UNIDADES DE PROTEÇÃO INTEGRAL E SEGURANÇA ALIMENTAR: uma análise dos povos entorno do parque estadual da mata seca no norte de minas gerais



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Transcrição:

UNIDADES DE PROTEÇÃO INTEGRAL E SEGURANÇA ALIMENTAR: uma análise dos povos entorno do parque estadual da mata seca no norte de minas gerais Carolina Poswar de Araújo Camenietzki 1 Rômulo Soares Barbosa 2 O presente trabalho tem por objetivo analisar de que forma a instituição das unidades de proteção integral no Norte de Minas Gerias influencia nas estratégias agroalimentares dos povos que vivem na área de abrangência do Parque Estadual da Mata Seca, localizado no município de Manga/MG, procurando examinar quais as influências que seu caráter restritivo pode ter para a segurança alimentar destes povos. Para tanto, realizou-se pesquisa bibliográfica, entrevistas e observação direta. O conceito de segurança alimentar tem sido muito discutido ao longo dos tempos. De acordo com cada momento histórico, e de cada concepção filosófica, o conceito em análise 1 Mestranda. Universidade Estadual de Montes Claros E-mail: carolposwar@hotmail.com 2 Doutor. Universidade Estadual de Montes Claros. E-mail: romulosoaresbarbosa@gmail.com

adota diferentes abordagens (VALENTE et all, 2007). O termo aparece pela primeira vez na Idade Média e volta a ser utilizado na Europa, a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). No entanto, foi apenas depois da Segunda Grande Guerra (1939-1945) com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) que o conceito adquiriu força (VALENTE et all, 2007, p. 03). A concepção difundida nesta época era de que a segurança alimentar estava relacionada à questão da insuficiência de disponibilidade de alimentos, o que aumentava a preocupação com a produtividade, principalmente dos países pobres. Foi a partir da década de 1970, com a Conferência Mundial de Alimentação em 1974, que o conceito passa a seguir outras linhas de pensamento. Segundo Valente (2007), a partir desta conferência, o termo segurança alimentar adquiriu dimensões mais abrangentes passando, ao longo dos anos, do foco apenas na produção e armazenamento de alimentos para o foco no ser humano, ou seja, agregam-se a este conceito (até a década de 90) as questões relacionadas à garantia de acesso físico e econômico de todos e de forma permanete- a quantidades suficientes dos alimentos (p. 04). Com a realização da Conferência Mundial da Alimentação, organizada pela FAO (Food and Agriculture Organization) em 1996, o termo segurança alimentar já passou a ser definido a partir do momento em que todas as pessoas, em todas as ocasiões, têm acesso físico e econômico a uma alimentação que seja suficiente, segura, nutritiva e que atenda a necessidades nutricionais e preferenciais alimentares, de modo a propiciar vida ativa e saudável (FAO, 1997). No Brasil, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), estabelecida por portaria do Ministério da Saúde aprovada em 1999 e ratificada em 2003, define segurança alimentar como a garantia de que as famílias tenham acesso físico e econômico regular e permanente a um conjunto básico de alimentos em quantidade e qualidade significantes para atender os requerimentos nutricionais (Ministério da Saúde, 2003). As análises apresentadas por Maluf et al (1996) demonstram que o conceito de segurança alimentar é recente no Brasil, sendo este sujeito a diversas interpretações. Para os autores, constitui-se ponto central de análise a questão do acesso aos alimentos, seja em sua fase final, ou às formas de sua obtenção.

O modelo de desenvolvimento implementado no Norte de Minas Gerais, a partir dos anos 1970, fez parte do conjunto de estratégias introduzidas pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste SUDENE - que se instalou na região a partir de 1965. Esse modelo fundamentou-se em quatro pilares: agricultura/fruticultura irrigada, monocultura de eucalipto, pecuária extensiva e monocultura de algodão (BARBOSA & FEITOSA, 2005). Este processo denominado modernização conservadora intensificou as ações de degradação ambiental, social e econômica na região, impactando diretamente a dinâmica dos seus povos. A partir de então, modelos e visões de mundo se chocaram diante da nova realidade. Aos objetivos modernizantes dos projetos se contrapunha as práticas de cultivo e vida dos povos do Norte de Minas. Como explicita Silva (2005), o processo expropriador e homogeneizante do modelo monocultor-exportador de expansão da fronteira agrícola, vai desterritorializando as populações e liquidando com o Cerrado-habitat (agri-cultura) para a afirmação do Cerrado-mercadoria (agro-negócio). Neste sentido, como compensação aos efeitos ecodestrutivos dos empreendimentos instalados, foram criados, a partir da década de 1990, os Parques Estaduais. Como Unidades de Proteção Integral, estes parque são áreas de posse e domínios públicos com uso restrito e visitação sujeita às normas previstas no plano de manejo. Sua finalidade é preservar os ecossistemas naturais, possibilitando a realização de pesquisas científicas, desenvolvimento de atividades educativas e turismo ecológico (SNUC, 2004). Porém, a criação destes parques, produz necessariamente, transformações nas estratégias de reprodução social dos grupos que os habitam e os circundam, o que está diretamente envolvido em relações de conflito (ANAYA, BARBOSA E SAMPAIO, 2006). O Parque Estadual da Mata Seca (PEMS) foi criado no ano de 2000 como compensação ambiental aos efeitos ecodestrutivos do Projeto Jaíba. Possui uma área de 10.281,44 hectares sob a responsabilidade do Instituto Estadual de Florestas (IEF) de Minas Gerais. O PEMS está localizado no Vale do Médio São Francisco, entre as coordenadas 14 97 02 S - 43 97 02 W e 14 53 08 S - 44 00 05 W. O PEMS pertence ao município de Manga, Minas Gerais, e está separado do município de Matias Cardoso pelo Rio São Francisco. Além disso, está a cerca de 5 km do município de São João das Missões. Desta forma, sua zona de influência abrange três municípios cuja população total é de aproximadamente 40.000 habitantes. (ZHOURI et al, 2008).

As limitações de manejo da área do Parque Estadual da Mata Seca e do seu entorno atingem os povos que dependem diretamente dos recursos naturais para a efetivação de suas estratégias agroalimentares, uma vez que os povos tradicionais reconhecem a natureza tanto no campo das atividades do fazer, das técnicas e da produção, quanto no campo da simbólica (CHEVEZ POZO, 2002). As restrições inerentes à construção do Parque Estadual da Mata Seca impossibilitam o acesso dos povos que os circundam às formas de se obter o alimento. Neste sentido, as análises de Maluf et al (1996) demonstram que este acesso é condição fundamental para a segurança alimentar. Para os autores, (...) torna-se fundamental afirmar o acesso à alimentação como um direito em si mesmo. Assumimos, aqui, a convicção de que a alimentação constitui-se no próprio direito à vida. E, por isto, sobrepõe-se a qualquer outra razão que possa justificar sua negação, seja de ordem econômica ou política. Negar este direito é, antes de mais nada, negar a primeira condição para a cidadania, que é a própria vida. (Maluf et al, 1996, p. 12) Maluf (2001) discute ainda como a questão alimentar está inserida em uma ordem maso e macroeconômicas, que vão para além das ações pontuais que dão ênfase quase que exclusivamente no nível domiciliar da segurança alimentar. Para o autor, as políticas de segurança alimentar e nutricional devem estar co-relacionadas com o papel das políticas agrícolas e de desenvolvimento rural, o que implica um envolvimento com as questões relativas também ao comércio exterior e, consequentemente à política cambial. Segundo Maluf (2001) ao analisar a segurança alimentar a partir destes focos maso e macroeconômicos este conceito estabelece uma relação direta com a questão da eqüidade social. Nas palavras do autor, Uma maior eqüidade social é tida como pré-condição para o acesso adequado aos alimentos, sendo a eqüidade comumente medida em termos do nível de renda apesar de englobar fatores que não são devidamente expressos por esse indicador. O grau de desigualdade numa sociedade afeta a capacidade de acesso da população aos alimentos, que por sua vez impacta a produção e o consumo alimentar. Destaca-se entre os fatores determinantes do acesso aos alimentos o nível do emprego e dos salários e a existência de oportunidades de trabalho em geral (...) (MALUF, 2001, p. 147).

O que se pode fundamentar diante do posicionamento do referido autor é que a questão alimentar participa da busca pela efetivação da cidadania, uma vez que esta constituise em um condicionante da eqüidade social. Conseqüentemente, esta relação mútua influenciará a configuração do desenvolvimento do país, uma vez que (...) a promoção de um sistema agroalimentar em bases eqüitativas e sustentáveis impacta, positivamente, o padrão de desenvolvimento econômico (MALUF, 2001, p. 147). O conceito de segurança alimentar aqui apresentado busca abarcar não só as questões de ordem nutricional e econômica, mas sim uma ordem simbólica e cultural do que vem a representar o alimento para os povos e de que forma o acesso às formas de obtê-lo representa um direito para os mesmos. Wintz (2001) afirma que existe uma forte relação entre a forma de se comer, o que comer, com que freqüência e onde se come com as questões de ordem comportamental e de identidade social dos indivíduos. Neste sentido, o autor partilha da idéia de que o comportamento relativo à comida revela repetidamente a cultura em que cada um está inserido (Idem, p. 32). A cultura revelada através dos hábitos alimentares constitui um ponto de suma importância para os povos. Pode-se considerar que estes grupos são o resultado, o produto de um caráter, de uma ordem moral que, por sua vez, reproduz-se através do alimento, da maneira como se come e de todos os ciclos que o envolve (WINTZ, 2001). Nesta perspectiva, as análises levantadas por Santos (2001) demonstram como as práticas alimentares dos indivíduos influenciam o cotidiano e as sensibilidades culturais dos povos. Para o autor O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época (SANTOS, 2001, p. 13). Ainda, sobre o papel da comida para a construção da identidade de um povo, Da Matta (1987) afirma em sua obra Sobre o simbolismo da comida no Brasil, que a comida tem o

papel fundamental de destacar identidades, de redefinir e de defini-la de acordo com o exercício das práticas alimentares. Neste sentido, para além dos efeitos nutritivos e biológicos produzidos pelo alimento, a produção e o consumo destes envolvem todo um ciclo de valores, culturas, normas morais e de identidade de um povo. No entanto, para os povos do entorno do Parque Estadual da Mata Seca, que possuem pouco, ou nenhum aparato tecnológico, o acesso às formas de obter os alimentos, ou seja, à terra e ao que dela é usufruído plantas medicinais, frutos, peixes, raízes, a água do rio constitui-se o ponto fundamental para que este direito, o de acesso às formas de se obter o alimento, se concretize, e por conseguinte, que a segurança alimentar destes povos seja garantida. É importante destacar que no entorno (também chamada por área de amortecimento, borda ou tampão) do Parque Estadual da Mata Seca existe uma diversidade de povos os quais se inserem as comunidades indígenas como a Xacriabá, quilombolas e vazanteiros. Estes povos possuem uma rica diversidade cultural, religiosa, e histórica que se baseiam na trajetória de vida e de pertencimento ao local em que vivem. A função de proteger integralmente as áreas pertencentes ao parque, ao limitar as estratégias de sobrevivências destes povos - através do seu plano de manejo 3 - acaba por tensionar a existência de conflitos socioambientais naquela região. A redução dos meios de subsistência para as populações residentes em áreas protegidas e a criminação de atividades extrativistas sem a contrapartida de uma política de desenvolvimento sustentável podem dificultar a compreensão de novas práticas de preservação da natureza (MARAGON & AGUDELO apud PEREIRA, 2005). 3 3 O Plano de Manejo é um documento básico à administração de uma área protegida e, segundo o SNUC, toda área protegida deve elaborar e adotar este documento como guia para a sua administração. Neste plano devem ser identificados os assuntos mais importantes relacionados à administração da área, definidas as políticas para alcançar objetivos da unidade de conservação, fixadas as prioridades e detalhadas as estratégias para implementação das ações de manejo. Este Plano também serve como uma ferramenta de comunicação para fazer com que aumente a percepção e haja compreensão e apoio do público em geral sobre a importância da unidade de conservação. Tal compreensão é importante para permitir a cooperação da população local e o apoio político necessário para consolidar os objetivos da unidade de conservação. A elaboração dos Planos de Manejo das unidades de conservação de forma participativa tem sido um marco inicial para o estabelecimento de conselhos consultivos das unidades, como previsto na Lei 9.985/00 (SCHENINI, COSTA & CASARIM, 2004).

Segundo Chevez Pozo (2002) os territórios tradicionalmente utilizados pelos povos tradicionais - que são retirados para o estabelecimento de uma unidade de proteção integral fornecem os meios de subsistência, de trabalho e produção, assim como os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais dos indivíduos. A relação estabelecida com o meio natural nestas áreas se dá através do vasto conhecimento tradicional e de técnicas rudimentares de manejo o que faz com que este seja feito de forma sustentável (DIEGUES apud CHEVEZ POZO, 2002). De acordo com Chevez Pozo (2002) a utilização dos recursos naturais oferecidos por aqueles territórios ocupados pelos povos é feita basicamente por meio do extrativismo vegetal (cipós, fibras, frutos, ervas medicinais da floresta), do extrativismo animal (caça e pesca) e da pequena agricultura itinerante (p. 45). Estas formas de apropriação dos recursos naturais são baseadas em muitos valores, normas e interdições comunitárias que regulam o acesso a estes, o que impede sua degradação e auxilia na preservação sustentável do ecossistema (Idem). O meio ambiente constitui-se no principal instrumento de efetivação das estratégias agroalimentares dos povos que habitam o entorno do Parque Estadual da Mata Seca. Segundo Zhouri et al (2008, p. 48) a utilização das terras na região do entorno do parque se caracteriza por três pilares: a) pecuária bovina extensiva; b) unidades de conservação; c) agricultura de pequeno porte destinada à produção de alimentos. Na área pesquisada, percebeu-se que o uso do território para os povos locais baseia, fundamentalmente, para a produção de alimentos que são para uso próprio. Esta produção é baseada na plantação de produtos primários que servem para o autoconsumo e intercâmbios econômicos com vistas ao abastecimento local. A partir das análises, constatou-se que o processo de instituição destes parques tem implicado para os povos habitam o seu entorno, uma situação de insegurança alimentar. Os processos em curso nas Matas Secas do Norte de Minas Gerais explicitam um conflito entre a política estadual de proteção ambiental, assentada na criação de unidades de conservação-uc e as práticas agroalimentares dos povos da região. Estas restrições, inerentes às áreas de UCs e do seu entorno, acabam por limitar as estratégias agroalimentares destes povos que dependem fundamentalmente dos recursos ambientais para a sua reprodução social, cultural e

econômica. Neste sentido, ao restringir este acesso às formas de se obter o alimento, cerceiase a segurança alimentar destes povos. Referências: ANAYA, Felisa; BARBOSA, Rômulo S; SAMPAIO, Cristina. Sociedade e Biodiversidade na Mata Seca Mineira. Unimontes Cientifica Revista da Universidade Estadual de Montes Claros / Universidade Estadual de Montes Claros. v 8, n. 1, (jan/jun. 2006) Montes Claros: Unimontes, 2006. CHEVEZ POZO, O. V. Regimes de Propriedade e Recursos Naturais: a tragédia da privatização dos Recursos Comuns no Norte de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado. UFRRJ, 2002. DA MATTA, R. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. O Correio, Rio de Janeiro, v. 15, n. 7. Jul. 1987. FEITOSA, Antônio Maurílio A., BARBOSA, Rômulo Soares. Homem e a Natureza os Gerais de Minas. EDUCARE: Revista Científica da Faculdade de Educação Instituto Superior de Educação Ibituruna - ISEIB> v.1, n.1. Montes Claros- MG: Editora ISEIB, 2005. MALUF, Renato S.; MENEZES, F.; VALENTE, F. L. Contribuição ao Tema da Segurança Alimentar no Brasil. Revista Cadernos em Debate. Vol. IV, UNICAMP, 1996., Renato S.. Políticas agrícolas e de desenvolvimento rural e a segurança alimentar. In: LEITE, Sérgio. Políticas Públicas e agricultura no Brasil. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2001. PEREIRA, Doralice Barros. Paradoxo do Papel do Estado nas Unidades de Conservação. In ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI Klemens; PEREIRA, Doralice Barros (Org s). A Insustentável leveza da Política Ambiental Desenvolvimento e Conflitos Socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. RIBEIRO, Ricardo Ferreira. Da largueza ao cerceamento : um balanço dos programas de desenvolvimento do Cerrado. In ZHOURI, Andréa; LASCHEFSKI Klemens; PEREIRA, Doralice Barros (Org s). A Insustentável leveza da Política Ambiental Desenvolvimento e Conflitos Socioambientais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. SANTOS, C. R. A. dos. A alimentação e seu lugar na História: os tempos da memória gustativa. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, p. 11-31, 2001. Editora UFPR.

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