi a primeira forma do chamado conhecimento racional, representando a Ciência as ciências a segunda forma desse mesmo conhecimento; mas, sobretudo ii) No sentido em que, à medida que ia aumentando o conhecimento, foi surgindo a necessidade de especialização em determinados campos problemáticos os números, o movimento, os seres vivos, etc., o que foi levando ao surgimento das diversas ciências a partir da Filosofia. Ora, esta concepção maternalista da relação entre Filosofia e Ciência foi entendida, no decurso da História, de duas formas opostas: a forma a que chamaremos a mãe tirana, e que aponta no sentido da subordinação das ciências à Filosofia; a forma a que chamaremos as matricidas, e que aponta no sentido da subordinação da Filosofia às ciências, e, no limite, do desaparecimento daquela no seio destas. Analisaremos, no que se segue, cada uma destas formas. 1 A utilização dos termos Filosofia e Ciência, neste texto, pode prestar-se a alguns equívocos. De facto, quando hoje nos referimos à Filosofia e à(s) Ciência(s) referimo-nos, fundamentalmente, à profissão, ou, pelo menos, ocupação, de um certo tipo de especialistas, formados em instituições próprias, utilizando linguagens, métodos e formas de validação do conhecimento específicas. No tempo épico dos gregos, pelo contrário, Filosofia designava, globalmente, o amor da sabedoria, e a palavra Ciência (episteme) era definida, por Platão, como uma forma de conhecimento oposta à opinião ou senso comum (doxa) pelo que uma e outra, que podem ser consideradas como sinónimas, englobavam aquilo a que hoje chamamos Filosofia e Ciência.

Filosofia e Ciência 5 1. Salva uma ou outra excepção, até meados do século XIX a maternidade da Filosofia em relação às ciências foi entendida, geralmente, no sentido de uma subordinação das segundas em relação à primeira em termos de fundamentos, de métodos e de objectivos; uma subordinação que, note-se, e no que respeita à maior parte do período em questão, é perfeitamente natural no sentido em que nem sequer é entendida como subordinação, já que os homens que faziam ciência se consideravam e se designavam a si próprios como filósofos e a ciência não era por eles entendida senão como parte da filosofia. 2 Assim, e para darmos apenas alguns exemplos, para Platão as ciências no caso, as Matemáticas, o conhecimento discursivo ou dianoético tendo por objecto os números e as figuras constituíam uma propedêutica para a Filosofia propriamente dita, para o conhecimento intuitivo ou noético, tendo como objecto as Ideias. Para Aristóteles, a ciência suprema é a Metafísica ou Filosofia Primeira, que trata do Ser, e que se encontra incluída nas ciências ditas teoréticas, elas próprias superiores quer às ciências práticas quer às ciências produtivas. Para Descartes, a Metafísica constituía as raízes a base da árvore do saber, constituindo a Física o tronco e a Mecânica, a Medicina e a Moral os principais ramos. 2 Refiram-se apenas alguns casos conhecidos: Platão tinha as matemáticas como um dos principais objectos de estudo da sua Academia; Aristóteles foi botânico, biólogo, astrónomo, físico e psicólogo; Descartes foi físico e matemático; Pascal foi físico e matemático; Leibniz foi físico e matemático; Kant foi um dos inventores de uma célebre teoria cosmológica; Marx é um dos fundadores da economia política e da sociologia; Simmel é um dos fundadores da sociologia. Dois outros casos muito ilustrativos são o de Galileu que, invariavelmente, se refere ao estudo matenático-experimental da natureza com o termo filosofia lembre-se a afirmação do Il Saggiatore, de 1623, segundo a qual A Filosofia está escrita nesse grandíssimo livro que continuamente está aberto diante dos nosso olhos (eu digo, o Universo) e o de Newron que, em 1687, faz publicar a sua obra fundamental sob o título Princípios Matemáticos de Filosofia Natural.

6 J. M. Paulo Serra Levando a subordinação ao extremo, Hegel pretende construir um Sistema da Ciência entenda-se: um sistema de Filosofia total e definitivo, de que a Fenomenologia do Espírito constituiria a primeira parte. Já no século XX, e se bem que a partir de supostos e com objectivos diferentes que, no entanto, muitas vezes acabam por confluir com aqueles que critica, Husserl esboça o projecto de uma Filosofia como ciência rigorosa, que, enquanto apreensão fenomenológica das essências 3, deve fundar as próprias ciências empíricas, nomeadamente a psicologia. Dos grandes filósofos de até meados do século XIX, apenas Kant escapa tendo talvez mesmo dito a palavra definitiva sobre a matéria a esta visão maternalista da Filosofia. Com efeito, para o filósofo alemão, Ciência e Filosofia têm os seus campos bem distintos; se a primeira tem como objecto o conhecimento da Natureza, caberá à segunda, por um lado, determinar as condições e os limites desse conhecimento (responder à questão Que posso conhecer?, objecto da Metafísica ou, como hoje diríamos, da Teoria do Conhecimento), e, por outro lado, reflectir sobre as regras da nossa acção (responder à questão Que devo fazer?, objecto da Filosofia Moral ou Ética), os limites da nossa razão (responder à questão Que devo esperar?, objecto a Filosofia da Religião) a que acrescentaríamos os domínio do Belo (A Estética) e da sociedade (Filosofia Social e Política). 2. Seguindo num caminho inverso, sobretudo a partir de meados do século XIX, as várias formas de positivismo pretenderam afirmar a subordinação da Filosofia às Ciência chegando mesmo a, em nome desta, profetizar a morte daquela. As teses essenciais desses positivismos, no que à relação entre Filosofia e Ciência se refere, podem ser reduzidas às duas seguintes: 3 Cf. Edmund Husserl, La Philosophie comme Science Rigoureuse, Paris, PUF, 1993 (or. 1911), p. 86.

Filosofia e Ciência 7 i) À medida que os problemas filosóficos forem sendo tratados de forma científica ou positiva, a Filosofia, tal como tradicionalmente entendida e praticada, estará condenada à extinção; até se verificar tal extinção ela não constituirá senão aquilo a que Globot chama um resíduo. 4 ii) A Filosofia, tal como tradicionalmente entendida e praticada, será substituída por um novo tipo de Filosofia que, no essencial se constituirá como um instrumento ou saber auxiliar da própria Ciência visando quer a síntese coordenadora e sistematizadora dos resultados das diversas ciências (Comte) 5, quer a construção de uma visão do mundo ( historicismo 6 ou, mais perto de nós, também Piaget 7 ), quer a psicanálise do conhecimento científico (Bachelard), quer ainda a clarificação lógica da linguagem da ciência (Círculo de Viena). 4 A filosofia deu origem a todas as ciências e alimentou-as até à sua emancipação natural. Ela é apenas um resíduo. É a parte do conhecimento humano que não alcançou ainda os caracteres e o valor da ciência. Pelo seu próprio progresso, a filosofia virá um dia a resolver-se na ciência. (Edmond Goblot, apud Augusto Saraiva, Filosofia, Lisboa, Plátano, 1981, p. 11). 5 Assim, na 1 a Lição do Curso de Filosofia Positiva, de 1830, Comte anuncia o novo tipo de filósofos, os filósofos positivos, como especialistas em generalidades científicas. (Cf. Auguste Comte, A importância da Filosofia positiva, in M. Braga da Cruz, Teorias Sociológicas. Os Fundadores e os Clássicos (Antologia de Textos), Vol. 1, Lisboa, Gulbenkian, 1995, p.153). 6 Cf. Edmund Husserl, Historicisme et philosophie comme vision du monde, in La Philosophie comme Science Rigoureuse, Paris, PUF, 1993, pp. 61-86. 7 Cf. Jean Piaget, Da relação das ciências com a filosofia, in Psicologia e Epistemologia, D, Quixote, Lisboa, 1976, p 107-141. A p. 112, e apesar da profissão de fé anti-positivista que faz logo a seguir, Piaget refere-se, em termos que muito se aproximam dos de Comte, aos filósofos como (pretensos) especialistas do conhecimento total.

8 J. M. Paulo Serra 2 A Filosofia como irmã da Ciência Deplorando a forma como o idealismo hegeliano pretendeu, em nome do referido sistema da ciência, ignorar o desenvolvimento científico que constituía já um dos factos mais relevantes da cultura europeia da segunda metade do século XIX, o nosso poeta-filósofo Antero de Quental afirmava, num texto de 1890, que a ciência é irmã da filosofia, não sua serva. 8 Significa, esta irmandade, que competem à Filosofia e à Ciência funções diferentes, se bem que complementares. Assim, à Filosofia caberá a especulação sobre os primeiros princípios das coisas e as ideias fundamentais e, à Ciência, a observação, a experiência e a indução incidindo no grande e variado mundo dos factos. A hipótese, que é filha legítima da especulação, precisa, no entanto, de ser confirmada pela observação para que se torne verdade científica. A intersecção e o contacto entre Filosofia e Ciência dá-se, assim, na hipótese: é por meio da hipótese que as ideias metafísicas de uma época, as suas noções fundamentais, penetram nas ciências, afeiçoam as suas teorias e lhes fornecem pontos de vista para o seu ulterior desenvolvimento. 9 O que significa também, segundo Antero, que, se à Ciência cabe a missão de desenhar, com os traços firmes das leis positivas, o quadro do universo na sua variedade e complexidade fenomenal, à Filosofia cabe a missão de interpretar superiormente a significação desse quadro e de descobrir ou de tentar descobrir a chave do grande enigma. 10 A Filosofia aparece assim, na tematização anteriana, antes e depois da Ciência: antes, como campo gerador e mesmo orientador das hipóteses científicas; depois, como interpretação dos resultados das ciências. 8 Antero de Quental, Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, Lisboa, Gulbenkian, 1991, p. 69. 9 Ibidem, p. 69. 10 Ibidem, p. 69-70.

Filosofia e Ciência 9 Que tal seja assim que entre a Filosofia e as Ciências haja uma tal irmandade seria comprovado pelos dois factos seguintes: i) O nascimento simultâneo e não sucessivo da Filosofia e da Ciência 11, como parece ilustrar, precisamente, o facto de Tales de Mileto, que é considerado o primeiro filósofo, ser também considerado como o primeiro matemático, sendo ainda astrónomo. ii) A interferência constante entre a Filosofia e a Ciência modernas, que leva a que as alterações numa se repercutam na outra, e vice-versa: por um lado, cada nova doutrina filosófica provoca uma remodelação no campo das teorias gerais da ciência ; por outro lado, a fundação de uma nova ciência ou a alteração parcial das existentes conduz a novas doutrinas filosóficas ou ao aprofundamento das doutrinas existentes. 12 A questão se coloca é, no entanto, a de sabermos se o enorme desenvolvimento científico subsequente à data em que Antero formulava a sua concepção um desenvolvimento que tem a ver, nomeadamente, com a especialização crescente, a reorganização das universidades, as novas finalidades práticas da investigação, não teve, como um dos seus efeitos principais, o rompimento da tal relação de irmandade entre Filosofia e Ciência; ou seja, se essa relação de irmandade não existiu apenas num período de tempo muito limitado, e que já não é, seguramente, o nosso. Que, como já fazia notar Husserl no texto que temos vindo a citar, de 1911, a necessária autonomização que separa ciências da natureza e filosofia (...) está em vias de se impor e torna-se cada vez mais 11 Que, diz Antero, nasceram no mesmo dia, logo ao alvorecer do pensamento reflectido, irmãs e iguais, cada uma com sua feição, seus predicados e sua missão bem definida (Ibidem, p. 69). 12 Como resume Antero, a Filosofia e a Ciência modernas têm caminhado sempre de mãos dadas, apoiando-se, inspirando-se e corrigindo-se mutuamente. (Ibidem, p. 61).

10 J. M. Paulo Serra nítida ; 13 uma afirmação que deveríamos, hoje, aplicar também às ciências sociais e humanas. De facto, e vista do lado da Filosofia, uma tal relação pressupõe que é possível, ao filósofo, ir acompanhando, de forma mais ou menos correcta e aprofundada, os desenvolvimentos que se vão efectuando nos vários campos científicos. Ora, isto é absolutamente impensável num tempo em que mesmo os especialistas científicos o são, e cada vez mais, não de um campo mas de uma área, ou já de uma sub-área, ou mesmo de uma sub-sub-área. 14 Qualquer intento nesse sentido não levará senão a reduzir a Filosofia mas merecerá uma tal disciplina ainda esse nome? a um mosaico de banalidades científicas mais ou menos superficiais e contraditórias, e os filósofos aos especialistas em generalidades científicas de Comte ou aos especialistas do conhecimento total de Piaget. A nossa tese, a este respeito, é a de que o desenvolvimento quer da Ciência quer da Filosofia, sobretudo a partir de meados do século XIX, aponta para uma relação entre Filosofia e Ciência que não pode ser traduzida correctamente nem pela metáfora da maternidade nem pela da irmandade mas talvez, antes, pela da miscigenação. 13 Husserl, op. cit., p. 78. 14 Como o diz Augusto Abelaira de forma mais pitoresca: Conheci certa vez o mais famoso especialista mundial de rãs, que sinceramente me confessou nada saber de rãs, mas de uma determinada espécie de rãs. Recusava-se, portanto, a falar da rã. Com mais razão ainda recusava-se a falar de gramática ou de futebol. Ao que chegámos: quando aparentemente o Homo Sapiens conquistou após tantos anos de luta, a liberdade, ei-lo condenado ao silêncio. Na melhor das hipóteses, se for estudioso e supremamente inteligente, falará de uma determinada espécie de rãs. (Augusto Abelaira, in O Jornal, 18/8/1983).

Filosofia e Ciência 11 3 Irmandade ou miscigenação? No que se refere ao desenvolvimento da Ciência, a crise dos fundamentos ou dos absolutos que a Matemática e a Física enfrentaram nas primeiras décadas do século XX que resultaram de descobertas como as geometrias não-euclidianas, a teoria dos conjuntos ou o teorema de Gödel, no campo da Matemática, e a teoria da relatividade a e a teoria quântica, no campo da Física, e, já mais recentemente, a emergência das chamadas biotecnologias trouxeram para o campo da Ciência uma série de questões que, numa primeira análise, deveriam estar reservadas aos filósofos, mas que estes, e dado o carácter extremamente especializado e complexo dos campos científicos a que respeitam, não têm capacidade para tratar; pelo que se torna, então, necessário que sejam os próprios cientistas a tratarem dessas mesmas questões. Uma ilustração claro desta nova situação é o belo livro Diálogos sobre Física Atómica, de Werner Heisenberg, em que este relata as conversas que manteve, entre 1919 e 1965, com cientistas como Einstein, Planck, Bohr e outros, incluindo filósofos, mortos e vivos. Afirma Heisenberg logo no Prefácio: Nas conversas, nem sempre é a física atómica que representa o ponto fulcral da discussão. A par dela tratam-se problemas humanos, filosóficos ou políticos, e o autor espera deste modo manifestar quanto é irrisório separar a ciência destas questões mais gerais. 15 Uma afirmação que é plenamente confirmada pelo índice da obra, em que aparecem títulos de capítulos tão estranhos como os seguintes: O conceito entender em física moderna, Reflexões sobre política e história, Primeiros diálogos sobre as relações entre ciência e religião, Física atómica e pensamento pragmático, A mecânica quântica e a Filosofia de Kant, Discussões sobre linguagem, 15 Werner Heisenberg, Diálogos sobre Física Atómica, Lisboa, Verbo, 1975, p. VIII.

12 J. M. Paulo Serra A responsabilidade do investigador, Positivismo, metafísica e religião, Controvérsia sobre política e ciência, As partículas elementares e a filosofia de Platão. Um outro exemplo e este, quiçá, ainda mais radical, na medida em que faz assentar, na fé, isto é, em algo que habitualmente se atribui à religião, a própria ciência é a afirmação de Einstein de que Sem a fé na possibilidade de apreender a realidade por meio das nossas construções teóricas, sem a fé na harmonia do nosso mundo, é impossível a ciência. Esta fé é, e permanecerá sempre, o motivo fundamental de todas as criações científicas. 16 No que respeita ao desenvolvimento da Filosofia a Filosofia dita pós-hegeliana, ela orienta-se em três direcções fundamentais: i) A recusa de uma concepção sistemática, totalitária e totalizadora, da Filosofia que, se assim o podemos dizer, tendeu a substituir um espírito de síntese por um espírito de análise que tende a dar importância ao particular em detrimento do geral, à parte em detrimento do todo. ii) A tendência para a especialização, acompanhando, nesta matéria, a Ciência e a cultura em geral a pouco e pouco, também o filósofo se foi transformando num especialista de um certo domínio filosófico (a ética, a estética, a própria ciência), de uma certa corrente filosófica (o estoicismo, o marxismo), de um certo autor (Séneca, Santo Agostinho) ou mesmo de uma ínfima parte de alguma dessa coisas. 17 É precisamente desta especialização que surge, na viragem do século XIX para o século XX, a Epistemologia, enquanto disciplina vocacionada para o estudo dos problemas específicos relacionados com o desenvolvimento das Ciências e que, a 16 Albert Einstein, Lepold Infeld, A Evolução da Física, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, p. 260. 17 Poder-se-ia aqui de certo modo aplicar, ao filósofo, a qualificação de ignorante especializado que Boaventura Sousa Santos aplica ao cientista da ciência moderna. Cf. Boaventura de Sousa Santos, Um Discurso sobre as Ciências, Porto, Afrontamento, 1996 8, p. 55.

Filosofia e Ciência 13 pouco e pouco, se foi desdobrando em epistemologias regionais e estas, por sua vez, em epistemologias disciplinares e mesmo intra-disciplinares. iii) A recuperação de um ideal de Filosofia que se aproxima, em larga medida, da concepção kantiana da Filosofia, menos como um conjunto de conceitos e doutrinas e mais como uma actividade o filosofar de resultados sempre provisórios e efémeros. Em resumo: se o desenvolvimento da Ciência levou a que, de certo modo, os cientistas se tornassem filósofos pelo tipo de questões que colocam, pela forma de as colocar e de as tratar, pela abertura ao domínio do saber tradicional da própria Filosofia, o desenvolvimento da Filosofia levou a que, de certo modo, os filósofos se tornassem cientistas no gosto pela análise, na necessidade de especialização, incluindo quando se referem à Ciência, pela problematização constante dos seus resultados. Verificase, portanto como, aliás, o têm acentuado epistemólogos como Popper, Kuhn, Lakatos ou Feyerabend, e entre nós, o já citado Boaventura de Sousa Santos, que há uma cada vez maior indistinção, para não lhe chamarmos mesmo confusão, entre Ciência e Filosofia. É esta situação que propomos traduzir, precisamente, com o termo miscigenação. 4 Conclusão A miscigenação que aqui registamos entre Ciência e Filosofia que se traduz no facto de, por um lado, a Filosofia ter assumido características científicas e de, por outro, a Ciência ter assumido laivos filosóficos não obsta, no entanto, a que uma e outra não mantenham uma certa especificidade. Mas, e como resulta do que dissemos até aqui, e tendo também

14 J. M. Paulo Serra em conta os epistemólogos pós-positivistas a que fizemos referência, essa especificidade não se situa, ou não se situa sobretudo, nem a nível do objecto que seria delimitado no caso das Ciências e total ou indefinível no caso da Filosofia, nem a nível do método que seria experimental no caso das Ciências e reflexivo no caso da Filosofia. Essa especificidade situa-se, antes, no facto de que a Filosofia continua a caracterizar-se mais pelo sentido do problema do que pelo da solução, mais pela hipótese do que pela lei, mais pela especulação do que pela comprovação. Por isso mesmo, se a Ciência vai, de etapa em etapa, acumulando conhecimentos mais ou menos objectivos e ensináveis, a Filosofia está sempre condenada a começar de novo, a não poder senão aprender. Podemos assim dizer, e utilizando a bela comparação de Hannah Arendt, que a ocupação de pensar é como a teia de Penélope: ela desfaz em cada manhã o que acabou de fazer na noite precedente. 18 Os mal-entendidos periódicos entre Ciência e Filosofia só podem surgir quando, da parte de filósofos ou de cientistas, se pretende: quer a morte da Filosofia uma pretensão tão absurda como o foi a pretensão da morte da Religião, vista como o ópio do povo, ou como o seria hoje, a pretensão da morte da arte ou, mais genericamente, de uma qualquer das formas da cultura e do conhecimento humanos; quer, pelo contrário, a submissão da Ciência a caminhos pré-determinados por uma qualquer Filosofia, por muito científica que ela se pretenda. 37. 18 Hannah Arendt, Considérations Morales, Paris, Rivages Poche, 1996, p.